Autobiografia de um ex-escravo ditada a escritor americano chega em breve ao Brasil

Trata-se de um dos raros relatos sobre a escravidão no Brasil escritos diretamente por um ex-escravo

no Zero Hora

Dois historiadores brasileiros trabalham atualmente na tradução de um precioso depoimento sobre a escravidão no Brasil, as memórias de Mohammah Gardo Baquaqua, publicadas originalmente em inglês, em 1854, com o título de An Interesting Narrative Biography of Mahommah G. Baquaqua” (“Uma narrativa interessante: biografia de Mahommah G. Baquaqua”, em tradução livre). É um dos raros relatos sobre a escravidão no Brasil escritos diretamente por um ex-escravo. O relato foi editado e reescrito por Samuel Moore, e foi recuperado, nos anos 2000, pelos pesquisadores Paul Lovejoy e Robin Law, em uma edição crítica. Agora, a biografia e os textos introdutórios dessa edição estão sendo traduzidos pelos professores brasileiros Bruno Véras e Nielson Bezerra.

 A narrativa do Baquaqua é especial não só porque é uma das raras que temos no Brasil de maneira geral, , mas porque é um depoimento de um africano enviado ao país. Baquaqua narrava sua experiência da perspectiva de um homem que nasceu livre, foi criado na cultura da África islâmica e que relatou nesse livro suas experiências de choque não só com o cativeiro, mas com a cultura cristão dos países em que foi escravo. — diz Bruno Véras.

Baquaqua nasceu no norte da África. De família proeminente, foi escravizado na primeira metade da década de 1840. Transportado para o Brasil, foi escravo de 1845 a 1847, primeiro como cativo de um padeiro que vivia em Olinda. Depois de uma tentativa de suicídio e de uma de fuga, foi vendido, passando pelo Rio de Janeiro até se tornar propriedade de Clemente José da Costa, capitão de navio que, com a embarcação Lembrança, fazia viagens até o porto de Rio Grande para carregamento de charque. Numa das viagens do navio até Nova York,  Baquaqua conseguiu sua liberdade, pulando do navio em companhia de outro escravo. Dali, fugiram para Boston e mais tarde para o Haiti, onde, depois de um período de difícil adaptação, Baquaqua aproximou-se de um pastor batista, William L. Judd, e converteu-se ao cristianismo. Em 1854, quando já morava no Canadá, publicou seu relato autobiográfico nos Estados Unidos, como parte do esforço da campanha abolicionista americana para conscientizar o público sobre os horrores da escravidão.

A tradução do livro estava sendo preparada para sair agora, próximo ao Dia da Consciência Negra, mas a própria pesquisa realizada para a tradução terminou por determinar um adiamento dos planos para o ano que vem. Uma das novas informações que emergiram na pesquisa é sobre a identidade de Clemente José da Costa, proprietário de Baquaqua — que até então acreditava-se ser também carioca, mas morava em Rio Grande.

Sua atividade era desenvolvida aí. Encontrei documentações no Arquivo Público que o mencionam como proprietário de outros escravos que estavam ganhando alforria e registros de votação nas eleições — diz Bezerra.

No trecho abaixo, Baquaqua narra sua primeira passagem pelo porto do Rio Grande, em 1847, quando era escravo embarcado lidando no transporte de charque:

“Nossa primeira viagem foi para o Rio Grande. A viagem em si teria sido bastante agradável se eu não tivesse ficado mareado. O porto no Rio Grande é um tanto raso e, ao entrar, batemos no fundo. Por causa da maré baixa tivemos enorme dificuldade em fazer a embarcação flutuar novamente, mas finalmente conseguimos. Permutamos nosso carregamento por charque e prosseguimos então para o Rio de Janeiro, onde logo conseguimos vender a mercadoria”.

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Acima, a folha de rosto do livro de Mohammah Baquaqua, publicado em 1854, e uma gravura de Baquaqua ao lado do pastor William J. Judd

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