A lenda de Jarid, Dandara e das guerreiras de nossa terra

A história e as lendas de heroína quilombola inspiram livro de Jarid Arraes

Por Maíra Carvalho Branco Ribeiro Do Revista Capitolina

Escritora de cordel urbana e conectada, com pegada feminista: como montar esse quebra-cabeça?

Jarid Arraes consegue com destreza. Feminista e jornalista-escritora, ela está lançando seu primeiro livro de prosa,  As lendas de Dandara. Autora da coluna na Revista Fórum e de trinta cordéis, ela produziu dez contos sobre a guerreira quilombola Dandara dos Palmares, companheira de Zumbi dos Palmares, que mostram uma história que muitos brasileiros esqueceram.

A Jarid conversou com a Capitolina sobre como foi escrever seu primeiro livro e como ela achou nas palavras a melhor maneira de se expressar.

Jarid, você é jornalista, feminista, escritora. O que veio primeiro na sua vida, a escrita ou o feminismo? Como foi esse processo?

Sabe que é até difícil definir isso? Eu escrevia muita coisa desde muito novinha, cheguei a ganhar algumas competições quando criança, mas na minha cabeça a ideia de ser uma escritora, como uma espécie de profissão, era algo muito borrado pela ideia que eu tinha da realidade. Por mais que eu sonhasse com isso, como eu tinha pouquíssimo acesso a obras de escritoras, principalmente negras e nordestinas, eu achava que esse sonho era irrealizável, que eu jamais conseguiria.

O machismo, o racismo e o preconceito contra nordestinos sempre foram coisas que me revoltaram e incomodaram profundamente, mas até que eu conhecesse o Feminismo, eu não sabia organizar muito bem o meu incômodo para compreender a sociedade de maneira mais crítica e política. Quando deparei com o Feminismo foi que tive a sensação de ter encontrado a explicação para todos aqueles desconfortos e foi a minha indignação que me fez voltar a escrever. Primeiro, textos de opinião, conteúdos voltados diretamente para o ativismo e a percepção feminista do mundo; depois senti a necessidade de também expressar esses sentimentos e ideias pela Literatura de Cordel. Com um pouco de apoio de outras mulheres incríveis, fiz um esforço para reconhecer que eu poderia, sim, ter talento. E, finalmente, estou lançando meu primeiro livro.

Acho que sem o Feminismo, sobretudo sem o reconhecimento e o apoio de outras mulheres, eu talvez não tivesse me tornado escritora, porque eu não teria rompido as barreiras que a falta de representatividade, o machismo e o racismo criaram. Quando você para pra pensar na gravidade disso, em como a misoginia e o racismo podem podar seus talentos e sonhos, você percebe o quanto esse quadro é grave.

Por que você, uma escritora jovem e urbana que também escreve em formato de cordel, escolheu escrever a obra As lendas de Dandara em prosa? Como são essas duas experiências pra você: a prosa e o cordel?

Eu decidi começar a escrever cordel porque meu pai e meu avô são cordelistas, então eu cresci nutrindo uma relação muito íntima com a Literatura de Cordel e com a cultura popular nordestina. Apesar de hoje eu morar em São Paulo, sou do interior do Ceará, de uma região chamada Cariri, e sempre valorizei muito a cultura do meu povo, nossa arte e nossa oralidade. O cordel também é minha grande paixão porque é uma literatura acessível, barata, que as pessoas podem compreender e repassar com muita facilidade. Isso foi fundamental para que eu decidisse escrever cordel abordando temáticas raciais, de gênero, LGBT, enfim. Pensei em romper paradigmas e preconceitos ao mesmo tempo que valorizo uma tradição popular tão importante.

Já sobre o livro As lendas de Dandara, que é escrito em prosa, o processo foi bem diferente. Escrever um livro inteiro, uma história inteirinha, e não ter o recurso do cordel, das estrofes e rimas, foi mesmo um desafio. Mas eu tinha essa necessidade visceral de publicar minha ideia sobre Dandara dos Palmares, de propagar sua memória e de contar as ações heroicas e lendárias que eu imaginava que Dandara tinha realizado em sua vida. E desde que tive a ideia da história, pensei em publicá-la como prosa, porque assim eu conseguiria explorar muitos elementos dos personagens e do contexto em que se passa a narração. Publicar um livro em prosa também foi uma superação pra mim, mais uma forma de romper com a dificuldade que é ser uma escritora negra; foi uma ação de afirmação e celebração da produção literária feminina e negra. Eu espero que o meu exemplo sirva de encorajamento para outras mulheres que escrevem.

Como foi essa experiência? Como tem sido a receptividade das pessoas?

A experiência foi muito intensa e repleta de aprendizado. Enquanto eu escrevia, encarei bem de frente as questões que envolvem o lugar da mulher no mercado literário e também a invisibilidade das histórias que valorizam a cultura afro-brasileira. Cada parágrafo escrito me trazia uma sensação de vitória e de desafio, afinal, é difícil encontrar informações sobre Dandara, é difícil encontrar livros que tenham mulheres negras como protagonistas, é difícil também conseguir publicar depois que a obra está pronta. No fim das contas, eu fiquei muito orgulhosa do resultado. Quando vi a obra toda terminadinha, com a capa e as ilustrações maravilhosas feitas pela Aline Valek, eu senti que consegui concretizar um grande sonho. E o retorno das pessoas tem sido incrível, superpositivo e encorajador. Eu percebo que estamos muito carentes de conteúdo desse tipo, de histórias que rompam padrões machistas e racistas. Por isso as pessoas me procuram com palavras tão empolgadas. Por causa da demanda, resolvi lançar o livro também em versão física, porque recebi muitas mensagens de pessoas interessadas em adquirir o exemplar físico e não somente o e-book.

A personagem histórica Dandara, companheira do Zumbi de Palmares, que lutou ao lado dele, é praticamente desconhecida no Brasil. Como você conheceu Dandara? Por que decidiu retratá-la numa história?

Conheci Dandara ao ouvir uma companheira de ativismo mencionando seu nome, enquanto ela falava de como a historiografia oficial negligencia as mulheres negras. A partir daí, corri para pesquisar mais sobre ela e acabei ficando muito frustrada ao perceber que pouquíssimo conteúdo estava realmente acessível a seu respeito. E acho que isso já dá a dica de por que ela é ainda tão desconhecida: embora a gente tenha até ouvido falar de Zumbi quando estudávamos a história do Brasil, mesmo que de maneira muito superficial, líderes quilombolas como Dandara permanecem esquecidas. O machismo e o racismo atuam juntos para que esse esquecimento seja perpetuado.

Em 2014 escrevi um texto para minha coluna na Revista Fórum, perguntando aos leitores se eles sabiam quem era Dandara dos Palmares. O texto teve uma excelente repercussão nas redes, mas muitas pessoas comentaram coisas agressivas. No meio dos comentários, vi gente falando que Dandara não era nada mais do que uma lenda. E isso mexeu comigo por muitos dias. Eu pensei que se era uma questão de lenda, então eu tinha que escrever essas lendas, espalhar pelo mundo as lendas de Dandara, porquequer seja realidade, folclore ou fantasia, a memória dessa guerreira, a simples menção de sua existência, já é um grande fortalecimento para as mulheres negras brasileiras e suas lutas. Precisamos falar sobre Dandara e o que ela representa também enquanto símbolo e resistência.

A internet tem sido uma ferramenta bastante usada por você. Como é a sua relação com a web, e qual o impacto na sua produção literária? Influencia, potencializa?

A internet tem sido fundamental para que eu possa compartilhar meu trabalho e construir uma relação significativa com quem me lê e acompanha. Não só na Revista Fórum, onde eu escrevo quase diariamente sobre Feminismo, questões raciais e Direitos Humanos. Mas até mesmo o alcance dos meus cordéis se torna muito maior porque as redes fazem com que esse conteúdo se espalhe e chegue até as pessoas que estão realmente interessadas. A melhor parte disso é que eu não fico à mercê das grandes mídias ou grandes editoras. E, além de tudo, eu recebo as reações e expectativas dos leitores de forma direta, leio as mensagens, acolho sugestões e leio até mesmo depoimentos que me inspiram e encorajam. Para autoras independentes e para mulheres que escrevem, a internet também é uma forma de exercer a própria autonomia.

Aproveitando a oportunidade, qual é o seu cordel favorito?

Sinceramente, sempre que releio meus cordéis eu acabo escolhendo um diferente! Mas posso citar dois que estão publicados gratuitamente na minha coluna da Revista Fórum: o Não Me Chame de Mulata e O Nordeste é a Periferia do Brasil. Acho que ambos dizem muito sobre a construção da minha identidade e o lugar que chamo de meu nesse mundo.

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