Coisas que uma sociedade racista faz por você

Você, um belo dia, está na faculdade e vem uma pessoa que mal te conhece e te diz: “ai nossa, se eu fosse você, com essa beleza, não estava aqui não. Tinha arrumado um gringo rico, você sabe que eles adoram mulheres negras”. Poxa vida, me descobriram! Mas, é claro que é isso! Sou modelo manequim frustrada que tentou ser garota do tempo e mulata do Sargenteli e não conseguiu. Daí, tive a brilhante de ideia de perseguir um marido rico para me dar bem. Aí, pensei: onde posso arrumar um gringo rico? No curso de Filosofia! Fiz quatro anos de graduação, agora estou no mestrado, mas ainda não consegui. Mas, estou na luta!

Você vai levar sua filha pra praticar uma atividade esportiva. Já não fala muito com as pessoas porque tem preguiça delas. Abre um livro da Beauvoir pra ler, coloca sua cara no modo “não perturbe”, mas mesmo assim, do nada, vem uma alma que mal te conhece, mexer na capa do seu livro e te dizer: “estava te olhando de longe e não acreditei; vim ver mesmo se você estava lendo Beauvoir!” Mas é claro, que ela tinha que ficar surpresa, eu estudo Beauvoir no mestrado, já apresentei trabalhos sobre a obra dela, mas bem feito pra mim, que mandou não ter cara de quem estuda. E ainda por cima, estava lendo um livro em inglês, como assim, uma negra bilíngue? É o fim dos tempos!

De novo, você leva sua filha para praticar esporte. Enquanto está lá, ouve música porque tem preguiça das pessoas que lá estão. Aí, uma senhora, que não te conhece, se aproxima de você, faz você para de ouvir a linda da Nina Simone e te diz: “olha, estou procurando alguém pra limpar a minha casa, se você conhecer alguém, avisa o tal professor”. O professor, em questão, também era negro e com certeza a gente devia ser da mesma família. Lógico, a Thulane só está lá porque ele deu uma bolsa pra ela. Eu estava lá, no mesmo espaço que ela, esperando minha filha, (que pasmem, é negra!), mas eu deveria estar perdida por lá ou deveria ser consultora de recursos humanos domésticos para dondocas sem noção.

Você está em algum espaço que as pessoas julgam que não é pra você. As pessoas te olham com aquela cara de quem deixou esse povo entrar ou te olham como se você fosse algum experimento científico que deu errado. Não satisfeitas, elas vem te abordar e fazem um interrogatório: “onde você mora?” “Trabalha com o que?” “seu pai fazia o que?” “onde sua filha estuda?” Pessoas que nunca te viram ou que mal te conhecem. É um excelente modo de se fazer amizade, na verdade, é super comum você sair fazendo perguntas invasivas pra pessoas que você nunca viu. Inclusive, é um método recomendado pelo guia de etiqueta da Glória Kalil.

Você está conversando com algumas pessoas, quando de repente, uma para, te olha com surpresa e diz: “nossa, você é inteligente, fala bem!” Puxa, que pessoa bacana, ela ficou surpresa por eu saber falar! Ou quando não muito, quer ser parabenizada por não se considerar racista: “sabe, eu não discrimino ninguém, inclusive deixo meus filhos terem amizade com pessoas como você!” Olha,que pessoa maravilhosa!! Da próxima vez vou pegar o nome completo dela e mandar fazer uma placa em homenagem a ela!

Depois, ainda tem gente, que vem dizer que a gente só fala em racismo e fica postando o vídeo do Morgan Freeman dizendo que o melhor modo de acabar com o racismo é não falar sobre. Claro, porque a gente fala de racismo porque gosta. A sociedade é tão maravilhosa, todas as pessoas são tratadas igualmente e com respeito, que daí, a gente seu auto oprime.

 

Na verdade, vou contar um segredo: @s pret@s, as bichas, as sapatas, as travas e trans, se reúnem mensalmente e fazem uma cúpula noturna. A cada reunião, a gente decide quem vai ser o grupo oprimido da vez. Aí, a gente se auto flagela também que é pra dar mais veracidade e emoção. Ironias, a parte, como tem pessoas que não tem a mínima noção do que está fazendo no mundo! A impressão que dá é que elas vieram de um planeta distante e resolveram parar a nave espacial na Terra, olharam para o Brasil, quiseram ficar, mas mantém a cabeça no outro planeta. Não tem a mínima noção dos problemas sociais do país em que vive, e pior, culpa o outro, quando esse outro se impõe contra isso. Impressionante. Ou tem aquelas pessoas que dizem que só o pensamento positivo cura e que devemos parar de falar no mal que nos aflige. E ficam numa bolha de otimismo que dá medo, vai que pega. Ser positiva diante da vida é importante, não nego, mas achar que tudo se resolve com isso, beira à loucura. Será que o Amarildo não pensou positivo o suficiente? Ah, me poupe.

 

Algumas pessoas, em vez de questionarem porque estão incomodadas com sua presença, querem procuram motivos para legitimar o incômodo delas te incomodando. Praticamente um trava língua. Já naturalizaram tanto que negras não devem estar em certos espaços, que não se questionam sobre isso, ao contrário, acham que você está invadindo o espaço delas.

 

Por isso, que digo: não sou obrigada a conviver com esse tipo de gente por vontade própria. Já basta ter que enfrentar o racismo institucional e pessoas que não dá pra evitar. Justamente por isso, que não dou a mínima para algumas pessoas, que me afasto ou ignoro mesmo. Não faço a mínima questão. Não sou obrigada a conviver com pessoas que ficam muito surpresas por me acharem inteligente. E ouvir isso de pessoas que acham que o Che Guevara foi um assassino frio e sanguinário e acreditam no golpe comunista de 2014. Ouvir isso de pessoas que colocam @ filh@ numa escola que usa conceitos de Piaget e Vigotsky e fiam perturbando a professora perguntando porque não ensinam matemática de modo “convencional”. Daí, quando você fala brevemente sobre os dois autores e fala sobre o construtivismo, aí sim elas tem certeza que você é a criação do vírus ébola.

 

Eu quero estar perto de pessoas que tratam as outras como pessoas. Uma frase tão óbvia, mas ao mesmo tempo tão distante. Depois não adianta me chamar de antipática, eu é que não vou morrer de úlcera e nem cansar minha beleza tendo que conversar com pessoas assim. Como diz, meu lindo amigo, Didz de Lautaro, já basta o mundo pra nos oprimir, não precisamos de pessoas assim no nosso convívio. Tomei essa resolução pra minha vida; me faz muito bem. Sem culpas, sem medo de ser rotulada de anti social. E, falando no lindo do Didz, adorei uma frase que aprendemos num curso que fizemos juntos: “não basta resistir, tem que vicejar!” E continuarei vicejando negra e linda e jogando minhas tranças para essas pessoas sem noção.

* Texto de Djamila Ribeiro – Mestranda no programa de Pós-Graduação em Filosofia na Unifesp.  Djamila é uma mulher inteligente pra caramba, filósofa transgressora,  absurdamente, linda e mãe de uma menina ultra graciosa.

Coisas que uma sociedade racista faz por você
Coisas que uma sociedade racista faz por você

 

Fonte: Variedades Femininas

 

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