África e cultura negra aparecem com restrições nos livros didáticos

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O ensino da história da África e da cultura afro-brasileira foi garantido por leis que existem há mais de dez anos. Porém, muitos livros didáticos usados nas escolas públicas ignoram, restringem, estereotipam ou mesmo diminuem a participação dos negros e da África na formação do Brasil.

no R7

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O R7 analisou resenhas das obras de português, história, geografia e artes plásticas, selecionadas pelo governo federal nos últimos dois anos e descobriu que estas falhas de abordagem foram detectadas pela própria Secretaria de Educação Básica do MEC (Ministério da Educação) nos guias de livros didáticos inscritos no PNLD (Programa Nacional do Livro Didático).

Português e artes
Com relação ao material das disciplinas de português e artes usado no ensino médio, os documentos do MEC sinalizam que ainda são poucas as obras que consideram as produções africanas para o ensino de literatura, além das europeias (principalmente portuguesa) e das nacionais.

No ensino fundamental, as abordagens, quando são feitas, ocorrem de maneira indireta, por meio de desenhos e narrativas que expressão a diversidade étnica. As obras também destacam que o professor deve complementar o conteúdo com materiais que ele julgue necessários.

Para Giselda Pereira de Lima, arte-educadora, especialista em mitos africanos e mestranda em Artes na Escola de Comunicações e Artes da USP (Universidade de São Paulo), o conteúdo nos livros é reflexo, entre outras coisas, de preconceitos para lidar com a produção literária e artística africana e afro-brasileira.

— Como a literatura africana tem uma base oral, existe uma resistência de aceitação por parte da academia, que valoriza muito mais aquilo que foi escrito enquanto literatura.

Ela lembra que, no final do século 19 no Brasil, artistas e pesquisadores estavam buscando construir uma arte nacional que fosse de identidade não apenas europeia. Mas, nos projetos escritos, não houve preocupação em incluir a estética da arte negra e indígena. Isso refletiu na forma como a arte consta nos currículos escolares até hoje.

Quanto aos livros de artes do ensino médio, não há destaque para o estudo das produções africanas e afro-brasileiras. A apesar de ser mencionada a valorização da diversidade de expressões e proposições artísticas, há obras em que, novamente, a recomendação é para que a abordagem seja feita pelo professor.

— Mas isso é complicado, porque, no fim, o descrédito que foi dado à arte negra se reflete na escolha dos professores. Quando eles têm a opção de trabalhar contos africanos na sala, o que é oportuno na educação infantil durante a alfabetização, por exemplo, não o fazem por falta de referência ou por não entenderem os contextos culturais dos contos.

História e geografia

Os livros de história selecionados pelo PNLD em 2013, na sua maioria, trazem capítulos específicos sobre a história da África ou sobre a relação dela com a história do Brasil.

Porém, com relação às obras do ensino fundamental 1, a análise presente no Guia do MEC diz que: “para muitas obras, nos momentos históricos subsequentes à colonização, em relação ao movimento abolicionista, por exemplo, o tratamento dispensado ao tema valoriza as concepções tradicionais, que secundarizam a participação dos afro-brasileiros no processo histórico”.

Os guias também apontam que, na maioria dos livros didáticos da disciplina, a contribuição dos negros africanos brasileiros para a cultura nacional aparece associada à música, à dança, à alimentação, à religião, às festas e a termos incorporados à língua portuguesa.

Giselda explica que é importante que os professores valorizem com os alunos esses aspectos da cultura afro-brasileira, mas sem que sejam reproduzidos estereótipos.

— É preciso lembrar sempre que a arte negra está ligada a uma produção artística histórica, reflexiva e de resistência.

Já o material usado nas aulas de geografia aborda a cultura afro-brasileira e a diversidade étnica do Brasil de forma genérica e não estrutural nos conteúdos específicos de cada série.

Nas análises das obras do ensino fundamental 1, por exemplo, o MEC ressalta que: “a maior parte dos livros em questão trata essa contribuição — indígena e afrodescendente — como sendo parte de um momento específico da formação territorial e não como constituinte do espaço geográfico na atualidade”.

Com relação ao ensino fundamental 2, foram constatadas falhas das obras que dão “pouco ou nenhum destaque ao papel da mulher, do indígena e do afrodescendente na sociedade contemporânea, especialmente na brasileira, com pouca ênfase nas especificidades locais e regionais”.

A análise do ministério mostra ainda que do total dos 24 livros de geografia de abordagem nacional e regional para o ensino fundamental 2 inscritos no edital de 2014, somente a metade “promove positivamente a cultura afro-brasileira e dos povos indígenas”.

Governo diz que cumprimento pleno da lei exige tempo

Macaé Evaristo, secretária da Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão) do MEC, diz que o órgão cumpre seu papel e que realiza a produção de conteúdos específicos de apoio aos professores.

— O que a gente precisa perceber é que nós estamos lutando contra 500 anos de racismo. A Lei 11.645 foi riada para desconstruir uma lógica que estruturou a sociedade brasileira. Então estamos falando de uma concepção de transformação da escola e da educação do País.

O ensino da cultura negra nas escolas foi introduzido pela Lei 10.639, de 2003. Cinco anos depois o governo federal sancionou outra norma, a Lei 11.645, que determina que “os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileira […] nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e privados”.

No ano passado, o FNDE (Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação) gastou mais de R$ 1,2 bilhão com livros didáticos. Para participar da seleção pública, as obras têm que respeitar os temas do currículo escolar, entre eles, o ensino da história da África e cultura afro-brasileira. Entenda o processo de compra dos livros didáticos no infográfico.

Aplicação da lei que valoriza cultura negra depende dos Estados e municípios, diz MEC

Em vigor há 11 anos, a lei que obriga que as escolas brasileiras de ensino fundamental e médio insiram em seus currículos o estudo da história da África e da cultura afro-brasileira não teve um acompanhamento direto desde sua implantação. Não foram levantados, por exemplo, dados sobre quais e quantas são as redes de ensino que já implantaram a lei nas escolas.

Questionada sobre o assunto, Macaé Evaristo, secretária da Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão) do MEC, afirma que a implantação e o acompanhemnto do cumprimento da lei depende de ações dos municípios e dos Estados.

— Tem coisas que são muito específicas. Cada sistema de ensino tem que fazer o acompanhamento e monitoramento da sua rede e das suas instituições. Nós trabalhamos aqui numa perspectiva mais macro. Às vezes, pode-se exigir um tipo de registro e de monitoramento que é da competência dos sistemas de ensino e não do Ministério da Educação.

Em contrapartida, o MEC esclarece que Estados e municípios podem solicitar recursos ao governo federal para promover a implantação da lei. Além disso, o ministério explica que disponibiliza materiais específicos para a formação de professores.

 

Falta de metodologia 


Para a deputada Iara Bernardi (PT-SP), a boa implantação do conteúdo previsto nas leis nas escolas não depende exclusivamente da criação e da disponibilização de materiais didáticos sobre o tema.

Em maio de 2013, ela solicitou a realização de uma audiência pública na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados para discutir o caminhar da implantação das leis nas redes escolares do Brasil.

— Na época, percebemos que o Ministério da Educação tinha apenas dados sobre atividades pontuais associadas à implantação da lei. Mas não havia informações sobre como isso ocorre de maneira geral e ampla nas escolas de ensino fundamental e médio do País.

A deputada conta que essas informações ainda não foram encaminhadas pelo MEC para a comissão da Câmara, apesar de, na ocasião da audiência, isso ter sido solicitado.

“Isso mostra que não é mais problema da existência ou não de material ou formação para a abordagem do tema. Falta metodologia de políticas públicas e sensibilização de fato das redes estaduais e municipais para a inserção dos conteúdos nas escolas”, avalia Iara.

Implementação e análise 

Além dos questionamentos da Câmara, o estudo “Práticas Pedagógicas de Trabalho com Relações Étnicorraciais na Escola na perspectiva da lei 10.639/03”, pondera que “apesar das várias ações já desenvolvidas pelo MEC [Ministério da Educação] em prol da Lei, ainda não existe um registro oficial e sistematizado com dados de implementação da Lei no interior do próprio MEC”.

“O que existe são dados de execução e relatórios de avaliação de programas e ações realizadas”, diz trecho da pesquisa lançada em 2012 e realizada por docentes e pesquisadores da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), em parceria com o MEC e a Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação).

Segundo Macaé, atualmente, o MEC levanta informações sobre a abordagem da história da África e da cultura afro-brasileira nas escolas por meio de questões específicas inseridas nos censos, tanto o escolar quanto o da educação superior.

A representante do MEC analisa que, para o governo, os gestores devem demonstrar em suas respostas dos censos como tem sido a implantação da lei na instituição de ensino.

— No Censo da Educação Superior, temos uma pergunta que trata sobre a inclusão da Lei 10.639 no currículo das universidades. No caso da implantação de novos cursos votados a professores, hoje só são aprovados aqueles que preveem disciplinas que tratam do tema.

A secretária conta que o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) também tem sido um mecanismo de acompanhamento da implantação da lei.

— Essas questões [sobre a história da África e a cultura afro-brasileira] têm reiteradamente sido incorporadas entre os itens da prova. Então a avaliação é um dos elementos por meio do qual a gente observa se os alunos brasileiros têm uma compreensão maior ou menos dessa temática por meio do que aprenderam nas escolas.

Formação e material didático são chave para boa abordagem da história dos negros nas escolas 

MEC desenvolveu material didático de formação para professores sobre cultura da África
Reprodução/ Daily Mail

Uma maneira eficar de fazer as editoras abordarem a história da África e da cultura afro-brasileira de maneira estrutural nos livros didáticos é melhorar a produção e a distribuição de materiais específicos do MEC (Ministério da Educação) para a formação de professores sobre este tema.

Segundo Macaé, secretária da SECADI (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão) do MEC, o governo já viabilizou a tradução de oito edições de livros da coleção História Geral da África.

A coleção foi criada por mais de 350 especialistas de diversas áreas do conhecimento, sob a direção de um Comitê Científico Internacional formado por 39 intelectuais, sendo dois terços deles africanos.

O MEC também fez cadernos temáticos ensinando aos professores como usar a produção. No último ano, foram entregues os cadernos voltados para a educação infantil.

— Estamos produzindo os cadernos do ensino médio e vamos lançar, ainda este ano ou no ano que vem, o caderno para professores do ensino fundamental. Além disso, estamos trabalhando na tradução do nono livro da coleção História Geral da África, conta a secretária.

Formação

Para educadores, a persistência de problemas de abordagem – ou mesmo a falta dela— sobre a história da África e cultura afro-brasileiro nos livros didáticos e nas salas de aula tem relação com a formação e a informação quanto aos temas.

Marcelo d´Salete professor de artes visuais na Escola de Aplicação da USP (Universidade de São Paulo), localizada na zona oeste da capital paulista, conta que sua formação para a abordagem desses assuntos na escola veio por um interesse particular.

— Mas além da iniciativa própria, é preciso pensar em novas grades curriculares nos cursos universitários. Não podemos continuar apenas ensinando uma versão única dos fatos e da história.

A percepção é confirmada nos apontamentos presentes no livro “Práticas Pedagógicas de Trabalho com Relações Étnicorraciais na Escola na perspectiva da lei 10.639/03”. O estudo foi lançado em 2012 e realizado por docentes e pesquisadores da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), em parceria com o MEC e a Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação).

Segundo a pesquisa, por vezes, as abordagens sobre a África nas salas de aula ficam restritas às iniciativas de professores autodeclarados negros e com licenciatura nas áreas de história e artes. Outras vezes, as temáticas indicadas pelas leis ficam restritas a atividades que têm tempo de duração e período específicos.

A diretora de uma escola pública da cidade de Colíder, no Mato Grosso, entrevistada pelos pesquisadores diz que sua formação acadêmica e seu reconhecimento como negra influenciam para a realização de atividades sobre a África e os negros em sua escola. A biblioteca da instituição tem um espaço razoável para estudo e conta com referências bibliográficas sobre a temática étnico-racial.

— Eu sou uma autodidata, eu não paro de trabalhar, então, quando eu comecei a estudar, a fazer muitos cursos na psicologia, na psicanálise, [na área] do comportamento humano, vi que o preconceito desestrutura a pessoa, diminui a autoestima, diz a diretora.

O estudo mostra os resultados de uma pesquisa amostral feita entre os anos de 2009 e 2012 em 39 escolas públicas de todas as regiões do Brasil. Foram entrevistados cerca de 500 pessoas negras e brancas do meio escolar e educacional, entre docentes, gestores e estudantes.

Formas de abordagem

Muitos professores trabalham os assuntos relacionados à África e aos negros de forma esporádica, dando mais enfoque nas semanas que antecedem o Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, ou o 13 de maio, dia em que foi abolida a escravidão em 1888 e quando é celebrado o Dia Nacional de Luta contra o Racismo.

Porém, a pesquisa do MEC indica que as discriminações existentes nas escolas podem ser fator de motivação para a implantação de atividade que abordem os conteúdos durante o ano todo.

Foi o que fizeram os docentes da Escola de Aplicação da USP. Desde 2005, um grupo de professores da instituição se reúne semanalmente para organizar atividades para tratar dos temas previstos na lei 10.645 nas aulas. Marcelo faz parte do grupo e conta que as atividades do projeto envolvem diversas disciplinas.

— As ações acontecem nas aulas regulares em diferentes épocas do ano, mas também mantemos atividades especiais na semana da África, em maio, e na semana da consciência negra, em novembro. Consideramos importante discutir esse tema em diferentes momentos do ano.

O professor e artista plástico avalia que as iniciativas geram resultados muito positivos entre os alunos.

— Em uma sequência didática específica sobre a visão dos alunos do 6º ano a respeito da África, por exemplo, foi possível notar que eles saem das aulas com uma visão diferente do continente, não apenas marcada pelos estereótipos de guerra e miséria, geralmente abordados na mídia.

São Paulo

Segundo o secretário da Educação de São Paulo, Herman Voorwald, no Estado, a Coordenadoria de Gestão da Educação Básica faz o acompanhamento da implantação da lei nas escolas, supervisionando as diretorias de ensino.

— Esse acompanhamento é feito por supervisores que atuam diretamente nas escolas com os professores coordenadores. Nós estamos trabalhando esse tema nas escolas. Ele está no nosso currículo do Estado e no material didático, faz parte das ações da Secretaria.

Ele também analisa que País tem uma história de mais de três séculos de escravidão como um marco que exige da área pública responsabilidade social. Para Voorwald, só assim será garantido que a história “que de fato ocorreu seja passada para as crianças, bem como conteúdos sobre o holocausto, por exemplo”.

— Essas questões têm que estar todos os dias na pauta para que não voltem a acontecer, completa o secretário.

 

São Paulo lança ferramenta digital para ensino de história da África e cultura afro-brasileira nas escolas 
A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo criou uma ferramenta digital para ajudar os professores a ensinarem história da África e cultura afro-brasileira nas escolas.

O lançamento da plataforma online chamada “Educação para as relações étnico-raciais” acontece netas quinta-feira (20), quando se comemora o Dia da Consciência Negra. O material está disponível na rede colaborativa dos professores do Estado Currículo +, que pode ser acessada por professores de todas as disciplinas.

Essa ferramenta completa as ações já implantadas na rede, incluindo cursos de capacitação continuada para gestores e professores coordenadores interlocutores de educação para as relações étnico-raciais das 91 diretorias de ensino do Estado.

Os professores podem compartilhar aulas por meio da plataforma e, assim, trocar boas experiências sobre a abordagem do tema.

Segundo o Secretário de educação, Herman Voorwald, a ações está em meio a outras já realizada pela secretaria.

— São Paulo é pioneiro em articular políticas inclusivas e diretrizes de educação focadas nas relações étnico-raciais. Os professores e gestores passam por capacitações para trabalhar o tema em sala de aula, de maneira transversal.

 

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