Branquitude para além do incômodo

(Texto apresentado no evento Feminismo, Racismo, Branquitude: opressão e privilégios”, em 20 de maio de 2017, no Rio de Janeiro, dentro da série “Diálogos Feministas” da Escola com #partidA)

Do Partida Feminista Por Schuma Schumaher*

Meus cumprimentos à #partidA por ter dado início a um de seus propósitos mais contundentes, que é a formação continuada de nós mulheres.

Agradecimento especial à Vilma Piedade, cujo desafiante convite aceitei de maneira inconsequente, uma vez que não sou estudiosa do tema, não sou da academia e só fiz doutorado na escola da vida. Portanto, é do lugar de ativista feminista branca que farei meus comentários a respeito do tema.

Confesso que passei duas semanas pensando sobre meu lugar neste mundo heteronormativo, patriarcal e racista. Pensando quando é que me descobri branca – e, portanto, independente da classe social, portadora de privilégios sedimentados por uma sociedade colonialista e forjada na superioridade racial branca.

Um filme rodou na minha cabeça por vários dias… Me lembrei das companheiras negras que de maneira ousada enfrentavam cotidianamente o “descompromisso” do feminismo com a questão racial. Quantas vezes, insistentemente, elas nos lembravam que as propaladas irmandade, sororidade, busca por igualdade – que colocavam as mulheres no mesmo barco – não era inclusiva, pois mesmo entre nós mulheres, a desigualdade de raça, de classe e de orientação sexual (estruturante das relações sociais) era latente e continua a ser um desafio a ser superado.

Venho do feminismo da década de 1970… Do ponto de vista da ação concreta, o chamado movimento feminista brasileiro, nessa época (década de 70/80) esteve marcado pela luta em prol da redemocratização, busca por direitos de cidadania e igualdade. Embora as organizações feministas contassem com aliados em algumas esferas, no conjunto, o movimento abrigava mulheres de tendências políticas diferentes, que buscavam total autonomia em relação aos partidos. Os vários grupos defendiam, prioritariamente, a ampliação da cidadania e o direito à sexualidade, e aspiravam afirmar a identidade das mulheres, diferenciando-a das visões que pretendiam sobrepor as lutas gerais da sociedade à especificidade da condição feminina.

Essa multiplicidade de formas organizativas do feminismo, principalmente a partir dos anos 1980, vai ganhando novos contornos e incorporando outros segmentos com realidades específicas, como os grupos de mulheres negras, lésbicas, trabalhadoras urbanas e rurais, prostitutas, empresárias, produtoras culturais, educadoras populares. A participação das mulheres negras nesses espaços cresce vertiginosamente contribuindo para uma efetiva compreensão da diversidade cultural e política, existente no movimento de mulheres brasileiras e, consequentemente suas diferentes realidades, necessidades e reivindicações.  Neste espírito, deve-se ressaltar o fato do XII Encontro Nacional Feminista: Gênero com diversidade no país da exclusão, realizado em Salvador, em 1997, ter particularmente demarcado esse desafio, que é um desafio requerido por inúmeras militantes negras.

É importante mencionar que essa trajetória de crescimento e enegrecimento do feminismo contou com o espírito instigador e o pioneirismo de várias feministas e ativistas negras: Maria Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Luiza Bairros (aonde quer que estejam), Nilza Iraci, Sueli Carneiro, Alzira Rufino, Vania Santana, Adélia Azevedo, Joana Angélica, Pedrina de Deus, Thereza Santos, Deise Benedito, Vanda Menezes, Diva Moreira, Zélia Amador de Deus, Helena Theodoro, Dulce Pereira, Cristina Guimarães, Jurema Werneck, Alda Cota, Heliana Emetério, Glaucia Matos, Silvia Cantanhede, Cida Bento, Maria Lucia da Silva, Vera Araújo, Matilde Ribeiro, Terezinha Bairros, Regina Adami, Graça Santos, Joselina da Silva, Neuza das Dores, Abigail Pascoa, Durica, Vera Baroni, Nilma Bentes, Elizabeth Viana, Rosália Lemos, Regina Coeli, Lucia Xavier, Vilma Piedade entre muitas outras foram, sem dúvida, as protagonistas que iluminaram esse novo caminho.

Venho desse feminismo… Venho de um feminismo que não se apercebia excludente, que incorporava muito timidamente (quer no discurso, quer na prática) o enfrentamento ao racismo. A tensão e os conflitos não foram poucos. Mas valeu a pena. Foram as mulheres negras, as feministas negras que enegreceram o pensamento e a ação do que chamamos hoje de movimento feminista brasileiro.

E eu, uma branquela na cor e no nome, fui ficando mais atenta, mais sensível, despertando para uma consciência crítica e incomodada com a tragédia do racismo. Mas incômodo não era o suficiente para me livrar do privilégio de ser branca. Como desnaturalizar o que parecia natural desde que eu me entendia por gente? Como ter consciência de que, muitas vezes, eu mesma, era beneficiária do racismo? Como ter consciência crítica dessa violência? Como ser solidária com a dor do outro/a? Como determinar a dor que não sentimos? Como descrever, intensificar, medir, aquilo que a/o outra sente?

E assim, mergulhada na inquietude, fui ler, passei a ouvir com mais atenção, me aproximar da luta das mulheres negras e conviver mais de perto com elas. Meu primeiro sentimento é de que eu não queria ser racista. Nenhuma vez, em nenhum momento, nunca! E assim começa outra etapa da minha vida. Minha luta no feminismo incorporou definitivamente o enfretamento ao racismo, ainda que de maneira enviesada, pois não tinha a dimensão do sistema de valores e comportamentos que a branquitude compreendia e disseminava. Nesse sistema racista posso não ser a algoz, mas jamais serei o alvo.

O Projeto Mulher 500 anos atrás dos panos, lançado pela Redeh – Rede de Desenvolvimento Humano, em 1997, vem nesses vinte anos de pesquisa priorizando o resgate da trajetória das mulheres brasileiras. A pesquisa nos levou a revisitar o passado em busca de informações que ajudassem a revelar o papel desempenhado pelas mulheres negras no palco da história. Nesse percurso, nos deparamos com informações contraditórias e fragmentadas pela parcialidade, por condicionamentos culturais, pelas distorções daqueles/as que registraram os fatos e ajudaram promover a ambiguidade da história das relações raciais no Brasil. Constatamos que, ao mesmo tempo em que as negras foram atingidas pelo sexismo e racismo, também foram excluídas dos benefícios da vida social por aqueles que consumiam as religiões de matrizes africanas, a música, o gingado, a comida, as festas, entre tantas outras contribuições por elas orquestradas.

Diante de tantas violências, negações, ausências e invisibilidade, resolvemos contribuir para tirar das entrelinhas e dos pés de página da história as trajetórias de mulheres negras que também participaram da construção desse país. E assim, em 2008, corajosamente lançamos o livro Mulheres Negras do Brasil (de minha autoria com Érico Vital Brazil – Editora Senac). Como disse a filósofa Sueli Carneiro, “vocês não tinham a menor ideia que era impossível fazê-lo, portanto foram lá e fizeram”. Pesquisar, escrever e produzir o livro Mulheres Negras do Brasil foi a experiência mais difícil da minha vida. Foi mergulhar todos os dias, durante 5 anos, no mundo do colonizador branco, tirando do anonimato aquelas que deixaram seus legados de lutas e resistências às futuras gerações, sem querer ocupar um lugar de fala que eu sabia não ser meu.

Saí viva dessa experiência, mas não inteira… E até hoje estou buscando um lugar menos incômodo para lidar com a branquitude. Em posição de privilégio fica difícil saber com veracidade ou entender se há mudanças na opressão. Se elas continuam existindo, em que medida houve melhorias para a população negra no acesso à cidadania por inteiro. É comum ouvir de um privilegiado, “Ah, mas as coisas estão melhorando!”. E no entanto, com que propriedade eu, branca, posso afirmar isso?

Assim, ao adotar a determinação acadêmica de branquitude (no sentido de vivência dos benefícios e privilégios proporcionada a uma população tida como branca), devemos ter em mente que ela pode ser silenciosamente aceita, às vezes enaltecida e outras tantas reforçada (sendo, nesses casos, uma branquitude acrítica), ou refutada e condenada publicamente (sendo, nesses casos, uma branquitude crítica).

Nesse sentido, destaco as observações de Liv Sovik (2009): “no debate sobre racismo brasileiro, reitera-se que a diferença racial não tem fundamento biológico. Mas a existência desse fundamento, mesmo fantasioso, está tão presente na sociedade que sua falta de embasamento científico acaba sendo irrelevante”.  De acordo com Lia Vainer Shucman (2012), ainda, “a branquitude é uma construção sociohistórica produzida pela ideia falaciosa de superioridade racial branca”.

Outra observação arguta sobre o assunto vem da ativista e estudiosa negra Maria Aparecida Silva Bento (2002): “Ao discutir sobre racismo, as pessoas brancas consideradas progressistas e críticas do racismo, em geral, abordam a questão como uma opressão que ‘existe na sociedade’, e não em algo que as envolva diretamente, ou que envolva a instituição da qual fazem parte”. E, no entanto, nas palavras de Cida Bento, “os impactos do racismo se manifestam de modo diverso na vida de negros e brancos, não sendo incomum a tendência a fugir ou esquecer a condição de discriminado e de discriminador”.

Há quase um século atrás, Du Bois (primeiro afro-americano a receber um título de doutor em Harvard) foi que anteviu a palavra branquitude, em 1935 (no livro Black Reconstrution in the United States). Du Bois, em seu livro, demonstra como a classe trabalhadora branca aceita o racismo para se valer dos benefícios.  Para ele, “essa aceitação não somente gera benefícios, mas se compadece [do racismo] e se torna cúmplice da [sua] ação”.

Já a norte-americana Ruth Frankenburg trabalha com o conceito de branquitude como sendo “um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê os outros e a si mesmo; uma posição de poder não nomeada, vivenciada em uma geografia social de raça como um lugar confortável e do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não atribui a si mesmo”.

Portanto, falar de forma analítica a partir de uma posição de conforto deveria por definição abranger a consciência das minhas limitações, ou de qualquer interlocutor branco. Não pelo reconhecimento do inaceitável, mas por compreender não ser o alvo da ação em que o racismo prioritariamente reincide. Assim, o máximo que se pode falar em termos de experiência de branquitude crítica (aparente não aceitação dos privilégios) são das impressões – não da dor provocada pelo racismo. Aqui reside a complexidade da questão.

Sendo a branquitude uma zona de conforto, um lugar constante de privilégio social, material ou simbólico, que restringe o acesso do outro, devemos ter sempre muito cuidado para não cair na tentativa de uma isenção de culpabilidade a quem goza dos benefícios. Nesse contexto, a branquitude crítica deve ser não apenas o reconhecimento e a objeção ao privilégio, mas também da ilegitimidade/incapacidade representativa e de apropriação. Somente a crítica não nos tira do lugar em que a sociedade eurocêntrica nos colocou! E assim, neste contexto secular de segregações, o esforço de mudança passa pela adesão social. E, nesse sentido, o feminismo que se propõe interseccional tem o dever de abraçar a luta antirracista e denunciar a cultura falaciosa da cordialidade que limita a cidadania negra e mantém a desigualdade.

Termino deixando aqui, entre tantas dúvidas, algumas indagações para o debate:

– Quais ações, atitudes, interesses e renúncias seriam indispensáveis para superar as mazelas da desigualdade e reparar a dívida histórica que temos com a população negra?

 – Que atitude, dedicação e esforço precisam ser feitos para que um (a) privilegiado (a) saia da zona de conforto e se torne um/a ativista da causa?

É hora de confrontar o irracional, de pactuar com a verdade, de desvelar o que está sendo velado. É hora de sororidade política e afetiva porque, como afirma Vilma Piedade, “a dororidade quer falar das sombras. Da fala silenciada, dentro e fora de Nós. Da dor causada pelo Racismo. E essa Dor é Preta”.

Muito mais do que medidas paliativas, são as mudanças estruturais e culturais que devemos perseguir e com as quais devemos nos comprometer. E que possamos, para além de sentir o incômodo, abrir mão dos privilégios que a branquitude nos garante.

  

Referências Bibliográficas

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SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2012.


* Schuma Schumaher é pedagoga e ativista feminista brasileira. Como coordenadora executiva da ONG Rede de Desenvolvimento Humano (Redeh), implementou o Projeto Mulher 500 anos atrás dos panos que produziu, entre outras obras, o Dicionário Mulheres do Brasil, Um Rio de Mulheres e Mulheres Negras do Brasil (prêmio Jabuti 2008).

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