Dialogando com Kimberle Crenshaw (ou: porque falar de interseccionalidades nos limita)

Kimberlé Crenshaw (1959) é uma estudiosa afro-estadunidense responsável por cunhar o termo “interseccionalidade” ao analisar o que ela designa como “sistemas discriminatórios” (racismo, patriarcalismo, opressão de classe, etc), ou, ainda, “eixos discriminatórios”/ “eixos de poder/ “eixos de subordinação””. Segundo ela, tais sistemas (ou eixos) se sobrepõem ou se entrecruzam, criando intersecções complexas que atingem especialmente mulheres marginalizadas, e OCASIONALMENTE (???) homens marginalizados. Assim, mulheres pretaps e pobres e lésbicas e deficientes (por exemplo) seriam atingidas por opressões distintas porém interconectadas que as colocariam em situações de maior vulnerabilidade do que outras. A essa condição ela chama de “opressão interseccional”. Tal análise tem inspirado diversos grupos e trabalhos acadêmicos, mas há uma limitação nesta forma de pensar.

por Gilza Marques do Pensamentos Mulheristas

A análise interseccional, apesar dos seus esforços, é, ainda assim, uma análise cartesiana. Pensar em racismo, sexismo, classes, homofobia, xenofobia, gordofobia, capacitismo, etc…como opressões distintas porém interconectadas e analisar as partes fragmentadas da opressão para se atingir a totalidade opressora mascara o real problema que estrutura as opressões na nossa sociedade. Dá a sensação de que são muitas as opressões a serem combatidas e que os esforços para isso são inimagináveis, quando, na verdade, racismo, sexismo, homofobia, classismo, especismo, xenofobia, gordofobia (e seus mil “entrecruzamentos”), dentre outras, advém de um único lugar: das sociedades brancas com sua forte base judaico-cristã e imposição colonialista e imperialista ao redor do mundo. Não são opressões separadas interconectadas: é um bloco branco monolítico!

A interseccionalidade, também coloca em pé de igualdade as opressões, como se racismo e gordofobia fossem comparáveis, por exemplo. (Já reparou quando a gente fala de racismo sempre aparece uma mulher branca e gorda para dizer “eu também sofro?”). Colocar o racismo no mesmo patamar das opressões é colocar racismo como sinônimo de “discriminação”. Racismo não é discriminação, nem preconceito (que fique nítido, minha gente!) e, não sendo discriminação nem preconceito, não é comparável. Racismo é sistema de poder. Os povos do mundo não foram hierarquizados segundo suas orientações sexuais, ou porque eram gordos/magros. Foi o racismo que estruturou (e estrutura) a nossa sociedade (e antes que digam que é a classe, lembremos: as classes foram construídas a partir da raça e não o contrário). O racismo é, sem sombra de dúvida, a maior opressão da terra.

Na sua análise, Crenshaw analisa as opressões focando na mulher individualmente (ou no grupo de mulheres), e não no sistema que estrutura nossa sociedade. Parece que determinadas mulheres carregam um saco de opressão, sabe? (Negra+lésbica+gorda+deficiente+pobre+imigrante) e não é isso! A forma de análise da interseccionalidade é que é problemática. Não é a mulher que, a depender da sua característica é mais ou menos oprimida. É o sistema (e aí, no nosso caso, é o sistema branco, judaico-cristão, colonizador, etc, etc, etc…) que oprime mais determinadas mulheres a depender da característica que ela possua. O foco de análise interseccional está errado.

Analisando “interseccionalidades”, a gente cai no “não existe hierarquia de opressões” da Audre Lorde, quando nitidamente foi o racismo que hierarquizou o mundo (repito). Presumo que nossa dificuldade de analisar o todo advém, dentre outros, da forma como nossas mentes estão aprisionadas pela lógica ocidental de pensar, especialmente pela língua. Eu não sou mulher+preta+nordestina+latino-americana. Eu não sou uma soma de categorias distintas. Sou um ser inteiro! Tentar me fragmentar em unidades de análises, ou tentar fazer uma análise a partir de fragmentos (ou de intersecção de fragmentos) é uma forma branca de fazer ciência! À semelhança da medicina que separa o indivíduo em partes que serão cuidadas por diversos especialistas, essa forma de analisar as opressões jamais dará conta do real impacto da supremacia branca enquanto bloco monolítico opressor da nossa sociedade. Em última instância, a opressão é única. A opressão é a supremacia branca que se estrutura no racismo e se caracteriza por ser sexista, homolesbotransfóbica, capacitista, etc, etc, etc.

Finalizo esse texto chamando atenção para outra discordância da interseccionalidade: a de que, a depender da posição que eu ocupe, estarei sendo oprimida e opressora ao mesmo tempo. Assim, teoricamente, uma mulher preta pobre oprime uma mulher preta pobre deficiente, como se as opressões pudessem ser analisadas de maneira individualizada. A gente esquece, mais uma vez, de olhar o sistema de supremacia branca, o verdadeiro gerador de opressões. Não vamos esquecer quem são os verdadeiros opressores da nossa sociedade. Tenhamos nítido quem são nossos verdadeiros inimigos. Só assim poderemos destruí-los.

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