A luta do rap com a tragédia

Fonte: O Povo-

Tradicionalmente, a construção do rap brasileiro se estabelece a partir de três grandes questões: o racismo, a pobreza e a violência. Cada vez mais assumida por espaços oficiais, como a imprensa e a academia, essa produção incorpora novas temáticas e discussões

As experiências estéticas produzidas pela juventude dos bairros das periferias das grandes cidades brasileiras ganharam uma visibilidade incomum através do movimento hip hop, que é um verdadeiro laboratório de linguagens desenvolvidas pelos seus artistas iniciados nas artes de rua: o rap, o grafite, o break, o basquete de rua.

O mais novo elemento do hip hop, o “conhecimento“, se divide em duas áreas. Uma delas abriga os estudos da teoria e da história do hip hop, e de cada uma de suas artes em particular. Na outra área, a literatura periférica ou marginal, que vem vêm alcançando níveis surpreendentes de publicações. Os autores trabalham em conexão, através de métodos criativos de cooperação entre escritores de periferia, que envolvem trocas numa rede de produção, editoração e distribuição das obras.

Além disso, existem outros tipos de impressos importantes, como o Boletim do Kaos, um jornal mensal totalmente dedicado à literatura, com tiragem de 10.000 exemplares e distribuição gratuita. O projeto é de Alessandro Buzo e Alexandre Maio, escritores de São Paulo. Buzo se auto intitula “o suburbano convicto“ e desenvolve mil atividades nas favelas, no mundo virtual dos blogs e na televisão.

Mesmo que esses acontecimentos literários, que se encontram atualmente em plena expansão, sustentem uma autonomia e não estejam necessariamente submetidos ao movimento hip hop, foi a “atitude hip hop“ que marcou boa parte dessa manifestação cultural chamada de “literatura marginal“. Sérgio Vaz, o “Vira-lata da literatura“, autor de vários livros de sucesso e criador do famoso Sarau da Cooperifa, na Zona Sul de São Paulo, disse numa entrevista recente: “No fim da ditadura, o Brasil entrou na gozolândia. Minha poesia ficou fora de moda, ninguém queria mais saber de racismo e pobreza e foi nos anos 1980, ouvindo rap, que pensei: demorou para chegar. Então fui conhecer o rap a fundo. (…) O hip hop salvou a minha literatura. Devo muito a ele“.

O depoimento de Vaz encontra eco nas entrevistas que tenho realizado nos últimos sete anos com jovens de periferia em diversas cidades brasileiras. Todos são unânimes em afirmar sobre a importância do rap na construção de uma nova forma de se relacionar com a negritude. Nego Gallo, do grupo de rap Costa a Costa, Fortaleza, lembrou: “O primeiro rap nacional que me tocou, foi Um homem na estrada, do Racionais MCs, uma referência nova para mim. A geração deles foi super importante do ponto de vista da construção do rap nacional“.

Três questões

Na verdade, essa construção do rap nacional se estabelece a partir de três grandes questões: o racismo, a pobreza e a violência, que coloca o Brasil como o quinto país com maior taxa de homicídio de jovens do mundo, especialmente os jovens negros entre 15 e 24 anos, moradores das favelas e periferias. Antes mesmos que os cientistas políticos e sociólogos publicassem os mapas da violência e os gráficos dessa tragédia urbana no Brasil, as letras do rap já haviam feito tais denúncias, como podemos ler nesses versos do rap Capítulo 4 Versículo 3, do grupo Racionais MCs: “60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais/ já sofreram violência policial/ a cada 4 pessoas mortas pela polícia 3 são negras/ nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros / a cada 4 horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo/ aqui quem fala é primo preto mais um sobrevivente“. Outros versos marcantes se tornaram “clássicos da periferia“ como esses do rap Rapaz Comum, também do Racionais: “Morre um, dois, três, quatro/ morre mais um em breve/ sinto na pele, me vejo entrando em cena/ tomando tiro igual filme de cinema“, e inspiraram toda a produção do rap brasileiro. Os jovens sobreviventes tinham encontrado na forma poética e musical do rap uma possibilidade de fazer o luto e cantar o réquiem para todos aqueles perdidos nessa guerra.

Muitos artistas de rap atualmente seguem rumos insuspeitados e se dedicam a fazer experimentações bastante interessantes, como as fusões do rap com outros ritmos, e a utilização de temas variados no trabalho poético das letras. O pernambucano Zé Brown faz uma mistura do rap com embolada de coco. O grupo Sinhô Preto Velho, de São Paulo, canta na língua Tupi. O Costa a Costa, que segundo o antropólogo Hermano Vianna, tem uma das produções “mais criativas da atual safra musical brasileira“, faz misturas do rap com o funk, samba, ritmos afro-latinos e a música flamenca, por exemplo. Eu os entrevistei em Campina Grande (PB), em 2007, por ocasião do primeiro Encontro Nacional do Rap com o Repente.

Nessa luta do rap com a tragédia, os versos de Don L, do Costa a Costa dão as palavras finais: “Ei chapa…/ na vida você nunca tem duas oportunidades de fazer a mesma coisa/ tá ligado?/ porque se for a mesma coisa, você não é mais o mesmo/ e se você ainda for o mesmo/ não é mais a mesma coisa/ tá ligado?/ Então vive agora…“

 

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