Coletivos universitários denunciam #AfroConveniência em possíveis fraudes de cotas

Precisamos falar sobre cotas. Mas também precisamos falar sobre #AfroConveniência. 

HuffPost Brasil  por Ana Beatriz Rosa

Quer você seja a favor ou não, a lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, é clara: garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas 59 universidades federais e 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia, que serão destinadas a estudantes de ensino público, oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo e a autodeclarados pretos, pardos e indígenas.

De acordo com o Ministério da Educação (MEC), o critério de raça é autodeclaratório, “como ocorre no censo demográfico e em toda política de afirmação no Brasil. Já a renda familiar per capita terá de ser comprovada por documentação, com regras estabelecidas pela instituição e recomendação de documentos mínimos pelo MEC.”

Ou seja, não há medidas que fiscalizem ou acompanhem a autodeclaração. O uso de bancas examinadoras , por exemplo, causou polêmicas no passado e foi abolido pelas instituições.

Diante desse contexto, coletivos negros de universidades brasileiras perceberam casos de oportunismo, ou ingenuidade, na utilização da autodeclaração e começaram a denunciar as #FraudesNasCotas e a #AfroConveniência. As hashtags e campanhas nas redes sociais ganharam fôlego após coletivos da UFES e da UFRB se posicionarem sobre o tema.

Entenda o caso

Mirts Sants é integrante do coletivo capixaba Negrada. Em entrevista ao HuffPost Brasil ela conta que a organização surgiu em 2012 devido as dificuldades de permanência dos estudantes negros na UFES. Em março, a entidade coletou cerca de 40 denúncias de possíveis cotistas fraudulentos e entregou os documentos ao MPF-ES, que arquivou o caso no âmbito criminal.

“As fraudes foram percebidas na UFES no ano passado, quando recebemos denúncias de pessoas que fraudaram nas cotas raciais e sociais. As denúncias foram recebidas, por escrito e pessoalmente, por estudantes negros e, principalmente, por brancos, que observaram que não-negros estavam ocupando as vagas não devidas.”

As denúncias foram feitas com base nos perfis dos aprovados nas redes sociais. De acordo com os representantes do coletivo, os nomes listados não atendiam aos critérios necessários para se beneficiar das cotas no processo seletivo da UFES. Em entrevista ao jornal Gazeta, João Victor dos Santos reafirmou o argumento da denúncia:

“As fotos do Facebook deixam claro que eles não têm características de negros ou pardos, mas se declararam como tais. Muitos deles nós conhecemos pessoalmente e sabemos que não se incluem nas cotas.”

No entanto, apesar do movimento iniciado pelo coletivo, o Ministério Público do ES arquivou, em âmbito criminal, o pedido de denúncia, segundo informações do G1.

De acordo com o MPF-ES, na lei que regula a política de cotas para ingresso nas universidades federais e no edital do Vestibular da UFES, consta apenas a autoidentificação como critério para que o candidato possa usufruir do sistema de cota racial e, segundo a decisão, não estão previstos, nem na lei, nem no edital,” quaisquer critérios fenotípicos, genotípicos e de qualquer outra natureza, para a identificação de pardos, negros ou índios (PPI).” Logo, para o orgão, é impossível falar na prática de falsidade ideológica.

Mirts Sants contesta a decisão do MP. Para ela, é papel das instituições criar mecanismo que impeçam a banalização da autodeclaração.

“Dois candidatos reconheceram e desistiram de continuar ocupando a vaga, porém, a maioria criticou a inexistência de mecanismo de controle e viram na autodeclaração abertura para continuar a fraude. O MP e as universidades devem coibir que a autodeclaração seja banalizada. Se está ocorrendo fraudes eles precisam apurar e criar mecanismos de controle. As fraudes na autodeclaração são conscientes e com a intenção de burlar uma lei. A Justiça tem que levar em conta o objetivo da lei, que é a inclusão de pretos, partos e indígenas, e advindo da escola pública no ensino superior. Se a autodeclaração falsa está inviabilizando a lei de reserva de vagas, temos um grande problema aí. O MP tem o dever de proteger o cumprimento da lei e não justificar a prática de crimes para benefícios individuais com o argumento de que há uma brecha na lei.”

O coletivo Negrada conta com apoio jurídico da Comissão de Igualdade Racial da OAB-ES. Em nota oficial, a presidente da comissão Patrícia Santos da Silveira argumenta que só com a modificação da lei é que poderia existir a possibilidade de uma responsabilização por parte criminal e, inclusive, cível.

“A vantagem é que com este arquivamento na área criminal temos a chance de seguir para um órgão colegiado e é o que vamos tentar agora junto com o Coletivo Negrada, dando todo o suporte jurídico para que esse recurso seja feito.

Se existe um artigo dizendo que declaração falsa incorre em falsidade ideológica, como é possível ignorarmos isso? Tem um procedimento onde demonstra que algumas fotos não são de pessoas negras, então onde não existe fraude? Não posso me declarar branca, porque no primeiro momento qualquer pessoa dirá que sou negra, então qual é a diferenciação de olhar para alguém que é branco e dizer que é pardo? Isso não existe. A sensação é de que querem driblar a lei.”

Na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, uma estudante do curso de Medicina contabilizou dez casos suspeitos de pessoas que se beneficiaram do sistema de cotas, segundo a Folha de S. Paulo.

Em entrevista ao jornal, a estudante disse que a fraude é foco do coletivo NegreX, do qual faz parte. Com cerca de 200 estudantes negros de medicina de várias universidades do país, o grupo organizado denuncia o que intitularam de “afroconveniência”: pessoas que “se valem da subjetividade da autodeclaração para obter vantagens”, como explica a universitária.

O que fazer?

A estudante e militante negra Maria* (preferiu não ser identificada) vê com cautela a proposta de revisão da lei de cotas, sugerida por alguns coletivos negros.

“Eu acho que é difícil falar em revisar a lei, pois poderíamos cair em um “julgamento colorista”, embebido no racismo que embraquece os pretos. Ninguém seria preto. Para você ter uma ideia do poder desse embraquecimento, minha tia afirma de pé junto que eu sou branca e não negra – mas OLHA A MINHA MELANINA! Acho que o que deveria ocorrer é ter especialistas em colorismo para avaliar esses casos encaminhados ao MP. É evidente que há casos em que a pessoa não é negra, então a lei até poderia ser revista nesse sentindo: focar nos traços negroides da pessoa e não somente na autodeclaração.

Além disso, faz-se necessário o cumprimento da lei 10/639-03 que obriga o ensino e valorização da cultura negra na escolas. A discussão sobre racismo em sala de aula pode ajudar todo mundo, seja brancos ou negros a ser conscientes sobre a questão. Negros teriam mais base e força para se declarar negros e ‘sinhôzinho sem noção’ poderiam, talvez, criar um respeito maior pela nossa luta e história.”

Pensando em possíveis soluções para o problema, o coletivo Negrex publicou uma carta em sua página do Facebook em que destaca 6 medidas que podem ser adotadas para combater às fraudes:

– Criação de uma instância permanente de apuração das denúncias de maneira ampla e rápida, principalmente nos casos das vagas raciais, em que caso se constate pessoa branca a se passar por negra ou indígena, seja automaticamente eliminada da concorrência dessas vagas e dê tempo hábil para aqueles que se enquadrem no perfil realmente possam concorrer entre seus iguais;

– A busca por servidores internos formados e capacitados na discussão das cotas e etnia-raça, para a averiguação de fraude nas cotas sócio-raciais;

– Publicização no Portal da UFRB da lista de todos(as) estudantes do PPQ-UFRB, organizados por centro de ensino, para a ciência de quem recebe o benefício e assim se tornar mais fácil a solicitação de verificação daqueles suspeitos de estarem fora do perfil e que possam estar fraudando;

– Judicializar todos os casos apurados e comprovados de fraude, com a cobrança da devolução imediata de todo o recurso recebido de maneira ilícita do PPQ e saída do programa;

– Da perda das vagas (jubilamento) dos que estão fora do perfil exigido das cotas sócio-raciais;

– Imediata apuração dos(as) candidatos(as) para as vagas raciais das terminalidades do BIS, em especial Medicina, onde se concentram os casos mais gritantes de fraude.

#AfroConveniência

“Meu avô é branco. Logo, eu sou branco. Estranhou? #AfroConveniência.”

Esta é uma das frases escrita em placas que estão sendo compartilhada nas redes sociais. A campanha propõe uma reflexão e uma desconstrução sobre a apropriação das reservas de vagas por não-negros.

Maria* considera o termo da hashtag representativo para casos como os da denúncia.

“Acho o termo ‘afroconveniência’ muito bom, porque tem gente, inclusive gente preta, só que pretos ‘mais claros’, que só é negro quando é pra fazer foto no facebook ou falar em palestra sobre racismo. Mas nega a sua negritude em todos os outros momentos. Para mim a ‘afroconveniência’ é se reconhecer como negro somente em situações individuais, para tirar vantagem, principalmente comercial, de ser negro, e não se preocupar com todas as outras questões, como genocídio dos nosso jovens negros periféricos.”

De fato, não existem leis que definam o que é “ser negro”, assim como não se define o que é “ser branco”. Descobrir-se negro, saber-se negro, autodeclarar-se negro, para muitos, faz parte de uma trajetória de autoconhecimento, empoderamento e reflexão. Para outros, basta adentrar em qualquer ambiente que a sua cor é notada. Já com outros tantos, a condição da pele se faz presente todos os dias, só que por meio de violências.

Não são poucos os exemplos de racismo estrutural e cultural no País. É senso comum que o Brasil nunca superou a escravidão e ainda está longe de conseguir inserir, de fato, a população negra na sociedade – seja na universidade, ocupando cargos de liderança, no mercado de trabalho, no meio acadêmico-científico ou qualquer lugar que não a “senzala”.

Bianca Santana, autora do livro Quando me descobri negra, compartilhou a sua experiência em um relato e serviu de inspiração para outras tantas pessoas refletirem sobre a sua negritude:

“Tenho 30 anos, mas sou negra há apenas dez. Antes, era morena. Minha cor era praticamente travessura do sol. Eu até achava bonito ser tão brasileira. Talvez por isso aceitasse o fim da conversa.

Em agosto de 2004, quando fui fazer uma reportagem na Câmara Municipal, passei pela rua Riachuelo, onde vi a placa “Educafro”. Já tinha ouvido falar sobre o cursinho comunitário, mas não conhecia muito bem a proposta. Entrei. O coordenador pedagógico me explicou a metodologia de ensino com a cumplicidade de quem olha um parente próximo. Quando me ofereci para dar aulas, seus olhos brilharam. Ouvi que, como a maioria dos professores eram brancos, eu seria uma boa referência para os estudantes negros. Eles veriam em mim, estudante da Universidade de São Paulo e da Faculdade Cásper Líbero, que há espaço para o negro em boas faculdades. […]

Saí sem entender muito bem o que tinha ouvido. […]

Pensei muito e por muito tempo. Não identifiquei nada de africano nos costumes da minha família. Concluí que a ascensão social tinha clareado nossa identidade. Óbvio que somos negros. Se nossa pele não é tão escura, nossos traços e cabelos revelam nossa etnia. Minha mãe, economista, funcionária de uma grande empresa, foi branqueada como os mulatos que no século XIX passavam pó de arroz no rosto porque os clubes não aceitavam negros.

Eu fui branqueada em casa, na escola, no cursinho e na universidade. É como disse Francisco Weffort: o branqueamento apaga as glórias dos negros, a memória dos líderes que poderiam sugerir caminhos diferentes daquele da humilhação cotidiana, especialmente para os pobres. Ainda em busca de identidade, afirmo com alegria que sou negra há dez anos. E agradeço ao professor do Educafro que pela primeira vez, em 21 anos, fez o convite para a reflexão profunda sobre minhas origens.”

Outro lado

Procurada, a UFES se posicionou com uma nota oficial, disponível no site da instituição.

“A Administração Central da Ufes informa que, em decorrência das denúncias apresentadas acerca da existência de fraude ao sistema de Reserva de Vagas na modalidade de cotas para pretos e pardos, foi instaurado um processo administrativo com vistas a apurar se, sob o ponto de vista jurídico e fático, realmente ocorreram os fatos classificados na denúncia como fraudulentos.

A Procuradoria Federal da Advocacia Geral da União junto à Ufes esclarece que, se após o devido processo legal, no qual será garantida a ampla defesa e o direto ao contraditório aos acusados, for constatada violação da Lei Federal de Reserva de Vagas e da Resolução da Universidade que estabelece sistema de reserva de vagas no Processo Seletivo da Ufes, os estudantes que tiverem praticado irregularidades terão suas matrículas anuladas, com o consequente desligamento da Universidade.”

A UFRB não se posicionou sobre o tema.

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