A fábula das três raças ou o problema do racismo à brasileira – Roberto Da Matta

Alguns trechos para reflexão:

O racismo contido na “fábula das três raças”, que floresceu do final do século até hoje, tanto no campo erudito como no popular decorre da dificuldade de se pensar o Brasil e nossa hierarquia social.

Há uma “ideologia abrangente” permeando todas as camadas e espaços sociais: “preguiça do índio”, “melancolia do negro”, a “cupidez” e “estupidez”, do branco lusitano, responsáveis, nessa visão popular, pelo nosso atraso econômico e social, indigência cultural e a nossa necessidade de autoritarismo político, fator corretivo básico neste universo social que, entregue a si mesmo, só poderia degenerar. Assim, é o caso de perguntar se o racismo do famoso Conde de Gobineau está realmente morto!

É uma faceta da história do Brasil vista pelo seu prisma mais reacionário: como uma história de “raças”, não de homens.

O conhecimento social assim, se reduz a algo “natural”, como “raças”, “miscigenação” e traços biológicos de raças.

 

A fábula das três raças junta as 2 pontas da nossa cultura: o popular e o elaborado. Os três elementos: o branco, o negro e o indígena, claro que foram importantes na nossa história, mas há uma diferença entre a presença empírica dos elementos e seu uso como recurso ideológico na construção da identidade social brasileira.

Nos EUA, o recorte branco colonizador, índio e negro, formavam elementos visíveis empiricamente, negros e índios sendo colocados nos pólos inferiores de uma espécie de linha perpendicular, onde sempre os brancos figuravam acima- não há escala- ou se é índio ou negro, ou não é, não há gradações que possam pôr em risco aqueles que têm pleno direito à igualdade.

Nos EUA, não há um “triângulo de raças” e parece ser sumamente importante considerar como esse triângulo foi mantido como um dado fundamental na compreensão do Brasil pelos brasileiros. E mais, como essa triangulação étnica pela qual se arma geometricamente a “fábula das três raças”, tornou-se uma ideologia dominante, abrangente, capaz de permear a visão do povo, dos intelectuais, dos políticos e acadêmicos de esquerda e de direita, uns e outros gritando pela mestiçagem e se utilizando do “branco”, do “negro” e do “índio” como unidades básicas que explicam a exploração ou a redenção das massas.

As hierarquias sociais do “Antigo Regime”, ou seja, o regime anterior à Revolução Francesa, eram fundadas nas leis de Deus, da Igreja e de sangue. Como se Deus tivesse armado uma pirâmide social com os nobres, o Imperador, o Papa, legitimando de cima seus poderes no plano temporal e espiritual.

No caso brasileiro, a justificativa fundada na Igreja e no Catolicismo formalista que aqui chegou com a colonização portuguesa, foi o que deu direito à exploração da terra e à escravização de índios e negros- tal legitimação estava fundada numa poderosa junção de interesses religiosos, políticos e comerciais (moral, econômica, política e social que se constitui numa totalidade).

Não temos companhias particulares explorando a terra com olho apenas na atividade produtiva com leis individualizadas e sem independência da Coroa, como nos EUA. Aqui, era a  Coroa portuguesa que, legitimada pela religião, pela política e pelos interesses econômicos, explorava soberanamente nosso território, gente fauna e flora. O jogo político estava submetido ao comercial até certo ponto. O rei mantinha o controle sobre os empreendimentos coloniais (a colonização portuguesa), motivado pela religião e pela política civilizatória.

Em decorrência, houve um perfeito transplante de ideologias de classificação social, técnicas jurídicas e administrativas que tornaram a estrutura social da colônia exatamente semelhante à Metrópole- esse é o fato social fundamental.

Portugal à época da colonização apresentava um conjunto de “estados” sociais de um corpo social altamente complexo onde as pessoas se distinguiam elo nome, forma de trabalho, trajes etc. a que estavam sujeitas. (juizes e oficiais, letrados, fidalgos, cavaleiros, escudeiros, homens bons, e por ultimo o “povo”). Uma sociedade em que ninguém é igual perante a lei, uma sociedade em que embora mercantilista e comercial, não imperava a mentalidade burguesa, uma sociedade já familiarizada com formas de segregação social, (contra mouros e judeus).

Reconstitui-se aqui, obedecendo naturalmente às características históricas dos povos indígenas que habitavam nossas praias, a sociedade portuguesa original. (E não foi uma empresa realizada por meros criminosos, indivíduos sem eira nem beira ou ideologia social, mas uma empresa com alvo e método).

Mais tarde, o movimento de independência provocou toda uma reorientação dos sistemas de hierarquia vigentes no Brasil, mudando a estrutura de poder para a Corte do Rio de Janeiro e não mais a Corte portuguesa em Lisboa, mesmo considerando que a independência não foi movimento de “baixo para cima”. Ela apresentou à elite local e nacional, a necessidade de criar suas próprias ideologias e mecanismos de racionalização para as diferenças internas no país (busca de identidade legitimando diferenças internas). E a ideologia veio na forma da “fábula das três raças” e no “racismo à brasileira”.

Thomas Skidmore considera que o marco histórico das doutrinas raciais brasileiras é o período que antecede à proclamação da República e a Abolição da escravatura, momento de crise nacional profunda, que abala as estruturas sociais, a República sendo um movimento fechado e reacionário destinado a manter o poder dos donos de terra, e a Abolição, um movimento progressivo e aberto que propõe a igualdade e a transformação das hierarquias (ameaça ao edifício econômico e social do país). Era necessária  uma nova ideologia: ela foi dada com o racismo, ao lado das cadeias de relações sociais dadas pela patronagem e que se mantiveram aparentemente intactas. Essa fábula das três raças hoje, tem a força e o estatuto de uma ideologia dominante que fornece o mito das três raças, as bases de um projeto político e social para o Brasil através da tese do “branqueamento” como alvo a ser buscado e finalmente é essa fábula que possibilita visualizar nossa sociedade como algo singular- especificidade que nos é presenteada pelo encontro harmoniosos das três “raças”.

Se no plano social e político, o Brasil é rasgado por hierarquizações e motivações conflituosas, o mito das três “raças” une a sociedade num plano “biológico” e “natural”, domínio unitário, prolongado nos ritos de Umbanda, na cordialidade, no Carnaval, na comida, na beleza da mulher (e da mulata), e na música.

Fontes eruditas do racismo brasileiro: origem: Europa do século XVIII e crise da Revolução Francesa, mas no século XIX, o racismo aparece na sua forma acabada como instrumento do imperialismo e como uma justificativa “natural” para a supremacia dos povos da Europa Ocidental  sobre o resto do mundo. Gobineau defendia a tese de que a sociedade brasileira era inviável porque possuía enorme população “mestiça”, produto indesejado e híbrido do “cruzamento” de brancos, negros e índios, tomados por esses “cientistas”, como espécies diferenciadas.

O fato de termos constituído até final do século XIX, uma sociedade de nobres com uma ideologia aristocrática e anti igualitária, dominada pela ética do familismo, da patronagem e das relações pessoais, tudo isso emoldurado por um sistema jurídico formalista e totalizante, que sempre privilegia o todo e não as partes (os indivíduos e os casos concretos), deu às nossas relações sociais um caráter  especial: a escravidão foi aceita como algo normal porque não era um fenômeno social regional e localizado, mas nacional.

A lógica do sistema de relações sociais no Brasil é a de que pode haver intimidade entre senhores e escravos, superiores e inferiores, porque o mundo está realmente hierarquizado, tal e qual o céu da Igreja católica. O ponto crítico de todo nosso sistema é sua profunda desigualdade.

Nesse sistema, não há necessidade de segregar o mestiço, o mulato, o índio e o negro porque as hierarquias asseguram a superioridade do branco como grupo dominante. (Para Freyre, esse era um dos traços do caráter nacional português).

Nos EUA e na Europa, o problema é que, muito embora se pudesse tomar as “raças”, como tendo qualidades positivas, colocando a “raça branca” como inquestionavelmente superior, o que não podia se realizar era a “mistura” ou o “cruzamento” entre elas. Dois pontos a ressaltar: 1) a doutrina racista estabelece que as “raças humanas”, embora situadas em escalas de atraso e progresso, tinham qualidades e seriam mesmo até dignas de admiração, caso não fossem jamais colocadas lado a lado. 2) O segundo é a condenação fundamental de suas relações.

O problema é considerar cada “raça” em si, mas nunca estudar suas relações porque elas demandam estruturas de poder diferenciadas e hierarquizadas. (“Racismo cientifico” norte americano, que corresponde de fato à realidade social daquele país, onde o credo igualitário, o individualismo e o ideal de igualdade perante a lei, criaram obstáculos insuperáveis para as uniões entre pretos e brancos em outros planos que não fosse  o do trabalho). O mulato é tão desprezível no credo racial americano, porque é considerado negro e essa posição se funda na existência concreta de um credo igualitário e individualista. Como então encontrar lugar para negros (ex-escravos), num sistema que situava e situa o individuo e a igualdade como principal razão de sua história social? A resposta foi  a discriminação violenta na forma de segregação que, diferentemente do caso brasileiro, assumiu a forma clara e inequívoca de segregação legal, fundada em leis. Como uma sociedade individualista pode resolver o problema da desigualdade?

A reação dos teóricos americanos e europeus ao “mestiço” no Brasil segundo a qual o Brasil não tinha futuro porque era um país de mestiços e de “mulatos”, de sub- raças híbridas e fracas, pode ser explicada como um modo de rejeitar a hierarquia que permite se ameaçar as elites com todo tipo de encontro e intimidades entre pretos, índios e brancos. (Dilemas de enfrentamento do trabalho escravo).

 

DA MATTA, Roberto, Relativizando: uma introdução à Antropologia Social, Petrópolis Vozes, 1981.

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