“Autodeclaração é critério correto, mas não pode operar sozinho”

Uma conversa sobre cotas raciais no serviço público com Antônio Teixeira, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

Por DENISE MOTA,  da Preta, preto, pretinhos

Preta, Preto, Pretinhos –  Em estudo do Ipea de 2013, verificou-se que em 4 Estados brasileiros já existia a cota para funcionários negros no serviço público desde 2002. Qual é o alcance da cota no Brasil neste momento?

Antônio Teixeira – O que temos até agora, embora pequeno diante do fosso que separa brancos e negros no serviço público, não pode ser desprezado: foram reservadas 3.305 vagas para pretos e pardos até dezembro de 2015. Esse dado é resultado do monitoramento realizado pela Seppir – Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que analisou 108 editais entre setembro de 2014 e dezembro de 2015, em concursos que ofertaram 19.621 vagas no âmbito federal, estadual e municipal. A Seppir monitorava a aplicação da lei 12.990/2014 até o ano passado, mas atualmente, dado o desmonte e rebaixamento do status da secretaria, não sabemos se isso continuará sendo feito. Há desafios importantes a serem encarados. Tentarei pontuar alguns deles:

NECESSIDADE DE MUDANÇAS NO PERFIL RACIAL DOCENTE

Como a lei 12.990/2014 prevê a reserva de vagas apenas nos certames com previsão de três ou mais vagas, nas universidades, por exemplo, onde os concursos para a docência se dão de forma pulverizada, a legislação tende a produzir poucos efeitos. Alguma alternativa terá de ser criada para garantir que o perfil racial da docência universitária se altere. Sempre é bom lembrar que foi nas universidades que essa política surgiu, e não deixa de ser irônico que é nela que teremos as maiores dificuldades de implantação;

RESERVA ÍNFIMA

Alguns municípios garantem um percentual ínfimo de reserva de vagas, como a nota técnica lançada pelo Ipea em 2014 identificou em seu anexo;

FRAUDES

Muitas tentativas de fraude têm se disseminado em alguns certames, merecendo especial menção o caso recente do concurso para o Itamaraty. Por esse motivo, vem surgindo uma demanda crescente de aperfeiçoamento da política, exigindo que criemos estratégias e instrumentos complementares à autodeclaração. Frise-se que consideramos acertada a autodeclaração como critério, mas ele, evidentemente, não pode operar sozinho.

PPP –  O Ministério do Planejamento informou recentemente a necessidade de protocolos para atestar a veracidade da autodeclaração dos cotistas negros, justamente. Há um protocolo “correto” para isso? Como essa questão vem sendo resolvida em outros lugares do mundo?

Teixeira – Não há protocolo nem solução perfeita. A questão racial é complexa e não há solução simples para ela. São séculos de racismo estruturando relações sociais, políticas de Estado, distribuindo poder, riqueza e privilégios, forjando consciências e visões de mundo. A política de ações afirmativas, frise-se, é uma política pequena diante do abismo que separa brancos e negros na sociedade brasileira, e parte significativa dessas fraudes, mais do que um crime individualizável, é a reação de setores da sociedade à perda de monopólios seculares.  Em todo caso, como qualquer política nova, ela será aperfeiçoada com a sua aplicação concreta.  A experiência irá também dizer que instrumentos teremos de criar para torná-la um efetivo instrumento de democratização do mundo do trabalho. Além disso, precisamos entender que não há nenhum dispositivo fiscalizatório em nenhum lugar do mundo com 100% de eficácia.

Fraude não é privilégio de política de ações afirmativas, mas elas têm sido usadas como instrumento de deslegitimação dessas iniciativas. Isso não nos exime, obviamente, da responsabilidade de construir instrumentos que permitam reduzir as fraudes a patamares aceitáveis, garantindo que, quando ela ocorrer, tenhamos respostas eficazes.

Estamos pesquisando ainda o modo como isso foi “resolvido” em outros lugares do mundo. Porém, é importante ter em mente que o racismo opera de modos distintos em diferentes países e que o que deu certo lá fora não necessariamente pode ser copiado aqui. Mas me parece que acenar publicamente para o combate à fraude é importante e o aperfeiçoamento dos mecanismos de fiscalização é imprescindível.

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Antônio Teixeira, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea (Divulgação)

“Quanto menor a responsabilidade, maior é a participação dos negros”

 

PPP – Um dado que faz toda a diferença na análise sobre a necessidade ou não das cotas é saber –como mostrou o estudo do Ipea em 2013– que apesar de os negros comporem 45% do serviço público, assumem as ocupações de mais baixa remuneração.  Qual a dimensão dessa desproporcionalidade, atualmente?

Teixeira – De fato, a maior parte dos negros inseridos na administração pública está concentrada no serviço público municipal, em geral com as menores remunerações e as piores condições de trabalho. Como falar da questão racial e dos efeitos do racismo é tratar também do poder e sua distribuição numa estrutura social, sugiro que a gente pense isso tomando como referência a participação dos negros na administração pública federal.

Embora negros e pardos representem 53% da população brasileira, segundo dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) 2014, eles somam exíguos 26% dos servidores públicos da administração direta, autárquica e fundacional da União, segundo pesquisa feita pela Escola Nacional de Administração Pública em 2014.

Considerando-se a distribuição dos cargos que exigem níveis de escolaridade para a sua ocupação, as disparidades são ainda maiores: os negros têm sua participação aumentada nos cargos de nível auxiliar (50,7%) e nível intermediário (31,9%), enquanto no nível superior o percentual assume níveis baixos (20,1%). Isso implica dizer que os negros ocupam as funções menos remuneradas e com menor poder de influenciar o processo decisório, motivo pelo qual se pode afirmar que a máquina pública reproduz as mesmas características da divisão racial do trabalho presente no setor privado.

Quando considerada a ocupação dos cargos de direção e assessoramento superior, os negros têm a sua participação restrita a 24,5% do total (dados do Siape – Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos de 2014). Os brancos têm a sua menor participação relativa nos cargos DAS-1 (55%), alcançando o mais alto percentual de participação relativa nos cargos DAS-6 (o topo da escala hierárquica).

Os negros têm sua participação relativa distribuída no sentido inverso da escala de poder: quanto menor a responsabilidade, maior é a participação dos negros.

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