Desigualdade como legado da escravidão no Brasil

Impactos de séculos de utilização da mão de obra escrava repercutem nas dimensões social e econômica do país

Por Maria Teresa Manfredo

Trazidos da África desde o início do século XVI, trabalhadores escravos negros tiveram importante papel na economia do Brasil até o século XIX e ajudaram a compor nossa cultura. Embora os números da chamada “diáspora africana” não sejam precisos, é consenso que nosso país foi o destino mais frequente dos milhões de homens e mulheres feitos cativos no continente africano, por mais de trezentos anos (veja infográfico). “As relações escravistas no Brasil foram complexas e seus impactos culturais são inúmeros”, afirma Leandro Jorge Daronco, doutor em História e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha (IF – Campus Santa Rosa, RS).

É preciso lançar pelo menos dois olhares sobre os legados da escravidão no Brasil, segundo o historiador. O primeiro ponto seria os aspectos formadores da cultura, da identidade e da etnicidade brasileiras, pois o negro africano constitui um dos pilares étnicos de nossa formação social e cultural. Sua contribuição está imbricada na cultura geral, na religiosidade, na multiculturalidade étnica, na culinária, na musicalidade, na dança e nas demais expressões artísticas.

O segundo ponto seria a presença determinante do trabalho negro nos principais ciclos produtivos da história brasileira: açúcar, ouro, pecuária, café, entre outros. O escravo tornou-se imprescindível ao funcionamento da colônia e, mais tarde, do Brasil Imperial. Ao mesmo tempo, a escravidão produziu mazelas históricas em nosso país que dificilmente poderão ser reparadas. Uma dessas marcas é a segregação étnico-racial.

Democracia racial

Após a abolição, a segregação dos negros foi estrategicamente silenciosa. “Os problemas de racismo historicamente ocorridos no Brasil foram cobertos por uma roupagem demagógica e hipócrita que não contribui para enfrentá-los, a exemplo do ocorrido nos Estados Unidos ou na África do Sul. Nosso ‘apartheid’ continua invisível”, afirma Daronco.

O pesquisador aponta que o negro pós-abolição percebeu-se com a vida cerceada, desprovido de terra, do acesso à educação e, em muitos casos, de qualificação profissional. “Restou àqueles milhões de africanos e afro-brasileiros ‘sem sobrenome’ buscar as periferias urbanas como local de moradia, o trabalho nas estradas de ferro, nas docas, ou permanecer junto a seus antigos senhores em situação muito semelhante à vida dos tempos de escravidão.”

Além disso, os governos republicanos que se seguiram, muitas vezes influenciados por noções difundidas por intelectuais brasileiros, disseminaram a ideia de uma “democracia racial” em nosso país. O historiador, sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre, nos livros Casa Grande e Senzala e Sobrados e Mocambos, deu sua colaboração para isso. O conceito de democracia racial retira a escravidão da ótica da dominação. O mestiço afro-brasileiro comprovaria a mistura entre os diferentes em nosso país, atestando, assim, que não somos racistas. Daronco explica que, a partir da ideia de que vivemos numa democracia racial, “o preconceito e o racismo foram escamoteados pela visão idealizada de um passado de relação harmônica entre os diversos grupos étnicos que se encontraram aqui”.

Daniela do Carmo Kabengele, doutora em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), destaca que, na educação, no mercado de trabalho, na política e em outras importantes esferas da sociedade brasileira, a população negra tem menos oportunidades que a população branca. Esse fato seria estrutural, estruturante e histórico em nosso país. “O racismo se faz presente no Brasil há muito tempo, de maneira particular e na maior parte das vezes encoberta”, relata.

Naturalização da desigualdade

Uma herança da escravidão particularmente sentida até os dias atuais seria a naturalização da desigualdade em nossa sociedade, explica Ricardo Alexandre Ferreira, doutor em História e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp – Campus Franca). O Brasil do século XIX passou a manejar os novos ideais de liberdade e igualdade apregoados no mundo ocidental e, ao mesmo tempo, manteve em seus quadros legais a escravidão dos africanos. Nascia um país “moderno” que afirmava não poder se desvencilhar imediatamente do cativeiro. Nascia um país “livre e igual”, composto por meios cidadãos (os ex-escravos ou libertos) e não cidadãos (os cativos). “Esse legado, não menos importante do que os vinculados à arte, à culinária, à construção de edificações, à religião, enfim, ao desenvolvimento de uma cultura mestiça, acabou por nos marcar efetivamente como um povo que tem desigualdade enraizada em sua cultura”, pontua Ferreira.

A naturalização da desigualdade social é tratada no livro A Ralé Brasileira, de Jessé Souza, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em que o autor expõe o drama histórico da sociedade brasileira: a reprodução de uma sociedade que considera normal e aceitável ter “gente” de um lado e “subgente” de outro; uma sociedade discriminatória que classifica seres humanos em diferentes categorias, de acordo com sua posição econômica.

Acontece que, no Brasil, por processos históricos ligados à escravidão, a desigualdade social está muito atrelada à questão étnico-racial. De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 1995 a 2005, acerca de especificidades da situação social do negro no Brasil, ao longo de toda a vida, a população negra é a que mais sofre com o mau atendimento do sistema de saúde e termina por viver menos.

Devido à situação de pobreza em que a população negra está majoritariamente inserida, bebês negros nascem com peso inferior a bebês brancos e têm maior probabilidade de morrer antes de completarem um ano de idade, além de menor probabilidade de frequentar uma creche. São também os brasileiros negros que apresentam as mais altas taxas de repetência na escola, o que muitas vezes os leva a abandonar os estudos em níveis educacionais inferiores aos dos brancos.

Jovens negros morrem de forma violenta em maior número que jovens brancos e têm probabilidades menores de encontrar um emprego. Quando empregados, recebem menos da metade do salário pago aos brancos, aposentam-se mais tarde e com rendimentos inferiores.

No que diz respeito ao quadro pós-abolição, Daronco lembra que, enquanto negros norte-americanos eram segregados no emprego, grande parcela dos negros brasileiros eram segregados do emprego. O mundo do trabalho brasileiro foi perverso com os africanos e afrodescendentes livres. Décadas foram necessárias para amenizar as mazelas provocadas pela escravidão. Mesmo assim, os números ainda são implacáveis quando se trata de estabelecer parâmetros sobre os negros e pardos no Brasil: índices de escolaridade, empregabilidade, vulnerabilidade social, entre outros, denunciam o legado desigualdade da nossa história.

Tentativas de suprir as desigualdades étnico-raciais

Observam-se, sobretudo na última década, tentativas de redução das desigualdades étnico-raciais em nosso país, expressas principalmente por políticas públicas afirmativas. Um exemplo desse tipo de política, conhecido também como “discriminação positiva”, é o sistema de cotas universitárias, aprovado pelo Senado brasileiro e sancionado pela presidência em agosto deste ano.

O sistema determina cotas raciais e sociais nas universidades públicas federais de todo o país, devendo ser metade das vagas nas universidades separadas para tais cotas (25% do total de vagas destinados aos estudantes negros, pardos ou indígenas, de acordo com a proporção dessas populações em cada Estado, e 25% destinados aos estudantes que tenham feito todo o segundo grau em escolas públicas e cujas famílias tenham renda per capita de até um salário mínimo e meio).

Contudo, alguns argumentos contrários à adoção desse sistema pregam que as cotas vão fazer de nossa sociedade uma sociedade racista. Nesse sentido, Daniela Kabengele pondera: “ora, se é certo que o Brasil não experienciou, stricto sensu, o apartheid, como a África do Sul, nem as políticas abertamente discriminatórias observadas nos Estados Unidos até 1964, certo também é que o Brasil está longe de ser uma democracia racial”. A antropóloga destaca que as cotas permitem colocar em debate a presença desse racismo à brasileira e defende que as mesmas funcionam como uma profícua medida antirracista.

Além disso, “estudos têm mostrado que os cotistas consideram cotas uma conquista democrática e, nesse registro, manifestam orgulho por sua condição. Os cotistas das universidades que adotaram o sistema – tais como a Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade de Brasília (UnB) e Universidade do Estado da Bahia (Uneb) – tiveram desempenhos iguais e até superiores aos não cotistas”, explica.

A criação, em 2003, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), órgão do Poder Executivo, demonstra a importância dos problemas atuais envolvendo a desigualdade e o preconceito no país. Assinala, também, que o efetivo alcance da democracia é um assunto tão complexo e difícil como a relação do negro com a História do Brasil.

Fonte: Univesp

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