Conferência de Promoção da Igualdade Racial e a relação dos movimentos anti-racistas com o Estado brasileiro

Organizações do movimento anti-racista brasileiro estão empenhadas na construção do processo das conferências de promoção da igualdade racial convocado pelo governo federal. O processo, como todas as conferências temáticas, preveem a realização de conferências municipais e estaduais que elegerão representantes para a nacional, momento em que serão aprovados planos e programas a serem implementados pelo governo no tocante ao combate ao racismo.

Este modelo de conferências faz parte de uma concepção de políticas públicas singular, defendido principalmente pelo PT e partidos aliados, com dois eixos característicos: a transversalidade e o controle social.

Para o movimento anti-racista, a transversalidade tem sido uma norma presente nas suas bandeiras. O caráter estrutural e institucional do racismo brasileiro, que permeia todas as formas de relação social coloca como demanda da luta anti-racista procurar a superação da discriminação em várias frentes. Por isto, o movimento anti-racista tem marcado presença em vários campos: direitos humanos, relações de gênero, direito das crianças e adolescentes, educação, saúde, moradia, trabalho, entre outros.

Após um período em que o marco da luta anti-racista foi a denúncia da farsa da “democracia racial” brasileira, evidenciando o racismo por meio de dados e estatísticas que demonstram a desvantagem étnica em vários campos, desde os anos 1990 que o movimento anti-racista tem se esmerado na defesa de políticas públicas de caráter horizontal (genéricas) e vertical (específicas, ações afirmativas). O documento entregue pelo movimento negro na Marcha Zumbi dos Palmares em 1995 ao governo brasileiro que compôs o GTI (Grupo de Trabalho Interministerial) para se elaborar programas de combate ao racismo foi um momento importante em que se consolida a ação transversal no campo das políticas públicas para combater o racismo.

Esta situação traz alguns desafios para o movimento, entre elas uma dificuldade de focar ações, priorizar determinadas demandas e construir agendas mínimas que permitam mobilizações de maior envergadura e, com isto, formas mais eficazes de pressão sobre o Estado. A própria constituição dos espaços institucionais específicos para discutir a temática racial como os conselhos e as secretarias de promoção da igualdade racial enfrentam esta dificuldade. Em virtude do caráter necessariamente transversal das ações de combate ao racismo, estes espaços institucionais funcionam (ou deveriam funcionar) muito mais como espaços de articulação junto a outros aparelhos institucionais da máquina do governo (como secretarias e ministérios), exigindo assim que os seus ocupantes tenham uma grande capacidade de articulação política.

O enfrentamento deste desafio poderia ser facilitado com o fortalecimento dos espaços de participação, como os conselhos e conferências, onde a sociedade civil organizada tem possibilidades de pressionar e apontar rumos de acordo com as demandas do movimento social. Porém, aqui entram outros problemas. As organizações do movimento anti-racista são, na sua maioria, frágeis por fazerem parte justamente do segmento social mais oprimido da sociedade brasileira e, portanto, com dificuldades imensas de auto-sustentar tais organizações. Isto faz com que as agendas do movimento anti-racista tendam a se submeterem às agendas governamentais ou eleitorais. Não estou aqui criminalizando a participação de partidos políticos nos movimentos sociais, que considero mais que legítimo. Mas apontando uma situação concreta que dificulta a construção de um espaço minimamente autônomo do movimento social anti-racista que possa, inclusive, problematizar com as agendas partidárias, governamentais e/ou eleitorais.

O enfrentamento deste desafio exige uma discussão sobre a estratégia de como atuar nestes espaços institucionais participativos. O “fazer política” no movimento anti-racista aqui transcende a mera defesa ou oposição ao governo de plantão (que pode ser feita mas não se esgota nela) mas sim em, primeiro, entender os limites da participação nestes espaços levando-se em consideração a natureza racista do Estado brasileiro, já demonstrada por estudiosos como Clóvis Moura e Florestan Fernandes; e segundo, não esgotando a atuação do movimento na mera participação nestes espaços ou ainda na reverberação das suas agendas.

Analisando as discussões da III Conferência de Promoção da Igualdade Racial, o que salta aos olhos é a ausência de uma avaliação do que foi realizado neste campo tendo como referência o que foi aprovado na II Conferência. O documento da II Conferência tem mais de 100 páginas de resolução envolvendo as mais diversas áreas, desde terras de quilombolas, ações afirmativas no campo das contratações para o serviço público, meios de comunicação, medidas para a implementação da lei 10639/03 e 11645/08 entre outros (clique aqui para ler). Fazendo uma leitura mais acurada do que foi aprovado, muito pouco do que esta lá foi implementado. As perguntas que deveriam ser feitas nestas discussões desta III Conferência é o que foi implantado totalmente, parcialmente ou que não foi implantado? Do que foi implantado quais são os resultados alcançados? E do que não foi implantado totalmente ou não foi implantado, o porquê disto?

Aí sim, a partir destas questões que as organizações do movimento social anti-racista devem se posicionar, discutir, divergir e, a partir disto, definir novos programas e metas para serem implantados e avaliados na conferência seguinte e monitorados pelas entidades que compõem os conselhos participativos.

A ausência desta discussão acaba por transformar tais conferências em grandes encontros nos quais as temáticas são sempre colocadas como iniciando do zero, o debate fica esterilizado pelas divergências partidárias movidas não por concepções ideológicas (o que seria salutar) mas por táticas eleitorais da realpolitik e, o que é mais grave, muitas vezes estes espaços institucionais viram balcão de negociações para apoio de projetos de organizações.

Por: Dennis de Oliveira

 

Fonte: Revista Fórum 

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