Anistia sim, impunidade não

Por: Atila Roque

Em 28 de agosto de 1979 o então Presidente da República, General João Baptista Figueiredo, sancionou a lei 6683, que concedeu anistia aos que cometeram “crimes políticos, ou conexos, ou tiveram seus direitos cassados”. A Lei da Anistia foi uma etapa importante na transição da ditadura para a democracia, mas também abriu espaço para a impunidade dos agentes do Estado que cometeram crimes contra a humanidade durante o regime militar. Passados 35 anos de sua promulgação, com grande atraso em relação ao restante da América Latina, o Brasil vem se defrontando com as revelações e vasta documentação levantadas pelos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade e das cerca de 80 comissões da verdade em atividade no país.

O que tem vindo à tona, com grande dramaticidade, já era uma realidade para pesquisadores, ativistas de direitos humanos e familiares de vítimas da ditadura, mas pela primeira vez ganha a visibilidade merecida: agentes do Estado cometeram sistematicamente, em pleno exercício de suas funções, um elenco de crimes de lesa humanidade como a tortura, assassinatos e o desaparecimento de opositores do regime militar. Estes crimes faziam parte da estratégia organizada da repressão e, diante desse contexto, é hora de revisar a lei de anistia para finalmente alcançar a justiça.

Desde o fim do regime autoritário brasileiro, houve mudanças no direito internacional que consolidaram o conceito de “crimes contra a humanidade”, evocado pela primeira vez nos tribunais de Nuremberg e de Tóquio, que julgaram atrocidades dos alemães e japoneses na Segunda Guerra Mundial. Nas décadas de 1980-2010, julgamentos como os das juntas militares na Argentina, dos genocídios em Ruanda, na ex-Iugoslávia e no Camboja, e a criação do Tribunal Penal Internacional estabeleceram a norma de que crimes como tortura, estupro, assassinato e desaparecimento forçado, quando cometidos no âmbito de uma repressão política sistemática por agentes do Estado ou do poder que domine um certo território, são tão graves que não podem ser anistiados e nem prescrever.

Essas normas foram aplicadas recentemente em diversos países da América Latina que sofreram ditaduras levando a processos judiciais na Argentina, Bolívia, Chile, Guatemala, Peru e Uruguai, em alguns casos com a prisão de ex-chefes de Estado. As leis de anistia foram revisadas ou revogadas. O Brasil é uma exceção: uma ilha de impunidade na qual ninguém foi punido por violações de direitos humanos no período autoritário, apesar da adesão do país aos acordos internacionais para punir crimes contra a humanidade.

Com frequência os defensores da impunidade usam os argumentos de que a lei de anistia teria sido um “pacto” e que seria necessário perdoar as atrocidades cometidas pelos “dois lados”. São justificativas frágeis. O movimento por uma “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita” foi uma campanha histórica da sociedade civil que lutava para reorganizar-se em plena vigência do AI-5 e outras legislações de exceção, mas não se tratou de uma negociação que envolvesse plenamente e sem restrições todos os setores da oposição, especialmente os mais atingidos pela ditadura. Também é indevida a tese dos “dois lados”, como se tivéssemos vivido no Brasil algo parecido com uma guerra civil ou insurreição armada contra o regime. O episódio da guerrilha do Araguaia nem de longe se equivale a tal cenário e foi brutalmente dizimado pelo regime militar.

O golpe civil-militar de 1964 abriu caminho para a implantação de um Estado de exceção que violou sistematicamente os direitos da população – inclusive daquelas pessoas que o apoiavam, e que também tiveram restritos seus direitos ao voto, seu acesso à imprensa e às artes livres, entre outros –,  e que fez uso da violência institucional extrema na repressão daqueles que a ele se opuseram, a maioria de maneira absolutamente pacífica, como foi o caso de Rubens Paiva e Vladimir Herzog.

Se queremos seguir adiante e deixar para trás, definitivamente, a herança da ditadura precisamos olhar de frente esse passado em que agentes do Estado cometeram crimes contra a humanidade e revisar a Lei da Anistia de 1979 para que possamos finalmente fazer justiça a todos que sofreram, morreram e sobreviveram à violência do Estado. Não existe a possibilidade de perdão sem justiça. Para isso precisamos julgar os responsáveis por crimes contra a humanidade.

Fonte Anistia

+ sobre o tema

O Brasil deveria comercializar o que tem de melhor: o seu povo

Ouvi no rádio um moço – que falava muito...

Em carta a Dilma, MPL lembra de índios e pede diálogo com movimentos sociais

Convidado para reunião com a presidenta, Passe Livre pediu...

Movimento negro cobra auxílio emergencial de R$ 600 e vacina para todos pelo SUS

Nesta quinta feira (18), a Coalizão Negra por Direitos,...

para lembrar

Classe média antipetista irá pagar em breve o preço de apoiar Temer

O colunista Jânio de Freitas, em artigo publicado na...

Campanha #MaisQueImigrante visa desconstruir xenofobia dos brasileiros

Até o fim do mês, projeto reunirá relatos, fotos...

Anistia Internacional e juízes criticam Estado brasileiro por mortes em Manaus

A Associação Juízes para a Democracia (AJD), criticou o...

Nova Política de Drogas com Nathália Oliveira

“Justificando Entrevista” começa neste 2017 com o debate mais...

Ministério da Igualdade Racial lidera ações do governo brasileiro no Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU

Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, está na 3a sessão do Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU em Genebra, na Suíça, com três principais missões: avançar nos debates...

Conselho de direitos humanos aciona ONU por aumento de movimentos neonazistas no Brasil

O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, acionou a ONU (Organização das Nações Unidas) para fazer um alerta...

Eu era menino quando os da caserna confundiram-me com um comunista

Eu tinha pouco mais de dois anos quando raiou a ditadura militar no Brasil. Criança, preso à barra da saia da minha mãe, Flora, e morador...
-+=