Alegrar a tristeza

Minha mãe, dona Nete, mora no bairro do Sumaré. Quem conhece Sampa sabe que é lugar de impressionantes ladeiras, num sobe-e-desce que faz sofrer joelhos de pedestres e motoristas de veículos 1.0. O prédio de mamãe se equilibra no cume de uma das ladeiras. O terreno sinuoso estimula a engenharia nacional a fazer prodígios. O bairro, há poucos anos cheio de casinhas, se transformou em área de espigões.

Por Fernanda Pompeu no Mente Aberta

Foi assim que, em frente ao prédio da dona Nete, derrubaram um quarteirão de casas e instalaram um enorme canteiro de obras. Logo que chegaram as primeiras máquinas e operários, fiquei preocupada. Afinal, minha mãe vai completar 82 anos, ainda ressente a falta do meu pai, e tem o sono leve. Na minha mente, desenhei o pior cenário. Uma voz fina alarmou meu cérebro: Vem problema, vem problema.

Desenhei o horror dos sons: tratores, sondas, lajes erguidas, martelos, gritos. E para arrematar, o agudo dilacerante da serra elétrica. Tudo isso envolto na poeira permanente. Cheguei a prever o pó cruzando a rua diretamente para os pulmões de mamãe. Também me encheu de dó constatar que ela seria acordada, de segunda a sábado, não por vontade própria, mas pela procissão pagã de caminhões manobrando.

É certo, me agoniei. Somou-se minha melancolia ao observar a terra arrasada. Semanas que seguem. Veio a supresa ao descobrir que mamãe estava curtindo a construção. Palavras dela: Eu me distraio vendo os homens trabalhando. Os caminhões entrando e saindo. É movimento. É vida.

No princípio, achei que dona Nete estivesse enlouquecido de vez. Como alguém pode encontrar diversão na construção de um prédio, em Sampa? Buscando pela resposta dei de cara com a sabedoria. Essa joia rara que muitos admiram e poucos têm. Mamãe demonstrava uma de suas habilidades – a de transformar algo insosso em palatável.

Ela foi tão convincente que passei a olhar de forma diferente para as chatices diárias. A série interminável dos pequenos obstáculos que param o trânsito, atrasam nossos relógios, maculam o bem-estar. Pois pequenos obstáculos brotam como capim livre no cotidiano da cidade. Lembrei também do Paulo Leminski que levo no coração com seus versos verdadeiros: Pra que cara feia? Na vida, Ninguém paga meia.

Daí, sábias são as pessoas que revertem situações incômodas em convivências possíveis. Pessoas que não dão soco em ponta de faca, nem se atiram contra portas fechadas. Aquelas que, com imaginação e humor, colorem os muros cinzas. As paredes frias.

Imagem: Régine Ferrandis

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