Democracia e direitos fundamentais: contra a criminalização dos movimentos sociais

Texto de Camilla de Magalhães Gomes. – Foto de André Naddeo/Terra.

#AsilaMujica – Em apoio a Eloisa Samy, David Paixão e Camila Nascimento, que pediram asilo no Consulado do Uruguai hoje e aos demais ativistas criminalizados.

Eu queria apenas dizer: “dessacralizem o direito”, mas vai ser mais do que isso. Porque nessas horas, em que um caso penal vira assunto em todos os lugares, há sempre os positivistas, os ponderados, os ingênuos e os puramente canalhas que vem argumentar com: “mas a lei de prisão temporária”“mas a lei de organizações criminosas”“mas eles podem ser culpados”.Mas, mas, mas…

1) Não há mais direito à ingenuidade — ao menos não para aquela/es que acho que leem isso aqui. E, se esse direito não há, junto com ele a naturalização — ou quase sacralização do direito — também tem que cair.

O sistema legal, o sistema jurídico-penal é um grande projeto ou, como diz a Profª. Drª Vera Malaguti, uma profecia autorrealizável. Tomá-lo de forma acrítica, interpretá-lo e aplicá-lo como mera subsunção é exercício de ingenuidade, para dizer o mínimo. Quando a Lei de Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013) apareceu, fiz nas redes sociais uma previsão de que isso serviria, logo mais a frente, para criminalizar os movimentos sociais que começavam a pipocar com mais força e, que portanto, demandavam uma “solução”.

Não tenho poderes premonitórios, o que ocorre é simplesmente a autoconfirmação da profecia: a lei, esse instrumento supostamente a ser utilizado para disciplinar condutas gerais e abstratas já socialmente observadas e consideradas relevantes; cria, na verdade, a realidade (!) que pretende disciplinar.

Então, que não temos: a) fatos graves contra bens jurídicos relevantes que não conseguem ser solucionados por outras instâncias jurídicas; b) tipos penais e leis penais criadas para funcionarem como instrumento de proteção a esses bens jurídicos (tese essa com a qual não me filio, mas vá lá); c) crimes praticados após a edição da lei e as pessoas suspeitas de o terem praticado sendo investigadas, denunciadas, processadas e condenadas.

Nosso cenário é outro, por isso que não posso falar de lei penal sem falar em criminologia. O que temos é um grande projeto de criminalização, não apenas esse que se discute por aqui, exercido pelas forças policiais, a que se costuma chamar criminalização secundária. Esse projeto começa na produção legislativa: a criminalização primária. É nesse contexto que responde o atual momento de criminalização dos movimentos sociais, resumidos na absurda denúncia baseada em um inquérito policial com 2 mil páginas e oferecido duas horas depois da peça policial ter sido recebida no Ministério Público. Com qualquer referência “sensata” à lei, isso se torna algo entre uma imensa cegueira, uma legitimação do projeto criminalizante ou apenas pura canalhice.

2) O que temos então? “A profecia autorrealizável é, no início, uma definição falsa da situação, que suscita um novo comportamento e assim faz com que a concepção originalmente falsa se torne verdadeira”Robert K. Merton.

A profecia da lei, ajudada por outras tantas ferramentas que o sistema já produziu dentro dessa mesma lógica em que opera — a exemplo da lei de prisão temporária, uma gigantesca aberração jurídico-processual, flagrantemente inconstitucional, que autoriza o “prender para investigar” e que consegue dar tintas de legalidade a uma decisão judicial que repete a prática da “prisão para averiguação” — se fez decisão judicial que, depois de “prender para investigar”, “prende para que não venham a cometer crimes”.

O que ocorre nesse caso não é muito diferente do que se observa no cotidiano das varas criminais no Brasil. O “diferente”, talvez, seja que se tivermos um pouco de atenção e paciência ao montarmos os pedacinhos, é possível ver passo a passo esse processo de criminalização. E, essa diferença tem um motivo: enquanto boa parte do projeto criminalizador ocorre no que chamamos de “sistema penal subterrâneo”, que invade, prende e mata pessoas nas favelas e periferias, longe dos nossos olhos, no caso da denúncia contra os ativistas nós conseguimos ter acesso a um pedaço considerável do que acontece, seja porque as vítimas são professores (caso de Camila Jourdan), seja porque Eloisa Samy é advogada, seja porque os movimentos que se iniciaram em junho do ano passado tiveram imensa repercussão, seja porque as mídias sociais estiveram acompanhando cada momento, seja porque as vítimas aqui tenham um pouco mais – e bem pouco – de instrumental sócio-econômico e jurídico para fazer frente ao sistema penal. Não dá para fechar os olhos a essa diferença mas, é possível — e é essencial que assim se faça — para aproveitar o que essa diferença nos proporciona em termos de combate ao sistema.

No bojo do “então o que temos?”, ainda há mais! Falar do papel da violência e arbitrariedade da atuação das polícias já é voz constante e precisa se manter. Ao lado disso, interessa também discutir o papel dos responsáveis pela criação, discussão e promulgação de leis penais (1) e, por fim, discutir o papel do Poder Judiciário e do Ministério Público nesse “projeto”.

Costumo dizer que, como professora e advogada da área criminal, não se pode sair por aí comentando casos criminais de repercussão quando nunca sequer examinei os autos. Pois bem, mantenho essa posição e não estou aqui para dizer se a/os denunciada/os são culpados ou inocentes. Não posso fazer isso, nem o faria. Ocorre, no entanto, que há critérios e direitos mínimos que precisam ser observados em qualquer investigação e/ou processo: presunção de inocência, justa causa para a ação penal, ônus da prova de acusação, devido processo legal; são todos parte desse conjunto que chamei de critérios e direitos mínimos mas, que também podemos chamar de direitos fundamentais do acusado. Assegurar esses direitos é dever do juiz, respeitá-los e atuar debaixo deles é dever do membro do Ministério Público.

O que temos, contudo, são: decisões de prisão preventiva para que acusados não venham a cometer crimes, prisão temporária para realizar atos de investigação num inquérito que já durava mais de meses, excesso de denúncia para justificar a adoção de procedimentos não cabíveis para crimes isolados, baixíssimo controle de legalidade realizado por juiz ou promotor da atividade policial no inquérito, uma denúncia que não faz referência a nenhum elemento específico colhido no inquérito, uso de ilações e suposições que, ao menos diante de uma primeira leitura, não correspondem a uma acusação sólida fundada em prova mínima de autoria e materialidade.

3) Não há direito a ingenuidade. Esse projeto que vai se desenhando de forma tão assustadoramente correspondente ao que nos acostumamos a criticar na criminologia é também realizado pelos agentes que funcionam dentro do sistema de justiça.

denúncia do Ministério Público contra 23 ativistas é um exemplo bem característico. Quer ver? Começa dizendo que:

“Em período iniciado após o mês de junho de 2013 e que estendeu-se até o presente momento, os denunciados, de forma livre e consciente, associaram-se com a finalidade de praticar no contexto das manifestações populares iniciadas no primeiro momento, crimes diversos, notadamente os seguintes:

– Danos, tanto na modalidade básica quanto na qualificada de que tratam os incisos II, III e IV do Parágrafo Único do art. 163 do Código Penal, consubstanciado pelas condutas de depredar o patrimônio privado – agências bancárias, lojas e veículos – e público ou de concessionárias de serviços públicos, com a destruição de pontos do mobiliário urbano e incêndio de ônibus;

– Resistência (arts. 329 do Código Penal, incidindo), notadamente com a utilização de violência contra a pessoa, tal como o arremesso de pedras e de artefatos incendiários tendo como alvo, principalmente, policiais militares e outros agentes de segurança pública;

– Lesões corporais, consumadas e tentadas, na forma do caput e dos parágrafos do art. 129 do Código Penal, em geral decorrentes dos atos de resistência à atuação da polícia;

– Posse de artefatos explosivos, notadamente bombas de fabricação artesanal,como a apreendida sob a posse da denunciada Camila Jourdan (fl. 1731/1733);

– Corrupção de menores, consistente em incentivar a participação de adolescentes nas condutas acima descritas”

O crime de quadrilha é uma tipificação curiosa que incrimina a associação com “o fim específico de praticar crimes” e que, portanto, pode ser objeto de uma denúncia — ainda que o tal crime para o qual se juntaram os agentes não venha a ser cometido — é essa, infelizmente, a inconstitucional interpretação dada pela jurisprudência que o chama de “crime de perigo abstrato”.

As condutas que o membro do Ministério Público cita como sendo os objetivos do grupo ou configuram delitos de menor potencial ofensivo ou tem penas que não extrapolam os 3 anos. Na realização da profecia, no entanto, o excesso de denúncia serve a nos entregar um grupo criminoso altamente perigoso. Isso sem contar a ideia de que pessoas se reúnem para “praticar crimes tentados”. É risível e vergonhoso.

Repito: com isso não estou a discutir mérito, inocência ou culpa. Mesmo porque, as questões que coloco aqui — e esse é o ponto que quero evidenciar — independem de inocência ou culpa e fazem parte do conjunto mínimo de direitos fundamentais constitucionalmente previstos a serem assegurados a qualquer acusado em um processo penal e que seguem sendo violados nessa história.

4) Por fim, o que se vê é uma destruição da democracia?

Discordo um pouco dessa forma de ver as coisas. Há violação da democracia, como observamos mas,  mais do que isso, há o desrespeito a direitos fundamentais. Eu ainda estou com aqueles que professam que democracia é forma, procedimento, sistema (sei que há diferenças entre os que defendem cada uma dessas expressões mas vou juntá-las para simplificar) e que seu conteúdo é objeto de disputa e pode ser mais ou menos preenchido com um conjunto de direitos. O embate entre democracia e direitos fundamentais talvez seja o embate central de Política e Constituição.

Cada vez que uma violação de direitos fundamentais aberrante como essas ocorre e gritamos que há uma “violação da democracia”, é fácil para os responsáveis pela violação responderem. Afinal, o sistema democrático segue aí funcionando: temos eleições livres, periódicas, instrumentos de participação popular na política e na justiça, etc.

Sei o perigo do que digo, afinal, pode ser lido como: “então cabe qualquer coisa numa democracia”. Porém, tenho adotado tal teoria por julgar ser a que hoje melhor explica o que observamos no campo dos direitos fundamentais e suas violações. A essa possível objeção, respondo: somos mais que uma democracia, somos um Estado Democrático Constitucional de Direito e, é esse pedaço final, o “Constitucional” e o “de Direito” que precisa ser nosso objeto de luta. É esse pedaço final aí o conteúdo que se permite ou não colocar e exercer dentro desse Estado Democrático, o qual estamos vendo ser esmagado e mesmo destruído a cada dia, especialmente desde que o junho de 2013 começou.

Não me parece à toa que tenha sido tão fácil para a força estatal e a força midiática seguir na criminalização dos movimentos sociais e de ativistas dos direitos humanos. Em nome da “manutenção das instituições democráticas” justificam-se as restrições aos direitos fundamentais. É lá, naquele embate entre democracia e direitos fundamentais, que está a chave. E nesse embate, os direitos fundamentais são rifados dia sim, dia também, em nome da forma.

É de conteúdo que se fala. É da defesa de um conteúdo de direitos fundamentais que tratamos. É do enfraquecimento de grupos que lutam pela garantia e ampliação desse conteúdo que fala o momento. Esse esvaziamento não pode ser tolerado e essa “política da forma” não pode mais se sustentar. E não, não cabe qualquer coisa em uma democracia. Perdemos dos dois lados, porque se o que se criminaliza aqui é justamente o direito de se manifestar, então nem democracia nem direitos fundamentais sobrevivem. Nem forma, nem conteúdo.

 

Fonte: Blogueiras Feministas

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