Cacheada não, crespa

Se tem uma coisa que vem me tirando do sério ultimamente é essa onda de pessoas brancas de cabelo cacheado contando sua história de superação e de como foi difícil assumir seus “cachos”, e ganhando chuva de papel picado, inclusive midiática, por terem vencido a enorme batalha que foi parar de fazer chapinha. Não passa um dia que eu não veja um link de notícia falando sobre “assumir seus cachos”, sobre como os “cachos” são lindos, os “cachos” são aquilo, “os cachos”. Sempre os “cachos”.

Do negrasolidao

Eu acho extremamente positivo que as mulheres brancas empoderem seus cabelos naturais, mas não consigo deixar de ver como essa onda cacheada é de um apagamento absurdo da negritude. Ou o cabelo é liso, ou é cacheado. Como se não existissem outras texturas, como se não existisse cabelo sem cachos, como se não existisse o cabelo crespo.

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Eu vejo cabelos crespos, inclusive sem cachos, sendo colocado lado a lado com cabelos de mulheres brancas cacheados e ondulados como se representassem uma mesma coisa, um mesmo processo de transição, de superação e de opressão a ser vencido. Cabelo cacheado sofre coerção pra se adequar ao padrão liso? Sim. Mas não chame isso de opressão, não chame isso de racismo, isso não faz nem cosquinha no que é racismo. Mulher branca de cabelo cacheado não sofre racismo. Pessoas brancas de cabelo cacheado não sofrem racismo. Pessoas brancas não sofrem racismo.

Estamos falando de processos diferentes, estamos falando de transições diferentes. Nossa transição é um processo profundo de internalização de consciência e de entendimento do que é racismo.O processo de transição de uma pessoa negra é um processo dolorido, de resgate da sua ancestralidade, de retomada, de cicatrização de feridas antigas, de descoberta de si mesmo e de que era dor aquilo que ele sentia não sabia o que era quando a mãe prendia, cortava, raspava seu cabelo para a proteger de sofrer na escola.

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Não é possível que só eu ache violento abrir um vídeo de propaganda e dar de cara com uma criança negra sem cachos sendo perguntada de porque ela não gosta dos seus cachos. É duro, eu parei pra imaginar o que passou na cabecinha daquela menina do lado de um tanto de loirinha-cachinhos-dourados e as pessoas a equalizando e a apagando. O que rola é que a loirinha nunca vai ser chamada de mendiga, de suja porque tem o cabelo cacheado, dificilmente vão considerar os cachos dela “má aparência”, dizer que não se adequa ao ambiente de trabalho, dificilmente vão mandá-la prender o cabelo, dificilmente ela vai perder emprego pelos seus “cachos”.

Desculpa ter que desconstruir seu mundo colorido com música de fundo e propaganda da Dove pra contar que pros negros o buraco é mais embaixo. Desculpa, mas não aguento mais ouvir sua história de superação de como foi difícil pra você não fazer mais chapinha pra ir no casamento e querer colocar isso em pé de igualdade com ser um médico de rastafari, ou uma médica black power. Isso não é a mesma coisa. Seus cachos não causam o estranhamento, nem a ruptura que um black power ou dreads causam em um ambiente majoritariamente branco.

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Eu não sou cacheada, eu sou crespa, eu tenho um black power (power mesmo!).E é power porque eu criei um poder ao assumi-lo, um poder que se relaciona intimamente ao meu enfrentamento diário do racismo.

Meu cabelo é um ato político, meu cabelo é uma afronta à branquitude racista que tentou me convencer que eu sou feia e suja desde que eu nasci e que me fez acreditar que meu cabelo era errado, que eu não podia acordar com o cabelo pra cima, que o que nasce naturalmente na minha cabeça devia ser corrigido.

Parabéns pela sua superação, mas a minha é outra. Não me equalize a você.

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