Eu estou lendo sobre cortiços do Uruguai e sobre os bairros afrouruguaios, me preparando pra contextualizar a entrevista de uma mulher uruguaia que entrevistei em janeiro, a Nuria. E tem muita violência na historia dela. Eu estava imersa, mas desconcentrei. Percebi que o homem que disse acima balançava a perna rapidamente e estava com o rosto vermelho, de raiva mesmo. Ai o telefone dele tocou e ele respondia muito alto:
Linha 5178/10, que faz o trajeto Jd. miriam – Pca João Mendes – Jd Miriam | Divulgação
– Minha bateria está acabando, to na Cupecê ainda! Avisa pra essa vagabunda me esperar ai e que se ela for na delegacia eu MATO ela, mando ela pro inferno!
Eu e as outras mulheres nos entreolhamos. E foi inevitável não sentir a tensão que se instalou. Minha garganta fez um nó, depois eu senti ânsia e uma das mulheres me olhou inconformada. O silencio se fez como parede e só ele falava.
Ele continuou ao telefone, gritando:
– Ela vai? Pede pra ela esperar! Fala pra essa vagabunda esperar! Como ela vai provar que eu invadi a casa? Com nóia? Que policia dá valor pra nóia? Não dá valor nenhum. Não tem como provar! Fala pra ela não ir a delegacia!!! Eu estou chegando!
Ele ficou mais alguns minutos ao telefone e eu já não lia nada. As mulheres estavam tensas como eu e, quando ele desligou, meu ponto chegaria nos segundos seguintes. Eu precisava dizer algo, meu estômago doía. E o silêncio permanecia como uma parede. Sentei com as pernas viradas para o corredor, na direção dele, e tudo que eu disse foi:
– Você não deveria se sentir confortável em xingar uma mulher de vagabunda e gritar que vai mata-la dentro de um coletivo. Percebeu quantas mulheres estão ao seu redor?
– Tem mulher que é um lixo e merece o inferno.
– Eu não quero saber! você não tem esse direito. Nem de se sentir confortável de “gritar” e nem de ser violento! Espero que não concretize isso!
– Eu posso e falo. Eu posso sim, isso aqui é uma democracia! DEMOCRACIA!
Levantei e fui caminhando para a porta.
(Democracia? Me perguntei. A Democracia também é do homem agora?)
– Isso não é democracia!
Foi tudo o que eu disse.
Democracia é uma mulher não ter medo de denunciar. Democracia seria um homem não se sentir no direito de invadir o espaço de outras pessoas assim, de agir como se tudo fosse dele e sem medo algum. Até o ônibus é dele!
E eu que senti medo, na manhã de uma terça-feira: ás 10h na linha 5178/10 – praça João Mendes/ Jardim Miriam. Todas ali sentiram revolta e medo! E o que eu disse foi tão menor diante do que senti. O que mais eu poderia fazer?
Romper o silencio é tão dolorido quanto vivê-lo.
O ônibus seguiu.
Eu segui com um sentimento de impotência, verdade, mas minimamente aliviada por ter dito algo. E sigo acreditando em nossa fala, mulheres, em dias menos violentos.