Enem e violência doméstica: o que as redações revelaram

A prova do Enem já foi aquele escândalo em 2015. Como o Ministério da Educação teve a ousadia de sugerir como tema de redação a “persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira?” No burburinho que se seguiu à prova, falou-se mais de gênero, da fantasia do fim das famílias, que mesmo da violência contra a mulher — o tema concreto da redação. O susto veio atrasado. O ministro Aloizio Mercadante anunciou o balanço das provas do Enem: seu espanto foi que 55 candidatas fizeram da redação um texto confessional sobre a violência vivida ou testemunhada. Não eram peças retóricas sobre a persistência da violência, mas relatos de sobreviventes da violência doméstica e familiar.

Tato Rocha / Acervo JC Imagem

Por Debora Diniz Do Justificando

O Ministério da Educação embaraçou-se. O que seriam aquelas redações: textos de provas, semelhantes às escritas pelos homens, ou pedidos de socorro? Aquelas mulheres apresentaram “relatos contundentes” — segundo palavras do ministro Mercadante, os relatos pareciam verdadeiros. A inquietação foi como lidar com o vivido e escondido, mas agora escancarado pelos avaliadores das provas. Os textos sofreram uma metamorfose: não eram apenas letras para notas, mas catarses de mulheres que não encontraram outra retórica senão a da própria carne para expressar a abstração de um tema. Não perguntei ao ministro Mercadante por que resolveu falar das 55 redações publicamente, por isso ensaio aqui explicação própria, partindo de uma de suas frases: “Só tem um jeito de proteger, é ela tomar a iniciativa”.

É verdade, as mulheres precisam ter iniciativa. Falar é uma delas. Mas ser ouvida importa muito. Antes disso de falar e ouvir, é preciso que existam instituições, e que elas funcionem. E peço perdão pela retórica extensa: antes de as instituições existirem e funcionarem, as mulheres precisam acreditar nelas. Ou seja, o ciclo que antecede a mulher falar sobre a violência é longo: é preciso que haja instituições funcionando; é preciso que as mulheres acreditem nelas; é preciso que as mulheres cheguem até elas para falar da violência sofrida. As 55 redações confessionais nos dão uma pista estranha sobre esse ciclo — as mulheres precisam falar sobre a violência, nem que seja em um prova de escola. A dúvida agora é: “o que iremos fazer com essas confissões e testemunhos?” Esperar que essas mulheres falem novamente. Só não sabemos para quem.

Debora Diniz é antropóloga, professora da Universidade de Brasília, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética e autora do livro “Cadeia: relatos sobre mulheres” (Civilização Brasileira). Este artigo é parte do falatório Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e conversas.

 

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