A guerra dos “outros”

Um dos sub-produtos da guerra em curso dos EUA contra o terror, é a mudança na avaliação e expectativas dos brasileiros em relação aquele país. Na verdade, os atentados de 11 de setembro, o bioterrorismo e o medo de que a guerra contra o terror resulte em mais atentados contra os EUA são fatores que alteraram a percepção dos brasileiros sobre eles e também sobre o Brasil. É o que diz pesquisa realizada pelo Data Folha com os resultados publicados na Folha de São Paulo de 04/11/2001 que revela que “para 45% dos paulistanos, a imagem dos EUA piorou após atentados”, e em contrapartida, a visão positiva do Brasil aumentou em 11%. É uma pesquisa qualitativa em que “foram ouvidas 50 pessoas, em cinco grupos, de São Paulo, das classes A e B, de 18 a 45 anos. Todas tinham curso superior, viajaram de avião nos últimos 12 meses e tiram férias todos os anos.”

Por Sueli Carneiro

Uma das entrevistadas, sintetiza o sentimento que os recentes acontecimentos provocaram: “Com os atentados, houve a perda de referencial que significava ascensão pessoal, cultural e profissional. Os EUA eram a possibilidade de ser um brasileiro melhor. Isso foi adiado.”

Os principais motivos alegados pelos pesquisados para a piora da imagem norte-americana são: os EUA demonstraram fragilidade na segurança (26%) e eles estão atacando inocentes ou civis (13%). Na associação dos EUA a aspectos negativos a guerra é a primeira resposta (25%).

Entre os aspectos responsáveis pela melhora na avaliação do Brasil, a paz reinante no país é mencionada como o principal fator de revalorização positiva por esses extratos sociais.

E essa nossa paz foi objeto de brilhante explanação da pesquisadora Sílvia Ramos, especialista em violência e segurança pública em recente seminário ocorrido em Aracaju no qual ela demonstrou que violência urbana no Brasil apresenta padrões definidos pela ONU como indicadores de guerra civil: 350 mortos para cem mil habitantes só no Rio de Janeiro, fenômeno que se repete em níveis semelhantes em outros estados do país. As vítima são na maioria absoluta, homens, jovens, negros e pobres, vítimas de violência letal, assassinados, via de regra, por outros homens, jovens, pobres e majoritariamente negros. Segundo Sílvia Ramos, uma guerra fratricida, na qual se articulam a violência de gênero, de raça e de classe consolidando um verdadeiro genocídio de homens negros.

Nesse imaginário social em que a paz existente no Brasil é recorrentemente citada, está imbuído também o orgulho em relação a inexistência de ódio racial no país o que esconde o fato de que o ódio racial aqui foi substituído por um extraordinário desprezo e indiferença em relação ao negro e as suas adversas condições de vida. E a suposta tolerância racial se sustenta na incapacidade do negro para atritar as relações sociais. Essa impotência parece provocar no dominado uma atitude de auto-flagelo expresso nesse fratricídio dantesco.

De volta de Aracaju, sento ao lado de um simpático senhor que logo entabula conversa. No eterno papo de catastrofistas, eu e ele, comentamos os desacertos do mundo e, em especial os do Brasil, e ele me retorna com a inevitável piada em que Deus explica a um invejoso porque o Brasil foi brindado com tantas beneses: terras abundantes e cultiváveis em que se plantando tudo dá; rios caudalosos, praias maravilhosas, belezas naturais invejáveis. Mas em contrapartida disse Deus, “você verá o povinho que eu vou pôr lá.”

E essa parece ser a visão das classes superiores sobre o país que segundo a Folha de São Paulo, apresentam “sentimento dominante é de orfandade” diante dos eventos ocorridos nos EUA, o país capaz de tornar-nos “brasileiros melhores”.

Se o desconforto com o próprio país não é percebido como resultado da ação ou inação dessas mesmas classes dominantes, se elas não se sentem responsáveis pelo país que construíram então, a culpa do país ser o que é, deve ser provavelmente do “povinho” que aqui habita.

Diz o prof. Renato Janine da USP na mesma matéria da Folha: “os atentados nos EUA foram uma espécie de ‘my world’ caiu para a classe média. Ela construiu sua identidade a partir da dificuldade de lidar com o Brasil”. E o prof. Antônio Pedro Tota da PUC-SP relembra: “Não é a primeira vez que a elite brasileira se sente orfã. Em 14 de junho de 1940, quando a Alemanha invadiu Paris, a elite carioca mandou rezar missa pela desocupação da cidade. É um sentimento que se repete agora.”

Paris no passado ou Miami hoje, a elite brasileira continua de costas para o país, dialogando, se espelhando e se identificando com as elites brancas ocidentais do primeiro mundo.

O cineasta tcheco Peter Václav em recente visita ao Brasil comentou a repórteres: “São Paulo é um lugar onde você sente a vida pulsar. Só não entendo como as pessoas aceitam tanta desigualdade.” Frase semelhante foi dita pelo sociólogo italiano Domenico Dimasi em sua primeira visita ao Brasil referindo-se especificamente á atitude blazes dos intelectuais brasileiros frente as desigualdades.

As classes A e B objeto da pesquisa do Data-Folha e os intelectuais brasileiros de Dimasio tem em comum serem majoritariamente brancos. A indiferença que compartilham diante das desigualdades tem a ver com o fato de que a guerra civil que essas desigualdades provocam é dos “outros”, não por acaso majoritariamente não-brancos. E é sempre necessário repetir que os Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) de negros e brancos no Brasil faz com que a população branca em sua maioria desfrute de condições de vida semelhantes a países como a Bélgica enquanto a população negra apresenta índices abaixo de pelo menos 10 países africanos em termos de qualidade de vida.

A guerra civil de cá, os atentados permanentes praticados pelo racismo e a discriminação no Brasil contra metade de sua população não merece de nossas classes dominantes nem orações, quanto mais ações.

A anos atrás, num Seminário para a Elaboração de Uma Agenda Nacional de Governabilidade, organizado pelo PNUD um então ministro do primeiro governo de FHC afirmou que o governo sentia-se obrigado a negociar com movimentos sociais que colocavam em risco a governabilidade citando o MST como um exemplo. Perguntei-lhe se em sendo essa a lógica do poder, significaria que os negros só teriam a chance de negociar uma agenda socialmente inclusiva se tornassem-se capazes de colocar em risco a governabilidade do país. Ele não me respondeu e a pergunta continua me atormentando.

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