As Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação de Medicina e a Educação das Relações Étnico-Raciais

Antonio Gomes da Costa Neto

Mestre em Educação

iStockphoto

Este artigo tem por objetivo abordar as Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação em Medicina (DCN de Medicina), destacadamente quando preveem, perante o projeto pedagógico do curso (PPC), que deverá contemplar nos temas transversais a “Educação das Relações Étnico-Raciais e História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

Trata-se da Resolução nº 04/14, com o Parecer nº 116/14 da Câmara de Educação Superior do Ministério da Educação (MEC), que tem entre seus objetivos dispor sobre o currículo dos cursos de graduação destinados ao bacharelado em Medicina (Parecer CES/CNE nº 25/14), portanto para o futuro exercício profissional do médico.

Há de se destacar que as orientações do Conselho Nacional de Educação (CNE) de igual sorte trouxeram outros elementos agregadores ao currículo do curso, ou seja, diversas outras situações que deverão ser contempladas pelos novos profissionais da área da Saúde, porém como temas transversais.

A formação inicial dos futuros médicos, por força da Legislação Educacional, já tinha previsão do princípio da identidade étnico-racial, ratificada no Estatuto da Juventude (2013), obrigatoriamente, quando dispõe sobre a formação inicial e continuada dos profissionais da área de Saúde, bem como os operadores de Direito e Segurança Pública (COSTA NETO, 2013b).

Partimos, desta forma, a concluir que a Educação das Relações Étnico-Raciais tem por premissa a desconstrução (déconstruction) do racismo (racism) e das teses acadêmicas do racialismo (racialism); notadamente, trata-se de um princípio filosófico-jurídico e diretriz político-jurídica (COSTA NETO, 2014).

O princípio da Identidade Étnico-Racial

Inicialmente, há de se considerar população negra em relação à Educação, portanto, a partir das diversas formas de reconhecimento de sua identidade étnico-racial quando estabelecida através de política pública (policy public) e política (politics).

Como diretriz político-jurídica, entende-se como “população negra o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ou que adotam autodefinição análoga” (BRASIL, 2010); ou seja, as categorias são inferidas pelo critério censitário.

Do histórico da análise sobre as categorias cor ou raça pelo IBGE, em relação aos exercícios de 1900 e 1920 não foram coletadas, bem como não realizadas, operações com dados dos anos de 1910 e 1930 (HASENBALG, 2005; IBGE, 2011).

A partir de 1940, as categorias de classificação foram denominadas “cor” sem o critério raça; suas atribuições compreenderam: branco, preto e amarelo. Quando dos censos de 1950 e 1960, o “pardo” foi reincorporado, ressaltando o órgão estatístico que se constitui a “primeira referência explícita ao princípio da autodeclaração” (IBGE, 2011, p. 14).

Nos dados de 1970 foi retirada, em 1980 voltou a ser pesquisada; a partir de 1991 acrescida da categoria indígena; no ano 2000 a categoria “raça ou cor” e para o Censo 2000 de “cor ou raça”, o que permaneceu como categoria de análise de 2010 (IBGE, 2011).

Para compreensão da categoria, procedemos à localização das categorias identificadas na Pesquisa das Características Étnico-Raciais da População, de 2008 (IBGE, 2011, 2013), assim distribuídas:

  1. étnico-raciais;
  2. cor ou raça da sua mãe;
  3. sua cor ou raça;
  4. traços físicos (cabelo, boca, nariz, etc.);
  5. origem familiar, antepassados;
  6. cor da pele;
  7. comunidade ou etnia;
  8. africana;
  9. afrodescendente;
  10. negro;
  11. preto;
  12. pardo;
  13. cor ou raça do seu pai;
  14. cor ou raça.

Portanto, o Censo 2010 considerou a categoria “cor ou raça” quando declarada pelo próprio informante, conforme se pode observar das informações fornecidas pelo IBGE:

No manual, a instrução era que o recenseador lesse as opções de cor ou raça para a pessoa entrevistada e registrasse aquela que fosse declarada, tanto pela própria pessoa quanto por outro morador. Caso a declaração não correspondesse a uma das alternativas enunciadas no quesito, as opções eram lidas novamente para que a pessoa se classificasse na que julgasse mais adequada. Em nenhum momento, o recenseador deveria influenciar a resposta do entrevistado: branca (para a pessoa que se declarasse branca); preta (para a pessoa que se declarasse preta); amarela (para a pessoa que se declarasse de cor amarela, cuja origem seja oriental, japonesa, chinesa, coreana, entre outras) e indígena (para a pessoa que se declarasse indígena ou índia, sendo essa classificação aplicável tanto aos indígenas que viviam em terras indígenas como aos que viviam fora delas) (IBGE, 2012, p. 63).

Houve preocupação em definições de cor por autodeclaração; porém questões como racismo, discriminação, preconceito em suas análises foram realizadas tão somente por pesquisadores (NASCIMENTO; DAGOBERTO, 2013), mas não tratadas como centrais nas discussões das categorias estabelecidas pelo IBGE, cujo traço marcante é caracterizado pela descendência a partir do fenótipo.

Educação Étnico-Racial

A Educação Étnico-Racial está inserida na Constituição Federal, no Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/10), na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (nº 9.394/96) e no Estatuto da Juventude (Lei nº 12.852/13), além do PNDH-3 (Decreto nº 7.037/09), bem como nos tratados e normas internacionais das quais o Brasil é signatário.

Portanto, trata-se de princípio que deve ser observado por todas as instituições públicas ou privadas de ensino; não pode ser desconsiderado, quiçá descumprido; a desobediência a ele acarreta sanções; nesse contexto, significa que a Educação Étnico-Racial é tema central.

No que tange aos cursos de graduação da área de Saúde, nosso entendimento é de que a Educação Étnico-Racial deve ser obrigatória; valho-me, a título de ilustração, de sua interface com a Educação, ou seja, na área de controle dos diversos planos governamentais, como no caso dos programas de alimentação, assistência médico-odontológica, dentre diversos outros de forma suplementar.
Entre os princípios da Educação Étnico-Racial está a desconstrução do racismo, bem como o ensino da História e Cultura da África e dos Afro-Brasileiros; portanto, não deve apenas ser tratada como tema transversal: merece seu aprofundamento teórico nas ideias centrais do curso.

Significa que deve fazer parte do currículo do curso de forma explícita, inclusive para fins do conceito de avaliação (COSTA NETO, 2014); todavia, há de se considerar que, no período de transição, que vai de 2014 a 2018, deverá ser objeto de nova análise quando transcorrido o lapso temporal de ajustamento, especialmente se pela análise da variável “transversalidade” foi considerada de cunho obrigatório sua efetividade.

Considerando que no Brasil, atualmente, vivenciamos o ciclo ou fase do racismo estamental (COSTA NETO, 2013b, 2014), compete aos órgãos de regulação que atuam no efetivo cumprimento da norma, buscando meios de fazer acompanhar, monitorar e exigir o fiel cumprimento da Educação das Relações Étnico-Raciais.

Nesse ponto, há de considerar que, no período compreendido no último decênio, a implementação do Ensino da História e Cultura da África e dos Afro-brasileiros constitui norma de pouca ou baixa efetividade (COSTA NETO, 2013a), cujo controle governamental tem demonstrado ser incapaz de efetivá-la, portanto gerando risco para as DCN de Medicina.

Também há de se observar que o racismo (institucional, cultural e individual) continua presente e efetivo na sociedade brasileira, o que por certo trará barreiras que não podem consideradas justificativas para sua não implementação nos cursos de Medicina.

Nesse prisma, a questão racial não pode ser apenas um “tema transversal” (SILVA, p. 105); eis que deve nortear um currículo crítico que contemple as “causas institucionais, históricas e discursivas do racismo” (idem, p. 106); sendo assim, espera-se que o currículo contemple a identidade étnico-racial como central.

Considerações

Em uma análise preliminar das DCN de Medicina, a Educação Étnico-Racial será tratada apenas como tema transversal, o que pode representar sua não efetivação.

Os órgãos de formulação, monitoramento, controle e avaliação devem acompanhar e incluir nos conceitos de avaliação do curso essa condição, sob o risco de falta de implementação, face ao ciclo ou fase do racismo estamental.

A baixa efetividade dos órgãos de controle e a ausência de monitoramento comprometem a Educação das Relações Étnico-Raciais nos cursos de graduação de Medicina, contribuindo, em tese, para a manutenção do racismo institucional, cultural e individual.

As novas DCN de Medicina no período de transição “devem garantir a efetiva inclusão da Educação das Relações Étnico-Raciais e História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, como forma de garantir a eficácia escolar.

A Educação das Relações Étnico-Raciais nos cursos de Medicina deve ser tema trabalhado na centralidade dos currículos de cumprimento obrigatório, consequentemente garantindo a des construção do racismo.

Referências

BRASIL. Lei nº 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996.

BRASIL. Decreto nº 7.037/09, de 21 de dezembro de 2009.

BRASIL. Lei nº 12.288/10, de 20 de julho de 2010.

BRASIL. Lei nº 12.852/13, de 25 de agosto de 2013.

BRASIL. IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Características étnico-raciais da população: um estudo das categorias de classificação de cor ou raça. Rio de Janeiro: IBGE, 2011.

BRASIL. IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais.  Características étnico-raciais da população: classificações e identidades. Rio de Janeiro: IBGE, 2013.

BRASIL. IBGE. Censo demográfico 2010Características Gerais da População, Religião e Pessoas com Deficiência. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf.

BRASIL. MEC. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior.Resolução nº 03/14. Dispõe sobre as Diretrizes Curriculares dos Cursos Graduação em Medicina.

BRASIL. MEC. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Parecer nº 116/14. Dispõe sobre as Diretrizes Curriculares dos Cursos Graduação em Medicina.

BRASIL. MEC. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Parecer nº 25/14. Dispõe sobre a consulta sobre a conformidade da inscrição da denominação “bacharel em Medicina” em vez de “médico” em diplomas.

COSTA NETO, Antonio Gomes. A Educação das Relações Étnico-Raciais (2003-2013): racismo, transparência e efetividade. Educação Pública, 2013.

Disponível em: http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/educacao/0412.html. ______. O novo instrumento de avaliação institucional externa da Educação Superior e a Educação Étnico-Racial. Educação Pública, 2014. Disponível em: http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/direito/0010.html.

______. Os ativistas de direitos humanos e o racismo. Educação Pública, 2013. Disponível em: http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/cidadania/0159.html.

HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: Iuperj, 2005.

NASCIMENTO, Alessandra Santos; FONSECA, Dagoberto José.

Classificações e identidades: mudanças e continuidades nas definições de cor ou raça. In: BRASIL. IBGE. Coordenação de População e Indicadores Sociais.

Características étnico-raciais da população: classificações e identidades. Rio de Janeiro: IBGE, 2013.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Teorias dos currículos: uma introdução crítica. Porto: Porto, 2000.

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