Carta à hebraica

Ter recebido palestrantes de esquerda não é desculpa para receber um apologista da tortura e do abuso

Por Arnaldo Bloch, do O Globo

Prezada Hebraica, valho-me deste espaço para uma carta que julgo ser do interesse de todo cidadão que não reze pela cartilha do preconceito, chaga que vitimou e vitima judeus, negros, indígenas, mulheres, homossexuais e pessoas que, acima de cores ideológicas, repudiam o discurso do ódio. Trata-se, é claro,da palestra de Jair Bolsonaro, segunda passada, no clube onde passei parte da infância e da adolescência. Entre outros disparates racistas, Bolsonaro disse, em sua apresentação, que não demarcará um centímetro de terras indígenas ou quilombolas, e que japonês é uma “raça” que não pede esmola porque tem vergonha na cara.

Na Hebraica-Rio joguei futebol, aprendi a nadar, frequentei aulas de xadrez, toquei violão e até fiz parte de um mosaico, além de curtir sua lendária boate e comer seu insólito cheeseburger. O ruído abafado de um baixo elétrico que vinha de algum salão 24 horas por dia ainda me traz sensações proustianas. Já fui até homenageado. Fiquei, esta semana, com vontade de devolver o troféu.

Essa carta não se dirige pessoalmente a seu presidente ou ao conselho. Não participo do ativismo comunitário. Sou carioca, Botafogo, gosto de samba. E judeu, a favor do Estado de Israel (embora crítico a seus atuais governantes) e da criação de um estado Palestino ante o reconhecimento da existência do vizinho hebreu que, em 1947, acatou a decisão da ONU por dois estados, rejeitada por árabes e palestinos. Escrevo como se a Hebraica pudesse tomar as vezes de um ente humano e ler essas palavras.

Não fui ao protesto na porta do clube durante a palestra de Bolsonaro. Se o fizesse, seria a título individual, guiado por minha consciência, desvinculado de grupos. Sei que lá estavam pessoas que gritavam “judeus sem-vergonha” (há um vídeo). Ignoro se os participantes sensatos da manifestação foram lenientes com tal estupidez. Sei que dentro da comunidade, dos “dois lados”, há uma baita confusão conceitual entre Estado de Israel e diáspora que reforça a divisão entre conservadores e progressistas, e as falsas noções de que progressismo é igual a esquerda radical e de que todo conservador é de extrema-direita.

Nada disso, contudo, torna razoável convidar Jair Bolsonaro para falar na Hebraica-Rio, depois de o clube homônimo em São Paulo ter-se recusado a receber o deputado. Foi uma provocação disfarçada em espírito democrático e defesa da liberdade de expressão. Bolsonaro se expressa livremente no Congresso e em declarações à imprensa e o convite para falar num clube é uma escolha curatorial. Ter recebido palestrantes “de esquerda”, em outras ocasiões, como se alegou, não é desculpa para uma agremiação que se pretende humanista acolher em seus salões Jair Bolsonaro, esse apologista da tortura e do abuso (autor do lema “não te estupro porque você não merece”), cujas posições, públicas, como as elegias ao coronel Ustra, consumado torturador no Doi-Codi paulista, são conhecidas e repudiadas em vários espectros.

Um judeu que presta honrarias (não foi uma entrevista, ou uma sabatina crítica) a um indivíduo que persegue seus semelhantes está, no mínimo, fora de foco. Citar o fato de que Bolsonaro “gosta de judeus”, como se fez em redes sociais, é aviltante: sugere que gostar de judeus é habeas corpus moral para molestar outros grupos. O mesmo espírito que hoje estimula o diálogo inter-religioso (atos ecumênicos contra intolerância unindo rabinos, pastores, mulás, babalorixás etc) deve pautar a solidariedade a mulheres, homossexuais, trans, negros, candomblecistas, umbandistas, indígenas, ateus; ou a ex-ativistas torturados ou mortos nos porões da ditadura, muitos dos quais judeus, cujos filhos e netos herdaram a memória de seu martírio.

A justiça é um dos pilares do judaísmo. E o judaísmo está muito além de pertencimento religioso, identidade nacional e ideologia: é um povo multiétnico e multicultural, que, desde a expulsão pelos romanos no ano 70 da Era Comum, vai da ascendência ibérica à eslava e passa pelos negros falashas da Etiópia. Viveu as Cruzadas, a Inquisição, os pogroms dos czares, a paranoia stalinista, e briga até hoje contra o antissemitismo.

Receber um político que se vale da ignorância para pregar o ódio a seus pares é esquecer-se de que o povo judeu é o Povo do Livro e que em suas fileiras militaram sábios. É ignorar a bandeira simbólica de igualdade perante “um”; do elo de Abraão; a de liberdade coletiva da saga de Moisés, celebrada a partir de segunda que vem, no Pessach; é esquecer o tikún olám (reparação do mundo) com que Walter Benjamin transpôs um conceito holístico para a política; ou o sionismo político de Theodor Herzl e o socialismo idealista e pioneiro de Ben Gurion, o founding father de Israel.

Prezada Hebraica, é preciso reparar esse erro. Sem ódio. Judaísmo é humanismo. Não se deve contribuir para a propaganda de desvirtuação desse caráter num período em que a verdade, já frágil por natureza, é vítima da manipulação e da maquinação de guerra.

 

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