A banalidade do mal normalizado

Esses dias estava conversando com uma pessoa que admiro bastante e ela estava comentando sobre seu assombro diante de um fato inusitado, mas cada vez mais recorrente: em seu círculo de amigos mais próximos, de pessoas consideradas ilustradas (ou, como podemos entender, de alto acúmulo e posse de capitais culturais e sociais), havia uma delas que abertamente apoiava a figura de Jair Bolsonaro. Um tanto chocante, em especial entre pessoas esclarecidas e progressistas, mas não destoante com o que temos visto nos últimos tempos.

Por Tulio Custódio, do Medium

Hannah Arendt

Pesquisas e mais pesquisas apontam a figura desse político, reconhecido por comentários fundamentados em preconceito e discriminação de gênero, raça, classe e principalmente orientação sexual, como carro de frente para as corrida política presidencial de 2018. Eu, pessoalmente, me assustei mais não com os 20% de intenção de voto da elite brasileira endereçados a esse indivíduo que uma pesquisa registrara, e sim como o fato de, em outra pesquisa, ele ter vencido o “pleito” sem ao menos ser citado como uma opção (algo muito estranho, incluindo pela referências de site nos quais encontrei a notícia… mas enfim, estava lá). Como sociólogo, fiquei tentado a refletir sobre o que significava tudo isso.

Ando, há algum tempo, tentando organizar pensamento acerca de uma reflexão que entenda o conservadorismo (pelo seu viés reacionário), o autoritarismo populista, as inspirações e sentimentos fascistas, o ódio, etc; tudo em oposição (mas em complemento — porém inconsciente, dado a falta de esclarecimento teórico sobre o tópico) à democracia. As leituras em Rancière, Lilla, Foucault, Marcuse, Dardot e Laval têm me ajudado a pensar paralelos do problema da vida democrática diante dos desafios impostos à contemporaneidade sobre política, conservadorismo, e a imposição de uma governamentalidade neoliberal (inspiração foucaultiana) que deságua em uma racionalidade específica e própria de nossos tempos: a racionalidade neoliberal. Os pensamentos e necessidades de laços entre insights e um entendimento pertinente aos fatos empíricos do concreto levaram-me, diante dessa informação sobre “o infiltrado bolsominion”, a recorrera outro conceito que parecia interessante: “a banalidade do mal”, da Hannah Arendt.

Hannah Arendt desenvolveu esse conceito, no conjunto de sua reflexão filosófica (que em muito conversava com sua trajetória pessoal), a partir de suas preocupações acerca do totalitarismo e efeitos (e causas) destilados pela existência e passagem do Nazismo na Europa. Efeitos catastróficos concretos, mas também sentidos simbólicos e para além do aparentes que essa grande filósofa discorreu sobre em suas obras. A ideia de banalidade [veja amigues filósofes: não sou um especialista de Arendt, bem como esse não é um texto acadêmico; portanto, é uma leitura de apropriação para o “causo” sobre o que desejo tratar aqui…] está mais trabalhada no livro “Eichmann em Jerusalém”, obra decorrente da cobertura que Arendt fez do julgamento do nazista Eichmann em Jerusalém por conta de seus crimes cometidos na II Guerra.

Nessa obra, Arendt discorre sobre como diante da sociedade massificada fora criada uma multidão incapaz de fazer julgamentos morais. Como consequência, essa multidão aceitaria demandas e agiria sem refletir o sentido moral daquilo que estavam fazendo. O mal se tornava banal, portanto, pois não eram as atitudes altamente reprováveis que se olhava e julgava — ou se reconstituía fatos trágicos daquela história recente — , e sim as ações demandadas a pessoas que não teriam discernimento moral para julgar e decidir o que estavam fazendo era ruim, humanitariamente incorreto.

A transposição dessa perspectiva para pensar o país na atualidade, diante do crescimento do apoio e adesão a um conjunto (afinal, não se trata apenas de um político, mas de um pool de pessoas em diversas vertentes que se aproxima desse espectro) que representa o que entendemos como autoritarismo populesco, ou seja, se escora em perspectivas ruins de humanidade e aceitação ao Outro, não é plena — e talvez bem falha em diversos aspectos. Esse sentimento de adesão crescente ao mal (autoritarismo disfarçado de “aquele que fala umas verdades”), ou da evidência de uma multidão que parece não discernir o “mal” (autoritarismo e conservadorismo reacionário) do bem (democracia inclusiva e humanismo igualitário), embriagada pelos desejos (legítimos) de combate às instituições falhas e envenenadas pela corrupção e descaso com o bem público me trouxe o conceito a mente. No entanto, entendo as limitações que ele carrega para entender a situação brasileira, mesmo diante de apropriações e analogias que nos servem para refletir e tentar fazer as perguntas corretas para lidar com os rumos de um futuro próximo.

Além do mais, não se trata apenas da adesão ao autoritarismo populista que estamos pensando de fundo. Uma certa histeria coletiva, fruto desse não pensar, ou do pensar acrítico, está disponível à granel em amplo setores da sociedade, incluindo as frentes progressistas e tidas como de esquerda. A direita (neo)liberal não é exclusiva, portanto, nessa “orgia das banalidades”, e poderíamos recorrer a episódios atuais (como prisões de “ícones do mal para esquerda” como político Garotinho ou mesmo Eike Batista) para observar como noções de justiça são diluídas a porções generosas de acriticidade. Portanto, essa noção de banalidade do mal não dá conta de tudo, mas me ajuda (ou pelo menos acredito que ajuda) a iluminar de algum modo a como ver certos movimentos.

Achille Mbembe

Falando em movimentos, gostaria de adicionar um ponto de inspiração. Os últimos apontamentos de Achille Mbembe, em “A Era do Humanismo está terminando” deixam, pelo menos a meu ver, muito claro que o esforço de empreender uma reflexão crítica sobre atual estado da democracia e os efeitos do capitalismo neoliberal é uma árdua tarefa que é dificultada pela necessidade de se olhar, no melhor possível, a dinâmica total objetiva e subjetiva da situação. A perspectiva moral de humanidade vs. concretude ética da norma competitiva, ou o humanismo moderno contra as individualidades democráticas: tudo isso (e olha que é muito!) sem perder de vista a importância das instituições (políticas, religiosas, culturais e, sem dúvida, educacionais), o papel das novas tecnologias e qual [ou quais] os papéis que a subjetividade do indivíduo (socialmente colocada em sua fragmentação, pela modernidade) cumprem nesse ínterim. Esforço árduo que intelectuais do porte de Mbembe, entre outros, possuem e que precisa ser feito coletivamente com reflexões do agora, bem como com legado de autorxs que iluminam nossa capacidade de perceber a realidade como Angela Davis, Cornel West e W. E. B. Du Bois. É desse movimento que precisamos, cada vez mais, ter inspiração para olhar sobre sentidos da contemporaneidade.

Estava falando da banalidade do mal não? Pois sim. O fato é que toda essa reflexão (ou tentativa de estruturar algum entendimento e questões) sobre a banalidade do mal e a suposta adesão e apoio a figuras representativas de um autoritarismo populista como Bolsonaro (ou o que essas figuras representam no espectro democrático) foi afetada por uma situação narrada a mim, que precisou a revisão do sentido que estava usando para termo. A situação era: em uma mesa de conhecidos de um amigo, a priori todos progressistas, dado momento uma pessoa da mesa vira para ele, que é negro, e diz “sofro racismo por ser branca”. Choque.

As nuvens e olhos se contornam. O excesso de textos e artigos sobre assimetria do racismo, a não-existência do racismo reverso e etc etc que nós, pessoas “convertidas” a uma ética da igualdade racial, já publicamos, escrevemos, compartilhamos ou traduzimos saltam em nossas bocas e links para resolver situações como essa. “Por que você está dizendo isso? Sério mesmo?” — a mente não para de reclamar. Meu amigo me contou como se ouvíssemos, em pleno século XXI, que alguém acreditava que a Terra era quadrada e o Sol deslizada em torno de nós, como uma prensa mal ajambrada — parecida com os primeiros protótipos mal funcionantes que Gutemberg nunca mostrou ao mundo. Choque.

Recuei diante da informação para pensar, em associação com a mesma informação que recebi acima, sobre o quanto pessoas em ambientes progressistas (ou, tido como esclarecidos) continuam veiculando uma visão deturpada, preguiçosa e acrítica sobre racismo. Continuam, na reprodução de seus privilégios a promover uma versão de esvaziamento, torção de sentido do que racismo significa e representa. Ou não se atentam ao sentido de Mal que o racismo se apoia.

Esse mal, estrutural e estruturante de uma relação que “é o arame farpado que rasga a dignidade do povo negro” (Abdias do Nascimento)[— e, em níveis diferenciados, do povo não-branco] e que destrói a potencialidade de todo um contingente coletivo como um todo, mas especialmente (e com toques de crueldade) no particular, com formas de apodrecimento das relações afetivas, da autoestima, da subjetividade desgastante e desgastada.

Qual é o sentido de uma pessoa branca dizer que sofre racismo?

Fiquei pensando, de modo livre, o quanto esse mal, o racismo, está banalizado na realidade das questões raciais brasileiras. A banalidade do mal aqui, no Brasil “paraíso tropical e harmônico das raças” é a banalidade de um grande público incapaz de fazer julgamentos morais sobre a materialidade impressa nas relações raciais, e incapaz de diferenciar os sentidos do mal próprios ao racismo. O mal é banalizado à medida em que, quem pode exerce-lo, reduz seu sentido ao dizer que o sofre. O mal é banal, porque é esvaziado — mas não é efetivamente destruído, porque exerce poder de anulação.

Então, me percebi cortado nas reflexões sobre a pertinência para pensar a banalidade do mal como exercício de entendimento da adesão ao autoritarismo antidemocrático. Me vi, sem dúvida, constrangido a entender que a banalidade é mais efetiva, material, de longa duração na realidade brasileira. O mal é o racismo. E sua banalidade ocorre no exercício diário de se esvaziamento, silenciamento, acriticismo.

Ocorre na normalidade das relações e na aceitação de que se apreende dos efeitos que tal estrutura submete ao povo negro, mergulhado na negação de seus direitos, humanidade, embebidos de violência e desdignificação.

Ocorre na falta de conhecimento sobre culturas e histórias de origem africana.

Ocorre na negação do entendimento que esse mal existe e se fortalece nos efeitos e sentidos produzidos por outros Mals, como o machismo, a questão de classe; e na negação de perceber a complexidade como desafio a ser superado na teoria e na práxis, e não como remédio instantâneo que terá suas porções determinadas em poucas palavras ou ações.

A banalidade do mal está aqui, toda vez que se fala em racismo reverso, toda vez que se diz “o pior racista é o próprio negro”, toda vez que se menciona “mimimi” ou “vitimismo”.

Muitos de nós, das tradições acadêmicas ocidentalizadas, buscam entender problemas traçados pelos intelectuais dos últimos séculos como questões do universal. A tentação na qual me vi de tentar enxergar problema da adesão ao autoritarismo foi, de pronta experiência, coberta pela necessidade crítica de entender o que, a despeito de bolsominions e etc, continuamos vivendo: a efetiva banalidade do mal, chamado Racismo, em ser força estruturante de todas as relações e sentidos e sociedade. E, mesmo diante de mentes bem intencionadas ou progressistas, não ser um problema real ou poder ser objeto de uso e apropriação para qualquer situação. Um mal banal.

É necessário desbanalizar esse mal; operação essa que não significa transforma-lo em extraordinário, mas entender a composição normal que ele possui nas estruturas cotidianas. É um processo de entender toda a violência contida no esvaziamento de sentidos que explicam a materialidade do racismo e que, nem por mais nem por menos, é um problema possível de se tratar em uma perspectiva personalista ou ingênua. É necessário transformar o banal, em seu significado de “bobo”, “estéril” e desimportante, em algo realmente importante, pela sua normalidade, urgência e violência exercidas. O mal é importante. E precisamos ter o esclarecimento de sua realidade para enfrenta-lo.

Mais uma vez, usando (talvez de modo não apropriado) Hannah Arendt, deixo essa frase: “Até nos tempos mais sombrios temos o direito de ver alguma luz”. É dela que surgiu esse texto.

Tulio Custódio

Sociólogo, Curador de Conhecimento na Inesplorato, criador do site @Pitacodemia e membro do Coletivo Sistema Negro. Mais: about.me/custodta ;)

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