Branquitude – O lado oculto do discurso sobre o negro – Cida Bento

Maria Aparecida Silva Bento

Este artigo constitui-se numa abordagem psicossocial do processo de formação sobre relações raciais do CEERT2 . A experiência do CEERT na formação sobre relações raciais em diferentes instituições tem revelado que. embora cada uma dessas instituições seja diferente – os desafios de ensinar sobre racismo tem sido, mais parecidos do que diferentes.

Por conta disso, serão reportadas diferentes experiências de formação, tais como as referentes às áreas de direito, psicologia social e organizacional, educação, uma vez que, independente das áreas, do grau de escolarização e das experiências dos participantes, o tema das relações raciais no Brasil é tão silenciado que, não raro, há mais similaridades do que diferenças no nível de informação sobre o tema, nas questões e nas resistências apresentadas.

De qualquer forma, logo de início é bom lembrar que os cuidados para abordar o tema relações raciais junto a grupos mistos de negros(as) e brancos(as), não são poucos, sob pena de se diminuir rapidamente o número de participantes dos cursos.

Grande parte das manifestações racistas cotidianas, são clandestinas e mal dimensionadas. Os legados cumulativos da discriminação, privilégios para uns, déficits para outros, bem como as desigualdades raciais que saltam aos olhos, são explicadas e, o que é pior, frequentemente “aceitas”, através de chavões que nenhuma lógica sustentaria, mas que possibilitam o não enfrentamento dos conflitos e a manutenção do sistema de privilégios.

Assim, ainda que os impactos do racismo se manifestem de modo diverso na vida de negros e brancos, não é incomum a tendência a fugir ou

1 BRANQUITUDE – O LADO OCULTO DO DISCURSO SOBRE O NEGRO In: Psicologia social do racismo – estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil / Iray Carone, Maria Aparecida Silva Bento ( Organizadoras) Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. (147-162)

2 Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades é uma organização não-governamental, apartidária e sem fins lucrativos, criado em 1990 com o objetivo de conjugar produção de conhecimento com programas de intervenção no campo das relações raciais e de gênero, buscando a promoção da igualdade de oportunidades e tratamento e o exercício efetivo da cidadania.

esquecer a condição de discriminado e de discriminador. É habitual que pessoas que se inscrevem voluntariamente num curso sobre relações raciais, se considerem e/ou sejam consideradas progressistas, estejam interessadas nos problemas sociais e muitas vezes engajadas em diferentes formas de luta contra a opressão

Ao discutir sobre racismo, elas esperam abordar uma opressão que “está lá” na sociedade, e não em algo que as envolva diretamente, ou que envolva a instituição da qual fazem parte.

Nem sempre estão desejosas de entrar em contato com a realidade de que, se são brancas, em alguma instância, são beneficiárias do racismo. Por outro lado, a condição de discriminado, sempre associada ao insucesso, incompetência e inferioridade, nem sempre é assumida prontamente.

Desta forma, em diferentes momentos, o tema pode provocar reações intensas e contraditórias nos participantes tais como, dor, raiva, tristeza, sentimentos de impotência, culpa, agressividade.

Não raro, por conta desses sentimentos, surgem argumentações que visam desqualificar o debate, colocar em dúvida dados estatísticos que estejam sendo apresentados, tentativas de relativizar o problema com expressões que já se tornaram clássicas, do tipo ”os gordos, ou os japoneses também são discriminados”, ou, a mais frequente que é culpabilizar os próprios negros “é mas os próprios negros se discriminam, os negros não assumem sua identidade” etc…etc….

É fundamental uma leitura acurada dessas reações por parte do educador, por conta de que costumam ser manifestações acabadas da ideologia da democracia racial brasileira, que como bem coloca Carlos Hasenbalg (1979), traz em seu cerne: a negação do preconceito e da discriminação, a isenção do branco e a culpabilização dos negros . Essa negação, frequentemente aparece quando não queremos enfrentar uma dada realidade, quer porque não desejamos nos ver como sujeitos de determinados tipos de ações, quer porque temos interesses nem sempre confessáveis em jogo, ou ainda porque aceitar a realidade do racismo, significa ter que realizar mudanças. Mudar por exemplo, no sentido de reconhecer que muitas vezes aquilo que orgulhosamente classificamos como mérito, está na verdade marcado também pelo privilégio, ou seja, numa sociedade racializada, ser branco sempre faz diferença. Dito de outra maneira, negros nas mesmas condições que brancos, não costumam ter as mesmas oportunidades, os mesmos tratamentos.

Enfim há muitos desafios a serem enfrentados quando se discute relações raciais, mas a experiência tem revelado, que de fato, esta é uma  genuína experiência de formação política, pois como discutiremos adiante, este tipo de cursos tem servido como potentes mobilizadores de forças de emancipação e libertação.

No que diz respeito a discutir relações raciais num espaço como o movimento sindical, onde o lema fundamental é a luta contra a opressão de classe, o debate ganha outras peculiaridades . As pessoas que se consideram progressistas ou de esquerda têm uma forma particular de explicitar seu racismo ou sua omissão diante do racismo. Frequentemente têm um tipo de auto-conceito que não lhes permite enxergar em si próprias traços de convivência, nem sempre pacata, com privilégio racial e de cumplicidade com um sistema que marginaliza e viola os direitos de outros grupos. O debate em tôrno da discriminação racial só é aceito se o foco estiver sobre o negro; caso o debate envolva as relações raciais e consequentemente o branco, prontamente o debate é tido como alienado que desconsidera questões macros como o neo- liberalismo, a classe etc.. e tudo passa a ser considerado a expressão de “um racismo às avessas”.

Há, de fato, uma grande diferença entre enfrentar o debate em torno da opressão de classe, e a de raça. Por essa razão, a escolha dos cursos ministrados no movimento sindical, como mola mestra para algumas reflexões.

A partir da leitura de Alexis Tocqueville ( ) ela chama a atenção para “a incapacidade de sentir, de ver, de cheirar os problemas dos outros, categorizados subjetivamente como não humanos”. A nossa subjetividade segundo ela é apenas a soma de nossas experiências vividas, restringidas pelas concretas condições materiais de nossa existência, aí incluída nossa posição social. Assim não é fantasia pensar-se num paralelo entre as distâncias objetivas de classes e as de raça.

Por essa razão, a escolha dos cursos ministrados no movimento sindical, como mola mestra para algumas reflexões.

CURSOS DE FORMAÇÃO NO MOVIMENTO SINDICAL

Desde 1990, temos ministrado este curso, em média 20 vezes ao ano, em diferentes instituições. O curso básico tem em média 16 horas.

Nos primeiros dois anos o CEERT oferecia os cursos aos departamentos de formação do sindicato, através de dirigentes sindicais já sensibilizados para o problema da discriminação racial no trabalho. Posteriormente o CEERT passou a ser procurado pelos sindicatos e centrais, muitas vezes pelos núcleos/comissões (de negros e mulheres) que vem se ampliando ao longo da última década.

As inscrições dos participantes e a infra-estrutura para o curso, ficam por conta dos sindicatos.

Antes de iniciar do curso, os participantes respondem a um questionário, no qual questões referentes a identificação pessoal estão colocadas. Entre 1992 e 1994 incluíamos neste questionário perguntas relativas às experiências de discriminação vividas no âmbito do trabalho e no cotidiano do movimento sindical. Atualmente tais questões estão incluídas nos trabalhos vivenciais que ocorrem ao longo do curso. Uma análise de 400 questionários preenchidos neste período, revelou que a idade média dos participantes é 33 anos, e até 1995 a maioria (75%) era homem. A partir de então vem crescendo a participação de mulheres. No último ano (2000) fizemos um programa específico para mulheres sobre o qual nos referiremos mais à frente. A maioria dos participantes 77%% são negros e, desses 55% tem pelo menos o 2o grau completo. É importante assinalar, a grande mobilidade geracional, pois os pais desses participantes tem no máximo a quarta série do 1o grau. Dos participantes, 78% pertencem a um sindicato e 41% desses ocupam lugar de direção. A maioria desses participantes já integrou os quadros de entidades do movimento negro. Assim a experiência do debate sobre relações raciais já foi vivida antes da participação no curso.

 

DA METODOLOGIA

A metodologia do curso foi inspirada naquela que vem sendo utilizada pelo movimento sindical nas últimas décadas, e foi elaborada por um grupo pequeno de profissionais do CEERT onde se destacam o Coordenador do Programa Sindical Hédio Silva Júnior e Joelzito de Araújo.

Araújo (1989)3 chama a atenção para a existência de uma estreita relação entre o crescimento das experiências de educação sindical e as propostas de educação popular inspiradas em Paulo Freire 4.

3 ARAÚJO, Joelzito Almeida de. Formação Sindical e novo sindicalismo, UFMG, 1989. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais aplicado à educação.

4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 13o edição. Rio de Janeiro – RJ, Editora Paz e Terra., 1983.

Os estudos de Araújo revelam que é possível observar as marcas do enfoque de Freire, nos depoimentos dos educadores sindicais, que sempre utilizam expressões como “consciência crítica”, “relação dialógica”, “relação de troca entre educador-educando”, “a reflexão da vivência individual como ponto de partida no processo de aprendizagem”, etc.

Ele chama a atenção para o fato de que após o golpe de 1964 e durante a década de 70 o processo de formação da classe trabalhadora se articula com a emergência dos movimentos sociais urbanos, ganhando novas características tais como a auto-organização pela construção de uma nova concepção de política, a partir da intervenção direta dos interessados, e pela diversidade de práticas e de representações de si mesmo.

Grande parte dos pressupostos de Freire, orientaram também nossos cursos de formação sobre relações raciais, dentre eles:

– A visão do educador enquanto alguém que respeita, valoriza, incorpora e problematiza a experiência dos participantes;

– O processo educativo visto como facilitador do desenvolvimento da consciência crítica dos participantes e difusor de valores tais como participação, democracia, igualdade e diferença.

– O processo de elaboração do curso procura contemplar aspectos da realidade da categoria e discutir os temas e conteúdos com os dirigentes sindicais e com os militantes de base;

– A realização dos cursos é matizada pela vivência do trabalhador e pela forma como pensa as relações raciais no movimento sindical.

São realizados diálogos/debates, exposições rápidas com informação (empíricas e/ou teóricas) necessárias.

Como uma organização preocupada com pesquisa e formação voltada para o aspecto político das relações raciais, oferecemos aos participantes no cotidiano dos cursos, imagens de livros, vídeos, trechos de depoimentos de brancos e negros sobre relações raciais, enfim tudo que possa ajudá-los a obter uma compreensão das causas políticas, econômicas, sociais do racismo. Por outro lado enfatizamos também a realidade subjetiva que garante a sustentação e perpetuação dessa forma de opressão.

Desta maneira, o curso tem incorporado palestras, leituras, exercícios simulados, e discussões que visam explorar também o impacto subjetivo do racismo, tanto sobre o opressor, quanto sobre o oprimido.

A última etapa do curso é sempre o planejamento da ação dentro do próprio sindicato visando a transformação da realidade debatida.

 

DO CONTEÚDO

A linha mestra dos cursos procura rever importantes momentos da história do Brasil, tais como a passagem do trabalho escravo para o trabalho livre, o imigrantismo, a industrialização, bem como a luta e resistência negra durante e após a escravidão.

Diferentes ângulos de visão informam a discussão em torno da europeização de conceitos como trabalho, luta, resistência, operário, que permeiam o cotidiano dos cursos de formação sindical e que fundamentam a concepção de que trabalho e luta no Brasil só começaram há um século, com a chegada dos imigrantes europeus que trouxeram em suas malas o anarco – sindicalismo5.

O intuito é trazer novas informações que auxiliem a destruir mitos e desnudar os interesses que marcam o processo de escolha dos fatos históricos que são contados, discutir o repetitivo padrão racial das lideranças que são apresentados, visando auxiliar os ativistas a entender como se esvazia a participação daquele que foi praticamente o único produtor de riquezas durante 4/5 da história do país – o trabalhador negro6. Esse processo é mais que uma revisão histórica ou uma desconstrução de mitos, uma vez que permite resignificar os grupos raciais e oferece condições para um movimento em busca de uma concreta redefinição de concepção e práticas sindicais. Ou seja, um processo de formação sobre relações raciais, sempre pode se constituir em um processo eminentemente político.

A idéia de que ações racistas são esporádicas, ocasionais e frutos do desatino de um ou outro fanático racista, é firmemente combatida com informações que denunciam o caráter estrutural do racismo á brasileira. Utilizamos diversificadas manifestações dos preconceitos e estereótipos

5 SILVA, Hédio Jr. Sindicalismo e Racismo (texto de Apoio). mimeo, São Paulo, 1992.

6IANNI, Octávio. Raças e classes sociais no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972; FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, Ática, 1978. [vol. I e II]; MOURA, Clóvis. Brasil: raízes do protesto negro. São Paulo, Global, 1983.

raciais no cotidiano da vida sindical, nos materiais, documentos, e na imprensa do sindicato7.

A abordagem da dimensão explícitamente subjetiva, está ancorada na produção de conhecimentos do CEERT8 nos últimos anos, e enfoca, o processo de naturalização do preconceito e do estereótipo em nossa subjetividade, que torna a todos, voluntária ou involuntariamente, cúmplices de sua perpetuação.

Tratar o racismo como um problema relacional e não como um problema de negros, focalizar permanentemente os legados para ambos os grupos, vem sendo uma preocupação crescente nos cursos.

Durante o processo de formação, não raras vezes, os participantes constatam que, diferentemente do que acontece na opressão de classe, a opressão de raça, se encontra tanto “lá” onde está o patrão, quanto aqui, entre companheiros de trabalho e de luta.

Quando está muito próximo, a identificação da discriminação racial é ainda mais incômoda, pois provoca tensões em relações de solidariedade, entre negros e brancos muitas vezes construídas ao longo dos anos, nas portas das fábricas, nas assembléias, congressos das categorias, etc…

Há que se gerenciar a tensão. De um lado, de se reconhecer como branco, o que nem sempre é tão espontâneo quanto parece, detentor de privilégios concretos e/ou simbólicos, capaz de ações discriminatórias contra trabalhadores, ações particularmente condenáveis num contexto como o do movimento sindical.

De outro lado, há que se perceber enquanto trabalhador negro, muitas vezes alvo, também no movimento sindical, de toda a carga pejorativa que a sociedade costuma atribuir à essa condição.

Constatar essa situação e reconhecer-se como alvo de discriminação racial, normalmente ocorre quando já se pode arcar com toda gama de sofrimento e de mudanças de perspectivas de vida, que este reconhecimento implica.

Com frequência os ativistas negros sentem-se impelidos a rever as piadinhas, as brincadeirinhas sobre negros, típicas da democracia racial

7 BENTO, Maria Aparecida Silva. Resgatando a minha bisavó – discriminação racial e resistência nas vozes de trabalhadores negros. São Paulo Puc. 1992. [Dissertação de Mestrado]

8 SILVA, Hédio Jr. Sindicalismo e Racismo (texto de Apoio). mimeo, São Paulo, 1992.

brasileira, com as quais conviviam cotidianamente, muitas vezes, com custos altos para sua auto-estima..

Noutras vezes terão que se defrontar com o desafio de levar esse debate para dentro da diretoria de seu sindicato, buscando rever a concepção e prática que norteiam a luta pela ampliação dos direitos de cidadania do trabalhador.

Essa gama de questões está entre os desafios que se tem de enfrentar ao abordar a questão das relações raciais no Brasil, procurando ao mesmo tempo garantir o aprendizado, a participação e o interesse de negros e brancos.

Nos cursos mais avançados utilizamos textos que produzimos com base em Adorno, Fanon9, focalizando o substrato psicológico do racismo, ou seja, a função que o racismo tem na economia psíquica do sujeito racista, como por exemplo no fortalecimento de sua auto-estima á medida em que se coloca como superior diante de outro grupo, ou que encontra um bode expiatório para suas próprias culpas e mazelas.

Mais recentemente10 temos buscado enriquecer e destacar os processos de formação da identidade racial, em particular da identidade branca, enquanto um processo ideológico. Para trabalhar a dimensão subjetiva, em geral realizamos oficinas, nas quais, a partir das vivencias dos participantes, auxiliamos a emersão de conteúdos que favorecem uma reflexão mais acurada.

O aprofundamento da abordagem do racismo enquanto um sistema que gera um legado cumulativo para negros e também para brancos, mas não apenas um legado de ônus e bônus, de déficits e privilégios econômicos, políticos e sociais em geral. Essa herança comporta igualmente uma visão de mundo, que é diferente para brancos e negros. Esta visão de mundo conforma o que chamamos de identidade racial.

 

IDENTIDADE RACIAL – UMA QUESTÃO IDEOLÓGICA

9 Bento, Maria aparecida da Silva. O legado subjetivo dos 500 anos, São Paulo, 1997, mimeo.

10 Bento,Maria Aparecida da Silva.”Branqueamento e Branquitude”, IPUSP, SãoPaulo, mimeo, 1997.

Segundo Janet Helms (1990:3) identidade racial é “um sentimento de identidade coletiva ou grupal baseado sobre uma percepção de estar compartilhando uma herança racial comum com um grupo racial particular… é um sistema de crenças que se desenvolve em reação a diferenciais percebidos no pertencimento a grupos raciais”.

Em sociedades como a nossa, onde o pertencimento a um grupo racial é enfatizado, o desenvolvimento da identidade racial ocorrerá de alguma forma com qualquer pessoa. Dada a situação desigual entre os brancos e negros nesta sociedade, todavia, não é surpresa que este processo de desenvolvimento se desdobrará de diferentes maneiras.

Tatum (1992)11 destaca aspectos importantes da abordagem da identidade racial em cursos sobre relações raciais12.

A partir de uma experiência de dez anos ministrando cursos sobre racismo, a psicóloga procura sistematizar as respostas dos participantes a conteúdos relacionados com raça, a resistência que aparece no decorrer dos cursos, bem como as estratégias para superar esta resistência. Muitos dos pontos levantados por Tatum guardam similaridade com aspectos da nossa experiência e por essa razão vamos abordá-los. Compartilho com perspectiva de Tatum que destaca que um curso de formação sobre relações raciais obriga as pessoas a entrarem e/ou aprofundarem o contato com sua condição de negro e de branco. Esse contato obriga-as a rever seu passado e a refletir sobre seu presente nas relações raciais. Raiva, culpa, impotência, agressividade podem surgir dentro e/ou fora da sala de aula, dificultando a continuidade do curso, ou gerando a desistência . É necessário pois, ter uma boa leitura do que está acontecendo para poder intervir de modo a garantir a continuidade da participação das pessoas.

Alguns pontos devem ser abordados logo de princípio:

– O fato de que, apesar do impacto do racismo sobre os brancos ser claramente diferente do impacto do racismo sobre negros, o racismo tem

11 TATUM, BEVERLY DANIEL. Talking about Race, Learning about Learning Racism: applying the theory of racial development identity in classroom, Mount Holyoke College Publicado em Harvard Educational Review, Vol. 62, no 1, Spring 1992.

12 ela trabalha conjuntamente com o modelo de desenvolvimento da identidade racial negra de William Cross (1971, 1978) e com o modelo da teoria do desenvolvimento da identidade racial branca elaborado por Helms 1990).

consequências negativas para todos. Ou seja, o racismo é um problema para negros e brancos.

– O fato de que não se pode responsabilizar as pessoas pelo que aprendem sobre racismo e preconceito na família, na escola, nos meios de comunicações. No entanto, ao adquirir uma maior compreensão sobre esse processo, as pessoas tem a responsabilidade de tentar identificar e interromper este ciclo de opressão e alterar seu comportamento.

– A importância de se dar exemplos e enfatizar que é possível a mudança, tanto individual quanto institucional no que diz respeito ao racismo. No entanto essa mudança deve ser vista como um processo ao longo de toda a vida, que pode ter começado antes da participação no curso, e certamente continuará depois que as aulas terminarem.

Muitos participantes dos cursos percebem o racismo como um difícil tema de discussão, e apesar de se inscreverem no curso voluntariamente, sua ansiedade e resistência ao longo do curso sempre aparecem.

 

Fontes de Resistência

1. Embora a realidade mostre exatamente o contrário, muitos trabalhadores, independentemente do grupo racial a que pertençam, foram socializados para pensar a sociedade como desracializada e procuram agarrar-se a essa crença;

2. A maioria, principalmente brancos, nega inicialmente qualquer preconceito pessoal, reconhecendo o impacto do racismo sobre a vida de outras pessoas, mas evitando reconhecer o impacto sobre as suas próprias vidas. Ou seja é possível reconhecer a carência do negro mas não o privilégio do branco. É possível reconhecer as desigualdades raciais mas não como frutos da discriminação racial cotidiana.

3. Pensar a sociedade como desracializada permite a alguns negros atribuirem o “quantum” extra de opressão que sofrem, a outros fatores, menos dolorosos que o fator racial. Assim, às vezes nos cursos estes negros poderão ser particularmente agressivos com os educadores. Ao longo do processo essa reação tende a mudar.

4. Por outro lado, muitas vezes a reação é entusiasmada, como a de alguém que diz: finalmente vão tratar essa questão, ou ainda, finalmente o sindicato se preocupa com questões que dizem respeito a todos os trabalhadores.

Quando perguntados sobre suas memórias relacionadas a questões raciais, e aos sentimentos a elas associados, tanto brancos quanto negros, exibem sentimentos de confusão, ansiedade e/ou medo. Negros freqüentemente possuem memórias dolorosas de apelidos ou outras interações negativas com outras pessoas. Eles demonstram também ter tido questões que não foram, nem formuladas, nem respondidas. Muito frequentemente se sentem mal quando constatam que internalizaram coisas negativas sobre negros.

Uma grande resistência a superar é a crença que muitos querem preservar de que o esforço individual é reconhecido com imparcialidade.

Ou seja, as pessoas evitam enfrentar a questão do racismo enquanto sustentáculo de um sistema de privilégios preferindo acreditar que o reconhecimento que recebem é baseado somente no seu mérito. Colocar isto em questão, muitas vezes acentua a tensão entre os participantes.

Se a negação direta da informação não é possível, então evitá-la pode ser a alternativa. Evitar estar no curso pode ser um dos resultados. Não participar das atividades relativas ao curso, é outra forma de abandoná-lo

Esta resposta segundo Tatum pode ser encontrada tanto em brancos quanto em negros. Estes, geralmente entram no debate sobre racismo já com alguma consciência da questão, baseada em experiências pessoais. Mas, mesmo estes participantes concluem que não tinham consciência do impacto generalizado do racismo na sociedade. Para vítimas de racismo, a consciência do impacto do racismo nas suas vidas é dolorosa, e freqüentemente gera raiva.

Para brancos, beneficiados pelo racismo, uma consciência ampliada disto gera raiva ou sentimentos de culpa.

Evitar a questão racial é uma maneira de evitar estes sentimentos de desconforto.

Uma terceira fonte de resistência (particularmente entre brancos) destacada por Tatum é a negação inicial de qualquer conexão pessoal com o racismo. “Eu não sou racista, mas sei que as pessoas são, e eu quero entendê-las melhor.”

Contudo, quando adquirem uma melhor compreensão sobre o que é racismo e sobre suas manifestações, freqüentemente começam a reconhecer este legado dentro deles mesmos. Também negros reconhecem atitudes negativas, que eles podem ter internalizado, sobre seu próprio grupo racial, ou que eles têm tido sobre outros grupos. Aqueles que previamente pensaram estar imunes à sociedade racista, freqüentemente remoem sentimentos desagradáveis de culpa e raiva.

Tatum chama a atenção para a importância da discussão sobre identidade racial branca e negra, que pode auxiliar as pessoas a entenderem o processo pelo qual estão passando, além de propiciar um quadro teórico para lidar com as resistências que surgem.

Muitas vezes, o início dessas transformações ocorre durante os cursos A consciência deste processo pode ajudar a implementar estratégias para melhorar o diálogo inter-racial na sala de aula.

Quatro estratégias são destacadas por ela como alternativas que podem ser úteis para reduzir a resistência e apoiar o desenvolvimento dos estudantes:

Criar um Ambiente Seguro

Fazer do curso um ambiente seguro para discussão é essencial para superar o medo dos participantes de quebrar o silêncio racial, e também reduzir ansiedades posteriores sobre a exposição do próprio racismo internalizado. Estabelecer regras de confidência, respeito mútuo, ausência de ironias, e falar da experiência da própria pessoa desde o primeiro dia de aula, são passos necessários deste processo.

O Poder da Produção do Próprio Conhecimento

A criação de oportunidades para que os próprios participantes produzam conhecimento (leitura/seminário) é uma ferramenta poderosa para limitar o estágio inicial de negação que muitos experimentam. Embora possa parecer fácil para alguns questionar a validade do que eles leram ou do que o educador diz, é no entanto mais difícil negar o que os seus próprios olhos vêem.

Conhecendo o Problema

Algumas pessoas consideram sua culpa, vergonha, constrangimento ou raiva, uma experiência desconfortável que somente eles estão tendo. Tatum chama a atenção para o fato de que informar aos participantes no início do curso, de que estes sentimentos podem constituir parte do processo de aprendizado é eticamente necessário (no sentido de um consentimento ajuizado), e ajuda a tornar normal a experiência. Saber antecipadamente que o desejo de abandonar a discussão é uma reação comum, ajuda as pessoas a manterem-se envolvidas quando chegam a esse ponto.

Além disso, compartilhar o modelo de desenvolvimento da identidade racial com participantes, dá-lhes condição de compreender, tanto o processo individual dos colegas, quanto o seu próprio. Este quadro cognitivo não necessariamente evita os conflitos do processo de desenvolvimento, mas permite aos participantes ficar menos apavorados quando ocorrem situações de tensão.

A inclusão de artigos sobre desenvolvimento da identidade racial e/ou discussões nos cursos sobre estas questões, em conjunção com outras estratégias, pode melhorar a receptividade das pessoas para os conteúdos do curso. Uma vez que os estágios descrevem tipos de comportamento que muitas das pessoas comumente têm observado nelas mesmas, bem como em suas próprias interações intra e inter-racial, a tendência é a de que os participantes compreendam o quadro conceitual básico facilmente, mesmo que não tenham conhecimento anterior de psicologia.

Fortalecer o Poder dos Participantes como Agentes de Mudança

Tatum, assim como Freire chama a atenção para o fato de que, elevar a consciência das pessoas sobre aspectos condenáveis, deve ser acompanhada da possibilidade de mudança. É anti-ético não fazê-lo.

Trabalhar em pequenos grupos, desenvolvendo um plano de ação definido por eles mesmos a fim de enfatizar o racismo no seu sindicato, é fundamental, São chamados a pensar sobre a possibilidade de ações anti- racismo.

Implicações para o movimento sindical

Nos quase 10 anos em que vimos realizando o curso, temos tido o privilégio de acompanhar, através do programa de formação, o crescimento da luta anti-racismo dentro do movimento sindical, marcado pelo silenciamento e desconhecimento dos problemas raciais, desvinculados dos problemas de classe.

A noção de “unidade de classe trabalhadora”, denunciava que as possibilidades da ação sindical voltavam-se para a totalidade, entendida como indiferenciação. Assim, o problema das práticas discriminatórias não era entendido como problema do sindicato, bem como as diferenças e as desigualdades raciais, despertavam temores de ruptura , de prejuízo à totalidade.

A luta dos dirigentes anti-racismo nos últimos anos, se contrapõe a essa idéia de totalidade que ignora os problemas de um contingente significativo da força de trabalho e coloca em questão a idéia de unidade de classe. Necessitam ainda questionar o viés marxista clássico da concepção e prática sindical e, ao mesmo tempo, lutar contra o mito da democracia racial, do qual os sindicatos sofrem grande influência13.

Paradoxalmente, a despeito de todos esses obstáculos, temos podido observar que justamente no movimento sindical, o potencial político dos cursos de formação sobre relações raciais, fica maximizado. Provavelmente dado o próprio caráter da instituição (representante dos interesses da classe trabalhadora, onde está a população negra e mestiça), como também em razão da expressiva presença de negros em cargo de direção ( quando comparada a outras instituições).

Assim, ao longo dos últimos anos, pudemos acompanhar ativamente a formação e desenvolvimento de Comissões e grupos de trabalho bem como a elaboração e articulação de “teses anti-racismos” em congressos de diferentes categorias.

O trabalho vem sendo levado a cabo essencialmente por dirigentes negros, uma vez que a resistência das centrais sindicais ainda é muito grande no entanto, brancos que tenham tido a oportunidade de aprender sobre racismo e decidiram refletir sobre si próprios muitas vezes conseguem ser aliados dos negros em atividades tais como assembléias e outras atividades de organização, onde negros podem estar isolados e com pouca força de pressão.

Ao mesmo tempo, negros que têm tido a oportunidade de analisar as maneiras pelas quais o racismo pode ter afetado as suas próprias vidas, e como ele se manifesta no cotidiano do seu sindicato, visibilizam à sua própria experiência e a validam. Eles podem se dispor a fortalecer o seu poder de mudança, e compartilhar o seu aprendizado com outros, fazendo palestras nos cursos de formação.

Não apenas negros devem fazer palestras, mas também pessoas brancas que fizeram um compromisso de ruptura com o abandono de seu racismo. Estas pessoas poderiam oferecer um modelo para outros brancos, em busca de novas maneiras de entender a sua própria branquitude.

13Silva, Hédio Jr. racismo a Brasiliera. São Paulo, mimeo, 1994.

Referências Bibliográficas

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BENTO, Maria Aparecida da Silva. Cidadania em Preto e Branco: discutindo as relações raciais, editora Ática, São Paulo, 1998.

BENTO, Maria Aparecida Silva. Discriminação Racial e Resistência na Voz de Trabalhadores Negros(as). Dissertação de Mestrado – PUC São Paulo, 1992.

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PIZA, Edith. O caminho das águas: personagens femininas negras escrita por mulheres brancas. São Paulo: EDUSP; FAPESP, 1998.

SILVA, Hédio Jr. Relações Raciais no Trabalho e Sindicalismo, texto de apoio, mimeo, São Paulo, 1992.

SILVA, Hédio Jr. Racismo a Brasileira. São Paulo, mimeo, 1994.

TATUM, BEVERLY DANIEL. Talking about Race, Learning about Learning Racism: applying the theory of racial development identity in classroom, Mount Holyoke College Publicado em Harvard Educational Review, Vol. 62, no 1, Spring 1992.

 

Fonte: CEERT

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