Em 2015: demore-se. E esteja vivo – mas de verdade.

Ligia Moreiras Sena

Um dia a gente vai perceber que viver sem sentir não é viver. Que viver implica em sorrir, em brincar, em amar, em se divertir… Mas também em sofrer.

Que sofrer não é uma pausa na vida, um momento em que o trem descarrilha e te leva para onde você não tinha que ir porque, afinal, gente é pra brilhar e não pra sofrer. Desculpe dizer isso logo agora, no fim de um mês em que parece que todos estão felizes, radiantes, caridosos e empáticos, fazendo planos até mesmo para a conquista do mundo e o fim do embargo a Cuba no ano vindouro (ops…).

Mas sofrer é vida também. Faz parte dela. Faz parte de nós.

Ninguém está aqui para ser feliz somente. Essa cláusula não está no contrato, mas nem em letras miúdas. Quando nossos pais e mães nos disseram, lá atrás, quando chegamos, que seríamos felizes para sempre, estavam apenas demonstrando seu mais sincero e desmedido amor. Mas, olha amigo, não era verdade…

Ser feliz sempre e para sempre, relegando aos reles mortais – que não nós – todo possível sofrimento, enquanto somente os seres especiais – agora sim, nós – seríamos dignos de louros e alegrias constantes, infinitas, é uma ideia utópica que se ensina às crianças quando elas ainda são muito pequenas. E que é reforçada todos os dias. Até o dia em que for tarde demais para girar o botão do “você também vai passar por isso”, “dor é algo que se sente mesmo”. E for tarde demais para explicar que, sim, vamos sentir coisas um pouco diferentes da alegria. Um pouco mais próximas de um dia nublado e chuvoso. E não um constante céu azul e ensolarado…

Desde então, passamos a ser doutrinados a esconder a tristeza, a não vivê-la, a não falar sobre ela, a sublimá-la, porque só a felicidade nos interessa, só feliz é que vale a pena viver e vamos esquecer tudo o que diz respeito à dor.

E não chore mais.
E não sofra tanto.
E engula esse choro.
E sorria pra foto.
E toma aqui esse chocolate.

E vamos ignorar toda tristeza, todo o sofrer, todos os revezes, e toda nossa humanidade que chora, que sofre, que sente, que nos limita – sim, temos limites – que nos torna frágeis e vulneráveis.

E não vamos chorar na frente das crianças. E vamos esconder delas todo nosso sofrimento. E vamos falar de inúmeros ciscos, rinites, alergias, que nos irritam os olhos e os deixam vermelhos, com nariz pingando e voz embargada. E vamos nos trancar no banheiro. E chorar sozinhos.

Solitários. Em momentos de humanidade desamparada. Lá. Dentro das quatro paredes.

Escondidos. Para que “saia tudo de ruim de dentro de nós e possamos retomar a vida“. Aquela vida. Feliz. Radiante. Que acorda sempre vestida de branco, pronta para passar margarina no pão e sorrir para a câmera, ao lado de sua linda família e dentro da sua casa própria. Aí sim. Eis a vida que se quer. É isso aí. Você conseguiu. Parabéns.
Então a gente cresce.

Cresce e se depara com ela, a vida real. Cheia de prazeres. Cheia de dores.

Aos prazeres: toda a disposição do mundo. A receptividade. A aceitação. E vamos moldar nossas vidas para ser sua busca constante, porque eles é que valem a pena. Vamos nos jogar de penhascos. Vamos emendar noites. Vamos radicalizar à sua procura. Fazer dois doutorados. Casar cinco vezes. Trabalhar 50 horas semanais. Juntar cifras para comprá-los. Todos. Não ficará sequer um longe de nós. Não passará um mísero café com bolo numa tarde comum. Vamos fotografá-los. E mostrar como eles estão conosco. Eles. Os prazeres. São nossos, todos nossos. Somos merecedores. Vencemos. Uma espécie de meritocracia epicurista desvairada.

Às dores: escolha sua alternativa. Negação? Máscaras? Fugas? Quais fugas? Psicoativos ilegais? Ou os legalizados? Subir o morro atrás de pó? Encher a cara? Abandonar alguém? Um remédio pra dormir? Outro pra acordar? Sexo desvairado? Comprar sempre, comprar tudo? Maledicência, que te faz esquecer por alguns instantes da sua dolorosa vida para focar na dor alheia? O que vai ser? O cardápio é farto, acessível: um compêndio de fugas à sua disposição. Tudo para tornar a sua vida mais feliz. Mais longe das dores. Mais como se quer que ela seja.

Ou encará-las? Ou aceitá-las? Ou se tornar próximo delas? Ou vê-las como parte indelével desta incrível experiência chamada vida [que todos queremos, que todos prezamos, que todos desejamos que seja melhor]?

Hoje vim apenas para fazer um convite. Um convite para 2015. Um projeto de vida para 2015.
Que você acorde em um certo dia e não expulse a sua dor. Que não finja que ela não existe. Que não tente dissipá-la às custas de si mesmo com a ajuda de qualquer coisa. Que você acorde, olhe no olho dela, naquele olhar cínico e desafiador que ela insiste em te lançar e diga: “Oi”.

Não será simples. Não será fácil. Exigirá de você toda sua força interna – que você tem. Diga: “Oi. Vamos nos entender?”.

É preciso fazer isso.

Na verdade, é a única forma de colocar as coisas na devida perspectiva. Nós somos maiores que elas. Não se dope. Não se anestesie. Não se tire da jogada. Encare. Peça ajuda, ajuda humana. Ajuda que fale, que abrace, que te acolha, que te ampare. Fale. Fale que está doendo, que você precisa de ajuda, mostre onde dói. Se preciso for, use as ferramentas que o desenvolvimento da ciência tornou possível, use sim! Mas dê a elas seu devido status: são ferramentas! Devem ser usadas por você. Não você por elas.

Quando vamos aprender que sofrer faz parte, que é preciso acolher o sofrimento até que ele se amenize dentro de nós e possamos novamente sentir o vento da alegria bater no rosto? Quando vamos encarar os revezes e as tristezas – humanas, absolutamente humanas – como parte inerente da vida e não como tormento, ou mazela, ou algo a ser evitado constantemente, de segunda a segunda, 24 horas por dia?

Quando vamos ter aulas sobre acolhimento e transformação da dor nas escolas? Quando vamos aprender a lidar com elas, como parte de nós?

Todas as tentativas de esconder a dor fracassam.

Todas as ferramentas criadas para “diminuir o tempo da dor” ou “impedi-la de se manifestar” são passos para o desconhecimento de nós mesmos. É preciso acolhê-las. Entendê-las. Dar tempo para que venham, extravasem, se enfraqueçam e partam. Deixando-nos com a força de quem soube lidar com elas. Mas enquanto não conseguirmos fazer isso, enquanto não conseguirmos eliminar a ameaça e o medo da dor, é preciso acolher. Não a nossa própria somente. Mas também a do outro. Porque a dor de quem a gente ama é a nossa dor. Saber que alguém de quem se gosta verdadeiramente está sofrendo é sentir em si mesmo o sofrimento. Quem for incapaz disso, de sofrer a sua dor, de sofrer a dor do outro, não está tão vivo assim.

A vida passa enquanto estamos exercitando a pequenez. E – o que pode ser surpreendente – uma hora ela acaba. Assim. Puf. Sem avisar. Sem dizer que aquele foi o último abraço. A última foto. A última conversa. O fim dessa vida que conhecemos não dá aviso prévio.

O que se celebra no Natal deveria ser celebrado todos os dias. Da hora que se acorda à hora que se volta a dormir. Mas esquecemos disso…

Mas tudo bem, porque logo chega dezembro e a gente compra um monte de luzinhas e árvores e presentes pra celebrar… Celebrar o que mesmo?

Se você não souber o que é preciso celebrar, talvez seja importante começar de novo, e tirar as vendas dos olhos, e olhar o outro pela primeira vez. Vai se surpreender quando encontrar o outro e… encontrar a si mesmo dentro dele. E descobrir que somos todos as mesmas pessoas. Sendo felizes, e sofrendo, e vivendo, e experimentando todo tipo de humanidade. Às vezes, nos vemos tanto neles que fugimos. E fugir é um erro. Erros são humanos. Mas desculpar-se é mais.
A dor de quem a gente ama é a nossa dor. Deveria ser. Ou não tá valendo grandes coisas nossa viagem, e já daria pra descer no próximo ponto…

A ideia contida em todas essas linhas poderia ser transmitida em menos de 140 caracteres com a frase: “Ame o outro, ame a si mesmo. Ame. Errou? Todo mundo erra. Peça desculpas sinceras. Feriu? Cure. Cure com amor“. Mas acontece que eu não sou sintética. Não gosto de tornar breve o que não é. Aliás, sofro muito quando algo que não era para ser, torna-se breve. Desculpem por não escrever coisas importantes em duas linhas. Estou aprendendo a dedicar tempo ao que é realmente importante. E falar sobre amor é uma dessas coisas importantes. Sobre esse amor que dedicamos aos amigos, aos filhos, aos companheiros de vida.

Que em 2015 as coisas sejam longas.

Que deixemos as coisas breves e partamos para o longo e vasto amor. Aquele que nos torna reticentes, demorados… Nas nossas vidas e nas vidas dos outros.

Estou cansada desse mundo buscando brevidade. Ele não está nos levando para bons lugares…
Um dia a gente vai perceber que viver sem sentir – a própria dor, a dor do outro – não é viver.
O que eu quero em 2015? Quero que nos demoremos uns nos outros. Que estejamos vivos. Mas de verdade mesmo.

Ligia Moreiras Sena. É cientista. E mãe. Autora do blog Cientista Que Virou Mãe.

 

Fonte: Brasil Post

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