Coronavírus e violência sexual infantil

Artigo produzido por Redação de Geledés

Um único assunto toma praticamente todos os espaços das mídias tradicionais e digitais: o coronavírus. Isso não é só compreensível como necessário; afinal, estamos no meio de uma pandemia. Mas assuntos conexos —como a questão da vulnerabilidade social agravada (e o medo da violência a partir daí) e o aumento da violência doméstica (em razão do confinamento)— começam a despontar.

Quero propor aqui um outro, urgente! O risco de aumento da violência sexual contra crianças e adolescentes. Explico.

Em 2018, escrevi neste mesmo espaço sobre o perigo de se admitir o ensino domiciliar no Brasil. Citava um estudo da Universidade de Wisconsin que constatou que 76% das crianças vítimas de violência intrafamiliar grave nos EUA não frequentavam a escola. Tratava-se, à época, de risco iminente e excepcional, mas agora estamos todos em um isolamento absolutamente necessário e não há escolas nem outros espaços de convívio onde crianças possam pedir socorro.

Meninas estão isoladas em casa, em muitos casos com seus violadores. Estou exagerando? Dados do boletim epidemiológico nº 27 do Ministério da Saúde apontam que entre 2011 e 2017 foram registrados 141.105 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, o que configura 76,5% de todos os casos registrados. Importante chamar a atenção para o fato de que a maior parte das notificações é da região Sudeste, o que obviamente explicita o enorme índice de subnotificação. Dentre as vítimas, 74,2% são meninas, e 71,2% dos casos ocorrem nas residências.

Bom, mas alguém pode pensar: “Mas as mães estão em casa, nada pode acontecer com suas filhas”. Errado. Mães em casa não são garantia de que a violência sexual não ocorra. Quem lida com essa questão sabe muito bem que muitas mulheres chegam a culpar as filhas pelo que lhes aconteceu ou então se omitem por medo dos companheiros. Medo este que não é descabido, em especial neste momento. Basta ver os dados sobre violência contra a mulher em tempos de confinamento.

Números recentes do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos indicam um aumento de 9% de denúncia pelo canal do telefone 180, e a Justiça do Rio de Janeiro uma alta de 50% nos registros de casos de violência doméstica. Esse quadro é mundial, tanto que o secretário-geral da ONU, António Guterres, fez um apelo para que os Estados incluam programas especiais de proteção para as mulheres em suas respostas contra a Covid-19.

Até o momento falamos da violência intrafamiliar, mas falemos de violência sexual infantil pela internet. O recurso aos sites pornográficos como forma de entretenimento em tempos de confinamento está caracterizado pelo aumento do número de usuários. Só para exemplificar, a produtora de vídeos Brasileirinhas duplicou o número de assinaturas por dia, enquanto o site Sexy Hot aumentou em 25% o número de usuários. Estamos falando de diversão adulta, feita por adultos e para adultos? Em tese sim, mas a experiência tem demonstrado que é mais complicado que isso.

Primeiro porque crianças e adolescentes (que já viviam na internet e agora estão legitimados pela situação) têm livre acesso aos conteúdos gratuitos desses sites, o que já é ruim por si só. Mas é pior que isso, pois pela rede mundial de computadores estão extremamente vulneráveis às situações de exploração sexual.

Relatório da Europol, inteligência policial da União Europeia, publicado no dia 3 de abril, demonstra que as organizações criminosas estão se adaptando aos novos tempos. Houve diminuição nas atividades de tráfico e contrabando e aceleração em outras —dentre as quais, a produção e distribuição de pornografia infantil. Na Espanha, por exemplo, entre 17 e 24 de março, houve um aumento de 25% no download de material pornográfico infantil, tendência que, segundo o relatório, se verifica em outros países europeus.

Enfim, a situação de confinamento gerada pelo coronavírus tem agravado algumas formas de violência e, sem sombra de dúvida, o abuso e a exploração sexual infantil. Não dá para esperarmos passar a pandemia para falar desse assunto.

Luciana Temer
Advogada, professora da Faculdade de Direito da PUC-SP e da Uninove e presidente do Instituto Liberta

 

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