Como o desafeto do homem negro afeta a mulher negra

Nos últimos anos dentro das discussões do movimento negro e dos grupos de militância tem se falado muito em relacionamentos afrocentrados. Um assunto perigoso por conta dos impactos que pode causar devido à falta de amadurecimento das discussões e de uma busca por representatividade de maneira superficial e deslocada de sua importância social e política. Buscar um relacionamento afrocentrado como forma de empoderamento faz com que, principalmente, muitas mulheres negras se decepcionem já que a maioria de nós, negros e negras, nem ao menos ainda construímos nossa própria identidade racial de forma consistente.

Como sabemos, o racismo atua de formas variadas no Brasil, e dentro dessas vertentes está a dificuldade do próprio negro em reconhecer-se como negro e em construir a sua identidade racial. Diferente de outros países, a miscigenação contribui aqui para o sustento da ideia falaciosa de democracia racial, e essa ideia chega também ao campo afetivo. Acredita-se que as questões que envolvem relacionamentos não estão envolvidas, em sua maioria, com as questões étnicas e raciais. Então, a junção da falta de autorreconhecimento com a ideia de que a construção de afeto pelo outro não perpassa pela cor de sua pele, constrói a ideia também duvidosa de que “o amor não tem cor”. Porém, mesmo que exista um levante da abordagem a assuntos ligados ao preconceito, mesmo que as informações estejam mais acessíveis, mesmo que a população negra esteja mais esclarecida diante de um cenário mais “acolhedor” em relação a sua estética – o que colabora no processo de humanização -, a cultura racista ainda afeta em nossa aceitação e em nossas escolhas.

Vem crescendo, principalmente dentro dos movimentos de mulheres negras, um debate sobre o preterimento destas mulheres por parte dos homens e, especificamente, dos homens negros, no caso, em relacionamentos heterossexuais cisgêneros (os não-cisgêneros implicam em mais especificidades). A discussão foi fomentada depois dos resultados de uma pesquisa de Claudete Alves. Os resultados apresentados pela pesquisadora, realizados na região paulistana, apontaram para um alto indicie de homens negros que se relacionavam com mulheres brancas, principalmente após algum tipo de crescimento financeiro ou de status social, além de ser observado que mulheres negras estavam distantes desses relacionamentos ou do formato que esses relacionamentos apresentavam. Isso quer dizer, que a forma como o homem negro se relaciona com a mulheres brancas e mulheres negras também é um ponto importante de observação para discutirmos como se constroem os relacionamentos afetivos no Brasil. Segundo a pesquisa, as mulheres negras relataram sentir uma diferença afetiva entre a forma que os homens negros as tratavam considerando as relações destes homens com mulheres brancas.

Não podemos ignorar que esses resultados têm forte ligação com a nossa cultura enraizada em um passado pouco distante em que homens e mulheres negras eram desunamizados de várias formas, inclusive no campo afetivo e sexual. A sexualização do corpo tanto do homem quanto da mulher negra ainda hoje influencia bastante em suas dinâmicas de relações. No caso da mulher negra, a exploração sexual de seu corpo vem de um histórico violento vivido durante todo período de escravidão, quando seus senhores as estupravam e utilizavam de seus corpos como objetos sexuais, o que as custa até hoje uma imagem sexualizada e vendida como produto comercial até mesmo nas mídias de grande circulação. Ao corpo da mulher negra foi despejado um olhar pecaminoso, já que a influência religiosa também as castigava transformando-as em um pecado que o seu senhor não podia resistir, ignorando qualquer influência machista e racista que essas violências envolviam. Por isso também, podemos concluir que muito do tipo de afeto reservado as mulheres negras é resultado dessa cultura violenta e desumanizadora. Mesmo os próprios homens negros destinam um carinho ligado ao angelical e ao pacífico às mulheres brancas, enquanto reservam um tratamento mais frio e sexualizado às mulheres negras.

Além da sexualização dos corpos negros, a sua resistência física e mental também foi e ainda é uma ideia projetada dentro da sociedade. A mulher negra, assim como o homem negro, não é vista como sujeito, sua subjetividade é ignorada, seus sentimentos colocados em segundo plano, sua fragilidade é considerada inexistente, dando lugar ao conceito de que esses corpos suportam tudo. As mulheres negras, ainda hoje maioria em cargos de trabalho considerados subalternos, mãe-solteiras, supostamente acostumadas com um estilo de vida solitário e dificultoso, carregam a responsabilidade de serem sempre fortes e aguentarem os pesos que o mundo lhes reserva. Não lhes é dado direito a leveza de relacionamentos construtivos e de um afeto que as equipare as demais mulheres.

A política de embranquecimento do pós-abolição também é outro fator que pode ser levado em conta dentro dessa discussão. Há no imaginário brasileiro a ideia de que ser negro é algo negativo e que aproximar-se do padrão eurocêntrico, ou seja, branco, está intimamente ligado a um maior status social. A miscigenação da população proveniente dos anteriormente citados estupros de escravas e da política de embraquecimento, seria uma saída para que população se tornasse esteticamente e socialmente mais bem vista e capaz. É comum ainda hoje que os relacionamentos interraciais também sejam vistos como uma opção de distanciamento da descendência afrobrasileira. A junção dessa ideia com a noção desumanizadora e pecaminosa destinada a mulher negra, afasta os homens negros de enxergarem em uma união afrocentrada uma forma de relacionamento que lhes traga status, afeto real e segurança diante da sociedade. A mulher negra pode ser uma boa opção para o sexo, mas não será para uma relação estável e amorosa.

A insegurança do homem negro é resultado do que foi inicialmente pontuado neste texto, a falta de consistência na construção de sua identidade racial. O status social concedido e este homem proveniente do seu relacionamento com uma mulher branca vêm da compreensão de saber que aquela com que ele se relaciona é melhor aceita socialmente, o que o faz pensar que isso o também o fará ser bem aceito, o homem negro que “consegue” se relacionar com uma mulher branca é quase um homem branco também. É importante lembrar que essas idealizações e manifestações são muitas vezes feitas de forma involuntárias e inconscientes e que são frutos de uma cultura racista. O medo de reconhecer-se também envolve o medo de reconhecer-se no outro, e isso afasta homens e mulheres negras. A inferiorização causada por séculos de história em que homens e mulheres negras não eram vistos como sujeitos os fez terem dificuldades em se relacionarem entre si e a buscarem formas de se empoderar até mesmo dentro do amor.

Infelizmente, esse é um debate que vêm sendo bastante levantado entre as mulheres negras, obviamente por conta do impacto que esse preterimento e exclusão vem causando em suas vidas, mentes e corpos, mas que é pouco discutido e até negado pelos homens negros. A posição de comodidade pela menor dificuldade desses homens no campo afetivo faz com que estes neguem ou não se preocupem com essa realidade. Além disso, o racismo aliado ao machismo, os leva para um caminho em que a sexualização dos seus corpos se torna uma vantagem e a responsabilidade em relação ao emocional das mulheres com quem se relacionam não seja algo importante em suas vivências.

Às mulheres negras cabe agora seguir com a reflexão e discussão do que é viável para sua saúde mental e para a construção de sua dignidade, enxergar formas de empoderamento além dos padrões heteronormativos e afrocentrados de quaisquer tipos de relacionamentos, além do fortalecimento e independência em sua autoaceitação, construção de sua autoestima e em sua formação como sujeito. Obviamente é esperado que as problemáticas da população negra sejam refletidas e organizadas de forma coletiva, mas a individualização dessas construções também é importante para um projeto coletivo.

Conta-se, é claro, que os homens negros ampliem suas visões para além de seu comodismo sustentado pelo machismo e pelo próprio racismo e reconheçam essa questão como uma questão importante para o fortalecimento da população negra. Nos reconhecermos como pessoas dignas de doação e afeto também é uma forma de nos fortalecer social e politicamente. Muitas mulheres negras têm adoecido mentalmente por conta de sua solidão, solidão essa que não significa apenas a falta de um companheiro, seja ele negro ou branco, mas a exclusão de um lugar em que possam se sentir verdadeiramente amadas e respeitadas, enfim, em que possam se sentir humanas.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

+ sobre o tema

Mídia e diversidade sob a ótica de três mulheres negras

A Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do...

Mulher negra avança no social, mas segue distante no trabalho e na política

Mulher, negra, estudou, foi à faculdade, tem um bom...

‘Honestamente, você tem que saber rir de si mesma’, diz Rihanna

Há dois anos sem lançar nenhum álbum novo, Rihanna...

Racismo e xenofobia: precisamos falar sobre ser uma mulher negra que viaja sozinha

Cara leitora, Nunca se falou tanto sobre mulheres que viajam...

para lembrar

Conceição Evaristo é vencedora na categoria Prosa do Prêmio Faz Diferença

Categoria Segundo Caderno/Prosa: CONCEIÇÃO EVARISTO no Globo Escritora mineira radicada no...

Pela primeira vez, negras são maioria como rainhas de bateria

Das 12 escolas postulantes ao título do Grupo Especial,...

The fight for equality in art and architecture

Brazilian artist and architect Muha Bazila gave a lecture...
spot_imgspot_img

Comida mofada e banana de presente: diretora de escola denuncia caso de racismo após colegas pedirem saída dela sem justificativa em MG

Gladys Roberta Silva Evangelista alega ter sido vítima de racismo na escola municipal onde atua como diretora, em Uberaba. Segundo a servidora, ela está...

Uma mulher negra pode desistir?

Quando recebi o convite para escrever esta coluna em alusão ao Dia Internacional da Mulher, me veio à mente a série de reportagens "Eu Desisto",...

Da’Vine Joy Randolph vence o Oscar de Melhor atriz coadjuvante

Uma das favoritas da noite do 96º Oscar, Da'Vine Joy Randolph se sagrou a Melhor atriz coadjuvante da principal premiação norte-americana do cinema. Destaque...
-+=