A cada ação corresponde uma reação ou escreveu não leu, o pau comeu. A nossa complacência com a tortura.

“Levei um pau, porque pisei na bola, doutor…”

por Marcos Romão, no Mamapress

Esta é a Carta Magna, ou Constituição que rege a vida dos presos e seus vigias nas prisões e carceragens de delegacias no Brasil. Ultrapassa regimes, pois funciona sem maiores atenções da sociedade civil, tanto na ditadura militar, quanto no regime democrático que vivemos desde as eleições de 1989.

A “Lei da Cadeia no Brasil”, como é chamada no popular, esta “Carta de Princípios do Universo Prisional”, só não é aplicada em sua forma plena, quando o prisioneiro possue ou pertence a um foro privilegiado.  Assim ela possue parágrafos mais suaves de aplicação de punições internas, nos casos em que o detento tenha um título universitário, pertença ou tenha pertencido aos quadros policiais ou seja do “sistema” prisional, que inclue os parentes de policiais e guardas de presídios, além de seus alcaguetes.

A “lei da cadeia” também é usada de forma atenuada, caso a pessoa presa tenha dinheiro ou amigos influentes lá fora, seja fiho ou filha de alguém, pertença à classe média abastada, ou pertença ao alto escalão da bandidagem.

A “lei atenuada da cadeia”, foi suspensa durante o regime militar, o que provocou protestos no Brasil e no exterior e colocou todo o regime da época em xeque. O choque da opinião pública foi muito grande, quando a classe média brasileira provou também do remédio punitivo, aplicado de forma “normal”, aos chamados “presos comuns”, que são os presos das classes baixas

Caso seja pobre, estes atenuantes também podem ser aplicados, caso o prisioneiro tenha uma família que o acompanhe todos tempo e troque favores com os que mandam na prisão, para que reduzam ao mínimo os constrangimentos físicos sofridos pelo seu parente preso. Veja o caso Miriam França

Nos últimos tempos, ainda que de forma tímida, parentes de presos pobres, em geral negros, têm se utilizado de denúncias nas redes sociais para diminuírem os castigos internos de seus parentes presos.

É ainda uma ação de extremo desespero, em geral usada para salvar vidas, mas com o risco do detento/refém, levar mais pau ainda quando o caso serenar na imprensa, ou ser “entregue às feras” para ser escravo ou morrer em uma “briga” entre detentos.

O termo “ser entregue às feras”,  poderíamos traduzir para o juridiquês, como mandar para uma segunda instância o caso de um prisioneiro que cometer uma falha grave no sistema prisional, que varia de cadeia à cadeia, e funciona em sua aplicação, segundo o humor do carcereiro naquele momento. É assim um artigo com parágrafo único, da lei da cadeia, que paira sob a cabeça de todos os prisioneiros, a todo o tempo.

Ser entregue às feras é a pena máxima, pode significar a morte ou no mínimo uma perpétua, que será cumprida através de prestação de serviços, mesmo depois de sair da cadeia ao cumprir a “pena oficial”. Esta prestação de serviços pode ser o fazer assaltos e pagar um dízimo sob o valor amealhado, ou para pagar à vista, executar alguém que interesse aos donos da cadeia.

Para que o leitor que acha que isto é o normal, já que todo o adulto no Brasil sabe, já ouviu falar ou leu este conjunto de “leis da cadeia” que nunca foram escritos, lembramos os útimos noticiários que acompanhamos das prisões dos colarinhos brancos, com ou sem mochilas, que vemos se repetir nas telas da televisão. Nestes atos de prender alguém podemos ver, que algumas regras da Constituição Brasileira são obedecidas:

1- Buscam o prisioneiro em sua casa depois das 6:00 horas da manhã.

2- O algemam ou não segundo a conveniência

3- Não são escrachados. ( o que significa no ato de prisão em que não ofereceu resistência, que não levam tapa na cara. Não são agarrados pela cabeça e mostrados às câmaras de televisão e dos repórteres etc. e etc.)

4- São encaminhados para exame de corpo delito antes de serem recolhidos ao sistema prisional.

5- Seus depoimentos e interrogatórios podem ser acompanhados por advogados.

6- Não são torturados em nenhum momento no processo de prisão, acautelamento e no cumprimento de pena.

Ao verem toda esta maravilha de modelo de aprisionamento na televisão, as classes baixas são as que agora ficam chocadas, e quem sabe esperançosas, de que um dia a “Lei da Cadeia” seja revogada.

Na “lei da cadeia”,  o parágrafo primeiro é a tortura.

Tortura que pode ser aplicada ou não em toda a sua extensão, dependendo da sorte do suspeito ou condenado.

A aplicação da tortura e seus métodos variam segundo estados, municípios e penitenciárias e delegacias. Dependem dos governadores, muitas vezes dos prefeitos, mas sempre dos diretores e delegados o grau de sua aplicação. Mas são aplicadas em todos os lugares, como ou sem conhecimento das autoridades responsáveis em última instância pela segurança e integridade física de prisioneiros condenados ou suspeitos aguardando processo.

Como pelas convenções nacionais e internacionais, a tortura é considerada um crime contra a humanidade e imprescritível, ela precisa ser aplicada de forma secreta, não dita, não anunciada. Paira entretanto escrita em uma tábua invisível nas portas do “sistema” e seu texto está visível para todos prisioneiros e parentes que se arriscam a visitá-los:

” A cada ação corresponde uma reação. Escreveu não leu, o pau comeu.”

Como a visão comum sobre tortura no Brasil é o prisioneiro estar numa sala com pouca luz, cercado de policiais, sentado em uma cadeira ou pendurado no “pau-de-arara”, sempre com fios elétricos enrolados em suas partes mais sensíveis. As pequenas torturas em nossa cultura brasileira não contam. Assim tanto o policial ou carcereiro torturador como o torturado e seus parentes e toda a sociedade civil acham normal, a aplicação de pequenas mas “sistemáticas torturas”. É a lei não escrita.

Assim podemos afirmar, que todo prisioneiro é torturado, quer sofra a tortura em si, quer não. Perguntemos a qualquer brasileiro, o que ele mais teme caso por algum motivo venha a ser preso, e teremos a resposta, “medo de ser torturado”, o que confirma a tese que agora afirmo neste artigo:

A tortura é regra e não exceção no tratamento do preso comum, em geral este preso é pobre, e/ou preto, e/ou índio, e/ou mulher, ou e/homossexual e/ou pertence a alguma minoria, que não tenha poder de barganha para evitar ser torturado.

Assim podemos enumerar a aplicação, algumas das leis de exceção não escritas, que são usadas ao arrepio da Constituição, quando prendem o tal do “cidadão comum”.

1- Entram sem bater em qualquer hora, de preferência quando estiver dormindo, na casa do suspeito ou condenado.

2- Colocam algemas e na falta, cordas ou o que tiverem às mãos, como fios de eletricide por exemplo.

3- São escrachados. (com ou sem resistência são arrastados e colocados no chão da rua para todo mundo ver, aguardar a reportagem e o transporte, que muitas das vezes é um rabecão. Se houver crianças na casa, farão questão de dar uns tapas na cara do preso amarrado, para dar exemplo às crianças, futuros fregueses).

4- Seus depoimentos e interrogatórios podem acontecer debaixo de violência física ou coação. Defensor público, na maioria das vezes,  só o verá por alguns minutos, na audiência com o juiz, que pode demorar meses para acontecer.

5- O exame de corpo delito será feito depois de “sarados” as ferimentos visíveis ocorridos no ato, ou por gravação de áudio via “smartphone”, como no caso recente da transexual Verônica Bolina, espancada violentamente no segundo distrito de Bom Retiro, São Paulo, que desmentiu ter sido torturada, direto da prisão via “whats´Up”, e disse que está bem e que as amigas não se preocupassem por ela, porque ela apanhou porque mereceu, ou nas suas palavras: ” A cada ação corresponde uma reação.” saiba mais sobre o caso

6- Podem ser torturados a todo momento, no processo de prisão, acautelamento e no cumprimento de pena.

Em um momento em que nossa sociedade vive uma situação de extrema e caótica violência, em que se discute sobre maior segurança nas ruas e lares, construção de mais prisões com puxadinhos para colocar jovens menores de idade junto aos adultos, pergunto se não seria o caso de refletirmos todos sobre a tortura, sua aceitação e disseminação em todo o sistema prisional e toda a sua repercussão na vida diária de todos nós brasileiros.

Se ao observarmos  nas redes sociais, a maioria dos grupos que falam de violência, e pudéssemos entra na cabeça de cada um, para sabermos que punição deva ser dada a um criminoso que lhe tenha molestado, poderíamos ver o desejo de torturar até a morte quem ele considere um facínora.

Assim o faz porque pensa com as vísceras da sobrevivência e o Estado e a imprensa estimulam, e o faz como o prisioneiro violentado pela tortura faz, pois como qualquer ser humano sob tortura, um prisoneiro sob tortura, assim também pensa com suas vísceras, pois não pode reagir ao torturador. Irá então se vingar no primeiro que apareça à sua frente na primeira oportunidade.

Estamos criando feras, dentro das prisões e fora delas.

Ao conversar com algumas pessoas que participaram de linchamentos mortais, elas me reponderam que não estavam lá, que foi um bicho que as possuiu.
É desta outra coisa assustadora e incalculável violência que vive dentro de nós, e que bandidos e policiais se confrontam mais amiúde, é que falo.

Ao conversar com um prisioneiro ainda com as marcas de tortura pelo corpo, só ouvi o auto lamento: “Pisei na bola doutor”. Infelizmente eles a aceitam pois só sabem que isto é a regra.

A tortura que era sistemática, dirigida e brutal durante a ditadura militar.  É agora,  em nosso sistema democrático, sistemática, universal e difusa.

O assunto “tortura” visto como tema discutido pela sociedade “morreu” em 82. De lá para cá, os mesmos que eram torturados nas prisões e delegacias antes de 64, continuam a serem humilhados, violentados, espancados, e torturados e não se toca mais no assunto.

O método racista anterior à 1964 de considerar como não humano, passível de ser tratado à pancada quando preso, que eram os pretos e pobres, se estendeu a outras classes durante a ditadura militar.  

Sua escola e sistematização foi apropriada pelo regime democrático. E o que é pior. Espalhada como uma hidra sua aceitação, a aceitação da tortura se tornou universal nas masmorras medievais segundo um ministro da justiça, e é aplicada agora tanto por policiais como por bandidos. Todos aceitam esta hierarquia do terror.

O que fazer para sair deste espiral de violência e aceitação dela até quando a combatemos?

Falar, é o que recomendo, falar, falar e gritar como falam e gritam as mãe pretas e não pretas ao lado das delegacias na “hora do pau”, sabendo que lá dentro seus filhos não podem gritar.

Elas sabem que seus gritos, “Zé, tou aqui fora, te amo”, são verdadeiros e trazem um fio de ligação e esperança a quem é tratado como coisa e inimigo, que até pela convenção de guerra não é permitido que se trate assim. Precisamos restabelecer este fio de ligação de vida entre todos nós.

Falar e falar, para romper o silêncio que a anistia do cala-boca provocou e se entranhou em nosso comportamento social e nos tornou a todos em cúmplices, das pequenas torturas no sistema prisional, nas esquinas que moramos e lamentavelmente até nas casas de nossos vizinhos, quando ouvimos as mulheres que não gritam mas que saem pela manhã de óculos escuros e passam por nós cabisbaixas carregando seus filhos.

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