Ampliar a democracia

Nas décadas de 1920-1930 as democracias estavam em declínio em grande parte do mundo, com a ascensão do fascismo na Itália, do stalinismo na Rússia, do nazismo na Alemanha e do franquismo na Espanha. O Brasil não escaparia dessa onda, com a instalação, em 1937, da ditadura do Estado Novo, cujo regime incorporou elementos do corporativismo salazarista de Portugal.

Por Gilberto Giusepone (*) enviado para o portal Geledés

Antes do Estado Novo, no entanto, o ovo da serpente já estava sendo chocado. Na Assembleia Nacional Constituinte de 1933, por exemplo, muitas lideranças políticas consideravam “ilusória” a Constituição de 1891, porque o texto liberal, inspirado nos modelos francês e americano, não refletiria a realidade de um país atrasado e desvertebrado como o nosso.

Entre os expoentes dessa corrente estava Francisco José de Oliveira Vianna, um dos mentores intelectuais do Estado Novo. Ele escreveu centenas de páginas para “provar” que a democracia era incompatível com os países miscigenados, cuja única saída seria construir um Estado centralizado e autoritário.

Sergio Buarque de Hollanda, autor de Raízes do Brasil, rebateu esses argumentos chamando-os de “tentativas de mitologia” e, com essa expressão, demonstrou a percepção que tinha de que, na nossa sociedade, o povo, especialmente o povo pobre, incomoda quando chamado a opinar.

Buarque de Hollanda pressentia a apropriação do mito de que pobres não sabem votar, e percebia também, rebatendo Oliveira Vianna, que essa desqualificação da opinião popular com facilidade se misturava às muitas outras discriminações que permeavam a sociedade, inclusive as de fundo racial.

Depois do Estado Novo, na década de 1950 intelectuais como Celso Furtado e Álvaro Vieira Pinto chamavam a atenção para uma particularidade do cenário político brasileiro. Indicavam que a palavra “crise” repetidas vezes era associada à democracia e que setores conservadores apontavam, com expressiva superficialidade, que a democracia trazia e alimentava crises cujo resultado, pregavam, era a desaceleração econômica.

O “povo não sabe votar” tornou-se um jargão do nosso autoritarismo conservador, e ressurge de tempos em tempos renovando a carga de hostilidade social que carrega com novos tipos de agressão. Uma das consequências práticas mais trágicas dessa concepção foi a ditadura civil-militar que durou 21 anos.

O “povo”, em determinadas circunstâncias, adquire contornos mais específicos na disseminação de preconceitos. Um lamentável exemplo recente foi a produção de ofensas genericamente destinadas ao nordestino, cujas opções de voto foram associadas, lembremos Furtado, à produção de crises.

Isso acaba se refletindo na percepção da população em relação à democracia. Depois de anos sendo prestigiado em razão do repúdio à ditadura, o regime democrático voltou a ficar em baixa entre nós, como mostra a pesquisa da Ong Corporación Latinobarometro, segundo a qual o apoio dos brasileiros à democracia caiu de 54% para 32% em apenas um ano.

É claro que não estamos vivendo o mesmo clima que ocorreu na década de 1930. Mas trata-se sim, de reconhecer que algumas questões permanecem, no século XXI, com a mesma e dramática carga de autoritarismo que tínhamos no início do século XX.

Agora, na mesma semana em que foi noticiada a queda no prestígio da democracia, registrou-se também que as vagas para alunos cotistas já são maioria nas 63 Universidades Federais.

Os que combatem as cotas, especialmente com os argumentos da meritocracia, não poucas vezes retomam o mesmo argumento de Oliveira Vianna – justamente ele que defendia a eugenia e dizia que o fascismo estava ensinando “disciplina social” à Europa.

Mais de 200 anos atrás, José Bonifácio de Andrada e Silva – ele mesmo, o “patriarca da independência” –, já defendia que o Brasil deveria promover profundas reformas, como fim da escravidão, a reforma agrária e o acesso universal à educação. Já então ele dizia que “a maior corrupção se acha onde a maior pobreza está ao lado da maior riqueza”. As elites brasileiras jamais tiveram semelhante lucidez. “O Brasil, último país a acabar com a escravidão, tem um perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso”, escreveu Darcy Ribeiro.

Diante desse quadro, vale a pena citar o grande Betinho: “Para nascer um novo Brasil, humano, solidário, democrático, é fundamental que uma nova cultura se estabeleça, que uma nova economia se implante e que um novo poder expresse a sociedade democrática e a democracia no Estado”.

Diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber.

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