‘Enterrei dois filhos, ainda tenho esperança de enterrar meu caçula’

velho, Carlos, ela enterrou ainda bebê, morto em decorrência de uma infecção pulmonar aos seis meses de vida. O segundo, Wilson, foi atropelado aos 24 anos de idade.

Por Fernanda da Escóssia. do BBC

Mas, aos 65 anos, Teresa ainda sofre por não ter conseguido enterrar o caçula, Edson. O rapaz é uma das vítimas do episódio que o Rio de Janeiro conhece como chacina de Acari, quando 11 pessoas desapareceram em 26 de julho de 1990 depois de serem levadas de um sítio em Magé (interior fluminense) por homens que se identificaram como policiais.

Até hoje, 25 anos depois, Teresa não só não sabe ao certo o que aconteceu com o filho, como não tem nenhum documento atestando a morte dele – uma das reivindicações das famílias de Acari e de outras tantas que perderam parentes sem que os corpos jamais aparecessem.

O Brasil não tem um sistema unificado de localização de desaparecidos ou de identificação de corpos. A lei 12.648, instituída em 4 de julho de 2012, prevê a integração de todos os boletins de ocorrência dos Estados e a divulgação de dados de pessoas desaparecidas no portal Sinesp (Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas).

Segundo o Ministério da Justiça, o sistema de dados está em fase de integração. Alguns Estados, como Rio e Minas, estão apostando em delegacias especializadas. Mas, sem um sistema unificado, cada novo caso traz à tona o drama das famílias acostumadas a percorrer necrotérios, hospitais e manicômios em busca de informação.

“Sem corpo, sem crime – foi o que sempre ouvi. Até hoje espero que alguém venha e diga, olha, seu filho foi morto e jogado em tal lugar, aí a gente vai lá, pega o corpo e enterra. Eu enterrei dois filhos, tenho esperança de enterrar meu caçula também”, lamenta a mãe, que ainda espera obter informação sobre o que aconteceu com Edson.

No Rio, muitos desaparecimentos são associados à violência policial. É o caso dos 11 de Acari, do funcionário da Fiocruz Jorge Careli, levado por policiais numa blitz em Manguinhos (zona norte), em agosto de 1993, e do pedreiro Amarildo de Souza, torturado e morto na UPP da Rocinha em 2013. O corpo dele jamais apareceu, e 25 policiais foram denunciados no caso.

Em setembro de 2014 foi criada no Rio a Delegacia de Descoberta de Paradeiros (DDPA). Até então desaparecimentos eram investigados pela Delegacia de Homicídios. A titular da DDPA, delegada Elen Souto, diz que, só na cidade do Rio de Janeiro, a média é de 250 desaparecimentos por mês, 3 mil por ano, portanto.

Segundo ela, 160 casos foram solucionados. Há desde casos de crianças desaparecidas até idosos com Alzheimer que não acertam o caminho de casa. Quando há suspeita de crime, seja do tráfico ou da polícia, o caso tem de ser investigado como homicídio com ocultação de cadáver, como aconteceu com o caso do pedreiro Amarildo, de cuja investigação a delegada Elen Souto participou.

Sistema nacional

A falta de um sistema nacional de identificação dificulta o trabalho de investigação, porque não há um cadastro único de desaparecidos e cada Estado tem um padrão de registro e atuação. Identificar corpos é ainda mais complicado, porque não há um banco de dados unificado de impressões digitais. Cada Estado tem o seu. Com isso, para saber se um corpo que apareceu no Rio é de alguém que desapareceu em outro Estado, é preciso consultar as outras 26 unidades da federação.

O desaparecimento de pessoas traz, além da dor da perda, a dor da dúvida sobre o destino do desaparecido. E uma sucessão de dificuldades burocráticas. Sem corpo, não há certidão de óbito, chave de acesso a trâmites legais – como solicitar pensão, resolver disputas de herança e de guarda de filhos.

A juíza Raquel Chrispino, titular da 1ª Vara de Família de São João de Meriti e especialista na questão da documentação, diz que o sofrimento das famílias é maior porque não existe no Brasil um sistema estruturado de buscas aos desaparecidos e de identificação de corpos – o que causa situações como a de um corpo acabar sendo enterrado como indigente mesmo tendo uma família que o reclame.

Chrispino integra o Comitê Gestor Estadual para Erradicação do Subregistro e Acesso à Documentação Básica do Estado do Rio, que tem um grupo só para cuidar da questão da documentação de mortos e desparecidos. Explica que, em casos como a queda de um avião, é mais fácil conseguir um atestado da chamada morte presumida, a partir das provas de que pessoa estava naquele avião e de que os corpos nunca foram achados.

A lei prevê ainda a declaração de ausência, em que, depois de determinado tempo, variando com as circunstâncias, é emitido um atestado informando que a pessoa desapareceu e que dela não se tem notícia.

No caso de Acari, em que a maioria das vítimas era solteira e sem filhos, a certidão de morte presumida teria outra função: embasar uma ação responsabilizando o Estado pelas mortes. Os principais suspeitos pelos desaparecimentos eram integrantes de um grupo de extermínio conhecido como “Cavalos Corredores”, que atuava no Rio nos anos 90. Mas o inquérito de Acari foi arquivado em 2010 sem que ninguém fosse sequer indiciado.

O Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), ONG que acompanha o caso, começou a buscar as certidões em 2009 e conseguiu os documentos referentes a cinco vítimas. Como causa da morte, informa-se: chacina de Acari.

De posse dessas cinco certidões, a advogada Gabriela Azevedo, do DDH, entrou na Justiça com uma ação cível pedindo que o Estado seja responsabilizado pelas mortes e cobrando indenização para as famílias. Um decreto de 2001 do governo do Rio garantiu às famílias das vítimas das chacinas de Acari, Vigário Geral (21 mortos) e Candelária (8 mortos) indenização de R$ 10 mil para compra de uma casa. Algumas famílias receberam o dinheiro, outras não.

“Acari é o exemplo mais claro da falência do sistema criminal brasileiro”, diz o advogado Alexandre Ciconello, assessor da Anistia Internacional.

Cinco famílias de Acari ainda estão à espera da decisão judicial sobre a certidão de morte presumida para que a ação cível possa prosseguir. E a família da vítima Cristiane Leite recebeu apenas uma declaração de ausência emitida pela Justiça.

“Ausência? Então a Justiça acha que minha irmã vai aparecer em casa qualquer dia? A gente não se conforma com isso”, queixa-se a irmã de Christiane, Aline Leite.

Mãe de Fábio Eduardo dos Santos Souza, desaparecido em 2003 na Baixada Fluminense, Izildete Santos da Silva, 54, também não tem documentos atestando o destino do filho. O rapaz estava numa festa junina e teria sido levado por policiais. Mas até hoje ninguém sabe o que houve, e a mãe rejeita a ideia de tentar pelo menos uma declaração de ausência. “Quero é saber o que aconteceu com ele”, afirma.

Mães ativistas

Algumas mães de Acari, entre elas Vera Lúcia Flores Leite, mãe de Cristiane, se transformaram em ativistas de direitos humanos no Rio. Foram vítimas ocultas da mesma chacina de Acari, de tal modo a vida delas se transformou depois que perderam os filhos. Marilene de Souza, mãe da vítima Rosana, morreu em 2012, com um tumor na cabeça. Vera Lúcia, mãe de Cristiane, morreu em 2008, de diabetes. Edmea da Silva Euzébio, mãe de Luiz Carlos, sofreu uma emboscada e foi assassinada a tiros em janeiro de 1993, no estacionamento do metrô da Praça Onze.

A investigação da morte de Edmea havia sido arquivada e foi reaberta em 2011, após o depoimento de uma nova testemunha. Em 2014, o juiz Fábio Uchoa, da 1ª Vara Criminal do Rio, decidiu levar o caso a júri popular. De acordo com a denúncia do Ministério Público, são acusadas pelo crime oito pessoas, a maioria PMs ou ex-PMs, que integravam o grupo de extermínio dos “Cavalos Corredores”. Mas os réus entraram com recurso contra a decisão do juiz Uchôa de leva-los a júri popular, e os recursos serão encaminhados à 6ª Câmara Criminal do TJ do Rio para julgamento. Não há previsão de data para que o julgamento ocorra.

Mães de outros jovens desaparecidos no Rio também buscam na mobilização social um pouco de conforto diante da ausência dos filhos. Jovita Belfort, mãe da funcionária pública Priscila Belfort, desaparecida no Rio há 11 anos, diz que é uma forma de tentar se manter ativo em busca de informações da filha.

“Quando eu comecei essa luta, me perguntaram, você já enfartou? Até estranhei. Mas há quatro anos tive o meu infarto. Porque perder um filho sem saber o que aconteceu com ele é como ter uma faca enterrada no peito, e todo dia a faca entra e maltrata você um pouco mais. O coração não aguenta”, resume.

Banco de dados em fase de integração

A Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp/MJ) informou que está integrando os boletins de ocorrência de casos de desaparecimento registrados nas Polícias Civis dos Estados por meio da Rede Infoseg (Rede de Integração Nacional de Informações de Segurança Pública, Justiça e Fiscalização) e do Sinesp (Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas).

A ideia é que, com o tempo, todos os Estados do Brasil alimentem a rede de dados com informações precisas. Só quando isso for concluído o Brasil terá um levantamento mais atualizado da quantidade de dados de desaparecidos no país, assim como de casos solucionados.

Por enquanto, de acordo com o Ministério da Justiça, três Estados alimentam o Aplicativo Sinesp Cidadão – Módulo Desaparecidos, que pode ser baixado no smartphone. Hoje, Sergipe, Santa Catarina e Espírito Santo cadastraram 5,9 mil pessoas desaparecidas, com cerca de 250 delas localizadas.

Outros, como o Rio de Janeiro, estão em processo de integração. A lei 12.648, instituída em 4 de julho de 2012, prevê a integração de todos os boletins de ocorrência dos Estados e a divulgação de dados de pessoas desaparecidas no portal Sinesp.

Para as famílias de desaparecidos, a delegada Elen Souto dá algumas orientações. A primeira é registrar o caso imediatamente, pois, diferentemente do que ainda se diz, não se exige prazo de 24 horas ou 48 horas para que se inicie a investigação. “Ao contrário, quanto antes, melhor”, afirma a delegada.

Outra orientação é não colocar telefones da família nos cartazes de busca, para evitar extorsões e fraudes. Segundo ela, o melhor é procurar uma delegacia. No Rio, a DDPA produz cartazes com a foto do desaparecido e o telefone da delegacia.

E, por fim, é preciso entrar o quanto antes da Justiça com uma ação pedindo a declaração de ausência da pessoa desaparecida. Com isso a família pode agilizar trâmites legais, como pensão e autorizações de viagem. Por lei, a declaração de ausência pode ser emitida até um ano depois do desaparecimento, e a de morte presumida, até cinco anos depois, mas esse tempo varia muito de caso para caso, como mostram as mães de Acari./

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