Colorindo Egos, por Sueli Carneiro

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Nesta semana ocorreu em São Paulo o I Congresso Brasileiro Ciência & Profissão, promovido pelo Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira. Um megaevento com mais de 14 mil inscritos, voltado para a avaliação da produção científica, profissional e das perspectivas futuras dessa disciplina. Entre os temas em debate, psicologia, preconceito racial e humilhação social, uma decorrência da campanha “Preconceito racial humilha; humilhação social faz sofrer”, desencadeada pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia envolvendo também os 15 conselhos regionais de psicologia.

Há anos vimos dizendo que já temos acúmulo em diversas áreas do conhecimento sobre as conseqüências sociais do racismo e da discriminação social. Em particular, a antropologia e a sociologia vêm contribuindo significativamente para a desmistificação, no plano das idéias, do mito da democracia racial e para a explicitação das desigualdades raciais existentes notadamente entre negros e brancos no Brasil.

Mais recentemente, economistas vêm qualificando mais a magnitude dessas desigualdades a ponto de, neste momento, podermos afirmar que vivemos num país apartado racialmente, dadas as disparidades nos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) encontradas para brancos e negros.

Temos hoje, portanto, razoável radiografia socioeconômica das desigualdades raciais produzidas pelo racismo e a discriminação. No entanto, esses diagnósticos se ressentem da ausência de estudos sobre um dos aspectos mais perversos do racismo e da discriminação racial – os danos psíquicos e sobretudo o golpe na auto-estima que os mecanismos discriminatórios produzem nas vítimas do racismo.

Nesse sentido, a psicologia é uma das áreas das ciências humanas que menos vem aportando contribuições para esses problema, sobretudo para a diminuição do sofrimento psíquico que provoca.

Essa lacuna no conhecimento do impacto do racismo e da discriminação sobre a subjetividade negra se revela na escassa bibliografia sobre o tema na área da psicologia, o que motivou outra iniciativa importante do Conselho Federal de Psicologia: a instituição do Prêmio Arthur Ramos com o tema Pluralidade Étnica: um desafio de incentivo à Psicologia Brasileira, um incentivo a pesquisas sobre o assunto.

Para Marcelo Carvalho, a campanha Preconceito racial humilha ; humilhação social faz sofrer pretende resgatar o “compromisso social da psicologia, depois de um passado de discriminação, segregação e preconceito racial. Como no caso da teoria do caráter. Respeitada no início do século, tinha substrato claramente racista e discriminatório. A mensagem era simples: pessoas brancas seriam superiores; indígenas, apesar da altivez, seriam preguiçosas; e negras, intelectualmente inferiores”.

Ela é também, segundo seus organizadores, produto da crescente percepção do papel e da responsabilidade social da psicologia na diminuição do sofrimento psíquico dos seres humanos e do reconhecimento de que as condições de vida a que está submetida a maioria da população brasileira são fontes geradoras de sofrimento psicológico e uma forma de violação dos direitos humanos.

Tal como afirma Jurandir Freire, “ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de ego do sujeito branco e a dor de recusar e anular a presença do corpo negro”.

Em “Significações do corpo negro”, uma das raras teses de doutorado em psicologia, de Izildinha Baptista Nogueira, a autora reafirma que “à medida que o negro se depara com o esfacelamento de sua identidade negra, ele se vê obrigado a internalizar um ideal de ego branco. No entanto, o caráter inconciliável desse ideal de ego com sua condição biológica de ser negro exigirá um enorme esforço a fim de conciliar um ego e um ideal, e o conjunto desses sacrifícios pode até mesmo levar a um desequilíbrio psíquico”.

Por outro lado, a introdução da variável étnica, racial nos estudos e no trabalho cotidiano dos profissionais da psicologia deve aprofundar também a investigação sobre os efeitos perversos sobre a subjetividade dos brancos, das representações imaginárias e simbólicas do corpo branco como instrumento de poder e de privilégios à custa da opressão material e simbólica dos outros. Em termos de saúde mental, o que significa um ego e uma subjetividade inflados pelo sentimento de superioridade racial?

Para que se possa quebrar o círculo vicioso de produção de egos inflados versus egos deprimidos, é preciso agir sobre as duas pontas do problema em prol da construção de um círculo virtuoso em que compartilhar igualitariamente a diversidade humana seja um princípio de enriquecimento para todos.

Nesse sentido, a desconstrução da brancura como ideal de ego da sociedade é imperativo para a libertação e cura de todos, negros, brancos, indígenas, orientais. E talvez nisso resida o papel mais estratégico que os psicólogos têm a cumprir.

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