Corrigir distorções históricas

As cotas para excluídos têm sido objeto de inúmeras controvérsias no Brasil. Chama atenção, porém, o quanto a rejeição às políticas de inclusão relacionadas às cotas são combatidas com base na defesa da “meritocracia”.

Inicialmente, é importante lembrar que as palavras mais adequadas para se referir às políticas inclusivas que dizem respeito às cotas são “ações afirmativas”.

Ou seja, em circunstâncias bem específicas, o Estado empreende ações a favor de determinados segmentos da população que acumulam desvantagens históricas.

Nos Estados Unidos, por exemplo – a meca da “meritocracia” –, as ações afirmativas foram implantadas nos anos 1960, no âmbito da luta pelos direitos civis. Elas permitiram, por exemplo, a ascensão de líderes como Collin Powell, Condoleezza Rice e Barack Obama.

No caso do Brasil, a situação é muito mais grave, pois a população negra – proporcionalmente muito maior do que nos EUA – ainda sofre os efeitos de nosso passado escravocrata e está presente em todas as estatísticas cujos números revelam preteridos, excluídos e discriminados

Para além da inegável presença do preconceito racial – velado ou dissimulado – em nosso cotidiano, muitas estatísticas mostram que o dia a dia da população negra está repleto de portas fechadas.

Soma-se a isso a disseminação de estereótipos que associam a população negra a situações em que é representada como “pessoas inferiores” ou “serviçais”.

As ações afirmativas abrangem negros, pardos, indígenas e há situações específicas em que essas ações incluem também oriundos de escolas públicas e, no universo político partidário, pode-se constatar a referência à cota mínima de mulheres candidatas

É importante entender porque o argumento da meritocracia não tem densidade para refutar a importância das cotas, ou melhor, das ações afirmativas.

As ações afirmativas têm papel fundamental para que sociedades como a brasileira possam agir seriamente visando corrigir distorções que não são naturais; ao contrário, resultam da construção de privilégios que se acumularam à custa da obstrução do acesso às instituições básicas de uma sociedade democrática, como a educação, saúde e trabalho registrado.

Submetidas a condições socioeconômicas muito desfavoráveis, muitas pessoas são simplesmente acusadas de “pouco esforço” para obter mobilidade social. Elas já saem em desvantagem.

De forma complementar, os que têm acesso aos bens materiais e culturais da sociedade muitas vezes argumentam que têm mérito para isso, deixando subentendido que os que estão fora não têm.

Como as estatísticas claramente mostram o predomínio da população branca nos principais postos de trabalho e nos espaços institucionais mais estratégicos, esse raciocínio produz uma distorção de fundo racista.

Nesse modo superficial de pensar, fica subentendido que os brancos têm naturalmente mais méritos e se esforçam mais para conseguir o que conseguem. Dessa maneira, apaga-se a história e recusa-se a analisar criticamente o dramático cenário atual.

Cabe acrescentar aqui que o afastamento temporário da presidente Dilma não pode significar o abandono das políticas públicas por ela instaladas ou herdadas, que criaram caminho para a redução das desigualdades e ampliação das oportunidades às classes menos favorecidas.

Nesse sentido, é no mínimo preocupante observar as primeiras ações do governo Michel Temer: o fato de não haver sequer um negro ou uma mulher no ministério e a anunciada incorporação da Secretaria de Direitos Humanos ao Ministério da Justiça, a ser chefiado por ninguém menos que o ex-secretário da Segurança de São Paulo, Alexandre Moraes, que criminaliza os movimentos sociais tratando-os como “atos de guerrilha”.

A Fundação PoliSaber rechaça esse retrocesso e defende firmemente políticas de ação afirmativa por acreditar que a democracia é um processo em constante desenvolvimento, não um modelo já pronto e acabado. A democracia nasceu como o direito de uma minoria de escolher seus governantes; mas as lutas sociais ampliaram esse direito, estendendo-o a toda a sociedade.

Mais recentemente, a democracia incorporou a ideia de que a inclusão social e a das minorias são elementos constitutivos da cidadania. É nesse contexto que se encaixam as ações afirmativas, como corretivo de distorções históricas de sociedades estruturalmente desiguais como a nossa.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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