A cútis é minha, mas quem a define não sou eu…..

Essa semana fui tirar a segunda via da minha carteira de identidade e não há nada no mundo que nos identifique mais do que esse precioso documento. Basicamente todo mundo que eu conheço tem traumas da foto 3X4, ela parece nunca estar de acordo com o que somos ou sonhamos ser, mas é ela que todo mundo enxerga quando quer nos identificar quando precisamos entrar em algum lugar.
Cheguei ao SAC do Salvador Shopping às 13:20 como havia agendado, lógico que antes passei no toalete para fazer um make, porque agora eles tem um sistema que tira a foto na hora, e queria sair na foto minimamente apresentável, pois chega de traumas, mas não foi o que sucedeu…me dirigi à atendente, e esta que estava mal humorada, não me deu atenção. Pediu os documentos, preencheu os dados, conferiu tudo, tirou a foto, foram pelo menos três tentativas, afinal eu usei e abusei da câmera deles, queria de verdade uma cara legal. Depois de todo esse procedimento ela pediu-me, agora mais gentil, que conferisse meus dados para que pudesse ser feita alguma correção:
-confere aí para ver se tá tudo certo!
Eu li tudo, meu nome, nome dos meus pais, endereço, escolaridade e até que me deparei com a palavra cútis, e a minha cútis estava identificada como parda, parei de ler…não enxergava mais nada e a questionei:
-Por que aqui diz que sou parda?
-Porque você é parda, você não é branca.
-Não, disso eu sei, branca eu não sou mesmo. Mas por que parda? Qual o critério que vocês usam?
-Minha senhora, aqui só tem parda e branca, branca a senhora não é, logo a senhora é parda.
-Mas quem o SAC pensa que é para dizer que sou parda ou branca?
-Minha senhora, para mim a senhora é parda.
-Não me importa se a senhora ou quem quer que seja diga que sou parda ou qualquer outra coisa, quem define isso sou eu, não?
-Não. Assina aí. Se quiser saber mais converse com a coordenadora. Aqui só tem cútis parda e branca. Foi feita uma comissão aí e decidiram tirar amarelo e preto, e agora só tem isso.
-Estamos em Salvador, onde a maioria populacional tem a cútis preta, se chegar uma pessoa aqui quase da cor desse seu mouse preto aí a senhora também vai colocar que a pessoa é parda?
-Eu não sei te dizer mais, se você quiser pode conversar com a coordenadora. Está tudo ok?
-Eu não sei, até o parda estava, depois disso não consegui ler e perceber mais nada…
Vem a coordenadora, muito simpática, e me chama para conversar em outro lugar. Eu questiono a ela o porquê de ter a identificação só para a cútis parda e branca, e ela me explica que na verdade ainda existe as referências para branca, preta, parda e amarela, que só foram tirados o pardo claro e pardo escuro, que inclusive agora ela entraria como branca e não mais como parda clara. O fato é que ela me contou a história da sua vida, filha de pai negro, o que lhe dava grande orgulho e precisou conter o choro por pelo menos umas duas vezes. Explicou-me que quando vivia no RJ não enxergava esse racismo todo, que só foi vê-lo aqui em Salvador. Eu expliquei para ela que isso podia ocorrer com mais frequência por uma questão de exposição, que nossa cidade era composta por maioria negra, logo a discussão e percepção do racismo era mais evidente, ao que ela me disse que não via porque discutir, que eu era jovem e bonita, não precisava ficar preocupada com isso, ao que eu disse:
-Um dia eu quero ter filhos, e se eles forem negros, aliás tiver a cútis preta, eu não vou querer que eles passem por cinco por cento do que tenho passado nesses 25 anos de vida.
Acho que ela ficou preocupada, sentida, sofrida…
Sinto que há uma pressão política de higienização racial insistente e incessante, ainda que silenciosa, ela existe. Querem transformar nossa cidade em um lugar de mestiços e documentar isso, pois contra estatísticas não há argumentos. Se um órgão federal atesta que a maioria da nossa população é parda, não pode existir racismo. Essa sempre foi a manobra utilizada pelas classes dominantes para disfarçar um fato, e através disso negar que ele existe, logo não precisa de política pública para algo que não existe.
Foi o que eu entendi! Ah e eu sou parda, segundo a moça do SAC.

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