A tortura contra Verônica foi física, moral e psicológica

Para Fábio Mariano, professor e pesquisador na área de gênero, a agressão a Verônica também foi um ato de negação da existência de um indivíduo fora do padrão heteronormativo

Por , do  Ponte 

Em entrevista à Ponte Jornalismo, o professor universitário e pesquisador na área de gênero e direito da PUC SP e do Inanna (Núcleo Transdiciplinar de Investigações de Sexualidades, Gêneros e Diferenças), Fábio Mariano, disse que a travesti Verônica, presa no dia 12 de abril acusada de ter agredido um vizinha e espancada dentro de uma delegacia em São Paulo, sofreu não só uma tortura física, mas também moral, psicológica e social. Ele afirma que cortar o cabelo, tirar o sutiã, rasgar a roupa de um LGBT é negar a existência de um indivíduo por ele estar fora do padrão heteronormativo. Destaca também que o Estado não aceita cidadãs que queiram viver com uma genitália masculina. “A mulher está impossibilitada de viver com um pênis, e é esse corpo desconstruído que eles não admitem.”

No áudio divulgado pela secretária de Políticas para a Diversidade Sexual do Estado de São Paulo, Verônica assume a responsabilidade pela agressão que sofreu, pela sua experiência no convívio com transgêneros, por que ela fez isso?

Fábio Mariano – Da maneira como Verônica falou está claro o medo da morte. Para se resguardar, ela protege seu agressor. Você ser torturado e negar é muito comum dentro da justiça, porque quando a pessoa está numa fragilidade tão grande ela precisa pensar na família, nas amigas, nas companheiras de luta e precisa se proteger. É uma situação muito contraditória, a vítima precisa proteger o agressor para preservar a própria vida. Agora é inacreditável que um ser humano que está dentro da cadeia possa ser desfigurado por um agente do Estado. Isso é coisa do tempo da ditadura. E não por se tratar de ser uma travesti, é porque é um ser humano.

Mas para a secretária de Políticas para a Diversidade Sexual não houve tortura, pelo contrário, ela assume a versão que a própria Verônica entrou na briga…

Fábio Mariano – A gente vive num sistema prisional que a socialização é dispensada em nome do aprofundamento das desigulades. Na hora que a Secretária chegou à delegacia, ela deveria ter chamado o corregedor. Porque é arbitrário, inconcebível que um agente do Estado encoste no corpo de qualquer pessoa que esteja em situação priosional, independente do gênero ou orientação . Ela poderia, por exemplo, ter questionado o porque desse agente do Estado ter entrado na cela para agredir a presa. Ninguém questiona que Verônica cometeu um crime. A questão é quando a secretária chega lá e diz que não houve tortura e que “nós gravamos e fomos verificar”. Isso é papel dos defensores, mas veja os próprios defensores, conforme noticiado na imprensa, não conseguiram se reunir com Verônica sem a presença dos policiais. É um outro erro, é um direito dela se reunir com seus advogados. Se a secretária tinha que verificar alguma coisa deveria ter começado por aí. Aliás, do ponto de vista semiótico, o discurso da secretária é idêntico ao de Verônica, ela diz que não quer ser usada para fins políticos, que agrediu, não foi agredida, então tem um problema claro aí. O que caberia à Secretária é denunciar aquilo que foi feito de maneira arbitrária com uma presa, ela se portou fazendo ser a voz da vítima , quando a palavra da vítima é a mais importante nesse momento.

É comum pessoas LGBT serem agredidas pela sua condição quando são presas?

Fábio Mariano – Há muitas denúncias que acontecem por parte de membros da comunidade LGBT. Denúncias que variavam em intensidade em relação aos agentes que comentem os abusos – ora por das autoridades do Estado, mas também pelos próprios presos. Digamos que nesse último caso, ocorre por facilitação do próprio agente estatal que não cria condições para evitar esses abusos. Como o determinismo biológico faz parte do Estado, ele não se conforma que dentro dele existam cidadãs que queiram viver com uma genitália que ele considera masculina. Mulheres não vivem com pênis e é esse corpo que eles não admitem. Assim, muitas travestis quando presas são jogadas em celas com presos homens, e acabam submetidas a humilhações, porque costuma-se relacionar travesti à prostituição e ao desejo do sexo. O raciocínio do agente estatal quando encarcera é: “não é disso que você gosta”? ou “agora você vai pagar pelo que é.” É uma indignidade cortar o cabelo, expor os seios. Por que? Porque o homem anda com o peitoral de fora, a mulher não. Pior, no meio de 20, 30 presos, eles obrigam a travesti a agachar e na hora que você abaixa a genitália imediatamente aparece. A pergunta implícita aí é : o que é você? É a negação da identidade da cidadã. A negação do direito. É o caminho para dizer : volte a invisibilidade.

Verônica Bolina, antes de ser agredida por policiais civis em delegacia de SP
Verônica Bolina, antes de ser agredida por policiais civis em delegacia de SP

A humilhação também se dá ao trazer o corpo da travesti de volta para o que eles reconhecem como masculino…

Fábio Mariano – Somos regidos pelo binarismo, a imposição de que o ser é única e exclusivamente um ser biológico, de maneira que o Estado criou e se apropriou da classificação estipulada que se dá por homens e mulheres, sem meias fronteiras. Quando você escapa ou se reconhece fora desses padrões, torna-se o abjeto, deve viver à margem. É o discurso sexista: nós não a aceitamos como travesti e é partir daqui, como homem, que você deve iniciar sua vida, não como mulher. Programas televisivos e de um jornalismo inóspito tem contribuído sistematicamente para o aprofundamento desses preconceitos identitários.

Quando você diz que o Estado criou homens e mulheres, você se refere a Focault? Pode explicar melhor?

Fábio Mariano – Foucault não fala de gênero dessa forma como temos estudado. O que podemos entender é que a divisão binária dos sexos, assim como a invenção do gênero, é um pouco posterior a invenção do estado moderno da forma como conhecemos, que se apropriou de um discurso e de uma prática. Poderíamos, influenciados pela ideia do Foucault de um dispositivo de sexo, relacionar as duas coisas e entender que a divisão sexual vem a atender à necessidade do biopoder regulador do Estado. A questão é que isso foi inventado pelos vitorianos e permanece até hoje, se não imutável, pelo menos inquestionado pela ótica do Estado.

O delegado argumentou que Verônica não foi para uma cela especial porque ela não solicitou. Ela precisava ter reivindicado?

Fábio Mariano –  Ele poderia ter tomado essa iniciativa, ao reconhecer a identidade dela. LGBTs, especialmente travestis, fazem parte do um grupo de vulneráveis que vem sendo sistematicamente desrespeitados em sua dignidade todos os dias dentro e fora da prisão. No ambiente de trabalho, quando há trabalho, na educação quando conseguem ter acesso. Coloca-la em cela comum é reafirmar o fato de que ela não tem direito a sua personalidade , sob todos os aspectos. É reativar a marca da injúria que sofre todos os dias. Verônica é uma mulher travesti, faz parte do grupo de transgêneros, o delegado ao notar isso deveria ter imediatamente recorrido a esse direito a fim de garantir a integridade dela. Ela pode até não se enquadrar nos critérios que se estabelecem dentro do Código de Processo Penal, mas é preciso deixar o legalismo de lado quando a dignidade de uma cidadã está em jogo. É preciso lembrar que tanto no estado de São Paulo como em outros existem portarias garantindo celas especiais para LGBTs. Existe também uma portaria especial da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, de 2014, que garante celas especiais para pessoas trans, travestis, gays e lésbicas.

Isso obrigaria o delegado a colocá-la em cela especial?

Fábio Mariano – É possível argumentar que não, já que trata-se de uma resolução, não de uma lei, mas essas portarias visam resolver um vício, um erro ou uma distorção da lei frente a complexidade social que vivemos, porque ao dar cela especial para quem tem diploma, o artigo 295 protegia homens e mulheres, héteros, brancos. Essa resolução vai além, ela resguarda os invisíveis, aqueles que a sociedade põe à margem. A Verônica poderia ter recorrido a esse artifício? Sim. Mas o delegado também poderia ter feito isso. Agora o que precisamos saber também é como essas imagens vazaram. Se essas imagens não tivessem vazado não teríamos a dimensão do que tinha acontecido e que acontece todo dia frente a truculência da polícia estatal.

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A divulgação das imagens de Verônica machucada, com seios à mostra, foi uma espécie de tortura?

Fábio Mariano – Foi uma tortura física, moral, psicológica e social. O membro da comunidade LGBT quando sofre injúria ele revive uma tortura a que é submetido o tempo todo como indivíduo, é o xingamento, a exclusão, a invisibilidade, o asco, o estigma de ser alguém diferente e que você não pode ser porque os padrões ocidentais dizem o contrario. É um repúdio físico, psicológico, social. Quando você corta o cabelo, tira o sutiã, rasga a roupa de um LGBT você está negando a existência de um indivíduo por ele estar fora do padrão heteronormativo, do padrão de normalidade socialmente estabelecido e apropriado pelo Estado.

Acha que Verônica pode voltar atrás e falar?

Fábio Mariano –Acho que as organizações que têm se manifestado publicamente querem que Verônica fale, mas que fale sem coação e estando muito bem custodiada. Mesmo assim, nada garante que ao sair, e essa é uma realidade triste, que ela não irá sofrer retaliações e sanções de todas as formas. Por isso torna-se ainda mais imperioso que se tenha muito cuidado da condução desse caso. Muitos órgãos e advogados tem se manifestado e defendido que ela tenha todos os meios legais garantidos e a sua integridade permaneça intacta, se é possível diante de um arbítrio como esse. Ela deve falar, suas iguais devem falar e não devemos medir esforços para apoiá-las

Como você avalia a reação da sociedade?

Fábio Mariano – Houve por parte da mídia tradicional um discurso que parecia querer culpá-la ainda mais. O uso de termos pejorativos utilizados por um “tal” jornalismo. Outros sequer noticiaram essa violação. Mas vi muitas pessoas indignadas e se manifestando, dizendo, de fato, que a questão não poderia ser tratada dessa forma. Poucos parlamentares que estão ligados as causas LGBTs se manifestaram, o secretario da coordenadoria de direitos humanos do município, advogados militantes chegaram a ir na delegacia. Nas redes sociais vi muita indignação, mas com tempo se esquece, como esqueceram da Cláudia, do Amarildo, da vítimas do Alemão no Rio de Janeiro.

O que fazer para não cair no esquecimento?
Fábio Mariano – As ONGs , os partidos políticos, os coletivos que trabalham nas questões ligadas aos Direitos Humanos precisam colocar o bloco na rua, mas sobretudo é preciso que tudo isso seja feito com responsabilidade nesse momento, pois o caso é delicado. É a vez de se empoderar e dar voz para que travestis e transexuais homens e mulheres tomem a dianteira dessa luta e sejam apoiados por todos nós. É preciso que todos se angustiem e busquem um basta contra essas violações cotidianas.

Mas até agora isso não aconteceu.

Fábio Mariano – As coisas estão muito estranhas. Uma onda conservadora tomou conta do país. Somos comandados por bancadas que se destacam pelo arbitrário da lei como os parlamentares fundamentalistas, do agronegócio e da bala. O que podemos esperar ? Nada. Mas o que temos que fazer? Sair as ruas, reforçar coletivos, dar visibilidade e denunciar diuturnamente esses abusos. Apoiar os defensores e advogados que compareceram para ajudar nesse e em outros casos. Nunca é demais lembrar a lição Foucaultiana que diz que o interesse do Estado é transformar sujeitos em politicamente dóceis e economicamente úteis.

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