Entre sua comunidade e o ativismo internacional, Davi Kopenawa, xamã e militante, é uma das mais importantes lideranças indígenas do país

São 9 horas da manhã e São Paulo já vive seu caos voraz. A terra remexe com a passagem dos trens do metrô, multidões de pernas e braços se atropelam, olhos vibram cheios de cores e velocidade. Nos cruzamentos, nas filas de carros, em semáforos acéfalos e na eletricidade líquida a cidade desabrocha em seu ímpeto de movimento.

Por Paulo Henrique Pompermaier Do Revista Cult

Entre imensos prédios, por trás de uma dessas portas fugazes, no Hotel Atlântica, na Bela Vista, encontra-se Davi Kopenawa, liderança indígena yanomami. Sua presença é ambígua naquele lugar, resiste ao fluxo da cidade com o porte profundo da floresta. No primeiro cumprimento, sentem-se suas mãos robustas, ásperas e atentas. Mataram sozinhas uma anta, ainda na adolescência. Uma caça muito valorizada por seu povo.

Quando ele pronuncia algumas palavras, percebe-se uma voz atravessada por gerações. São palavras que vieram de Omama, demiurgo da cosmogonia yanomami. De um tempo em que “nossos maiores amavam suas próprias palavras”, como explica. São transmitidas oralmente através dos séculos, ao se tomar yãkoana. Essa substância ritualística consiste em um pó feito com cascas de árvore secas e pulverizadas. Ao ser inalado, inicia o indígena no conhecimento xamânico de seu povo.

“Nossa aula magna é tomar yãkoana durante o dia, para se preparar. Assim que estudamos para buscar mais sabedoria, a sabedoria da árvore, que percorre a floresta, a montanha, o rio”. Quando foi iniciado para ser xamã, aos 27 anos, Davi Kopenawa vivia duas decisões fundamentais e entrecruzadas de sua trajetória.

Aceitar a voz de seus ancestrais, ver os espíritos da floresta, xapiri, dançarem diante de seus olhos com as cores vibrantes e brilhosas do conhecimento da mata. E reafirmar sua possibilidade humana, sua identidade, diante da vontade predatória dos brancos.

O costume ameríndio, afinal, está mais ligado ao futuro da humanidade do que ao seu passado, como refletia o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz em 1993: “A extinção de cada sociedade marginal e de cada diferença étnica e cultural significa a extinção de uma possibilidade de sobrevivência da espécie inteira. Com cada sociedade que desaparece, destruída ou devorada pela civilização industrial, desaparece uma possibilidade do homem – não só de um passado e um presente, mas um futuro”.

Kopena é o nome do espírito da floresta das vespas. Em sua primeira ingestão de yãkoana, foram as imagens desses animais que se apresentaram para ele. Era o apelido que a floresta lhe dava para proteger suas árvores e rios. Kopena: como as vespas, Davi vai proteger sua casa, dar uma ferroada naqueles que cutucarem sua colmeia. É seu apelido feroz, como de um guerreiro primordial.

Já seu primeiro nome foi-lhe imposto na infância por pastores de uma organização evangélica norte-americana, a New Tribes Mission. Com o objetivo de converter populações tradicionais ao cristianismo, seus membros constroem missões próximas às habitações indígenas. Foi o que ocorreu, no início de 1960, quando um grupo da NTM se instalou na aldeia de Marakana, onde Davi nasceu.

Passaram, então, a nomear seus habitantes conforme o padrão judaico-cristão. No entanto, tradicionalmente, os yanomami consideram falta de respeito usar seus nomes-apelidos entre si, como ele explica: “A gente só usa o nome de alguém longe dela e de sua família, senão eles ficam bravos. É nosso nome sagrado. Quando a Funai e as missões entraram na nossa terra, os brancos colocaram todos esses nomes que vocês têm, pois não entendem os apelidos tradicionais”. Yanomami, seu último nome, foi escolhido após se tornar xamã, como forma de representar sua etnia, “é nome de pajé, que me liga ao meu povo”.

Davi Kopenawa Yanomami. Com sua presença trazia ali a contemporaneidade de tempos remotos, a voz profunda de gerações perenes diante da frenética e movediça São Paulo às 9h da manhã. Sua fala entoa canções há muito esquecidas, e seus gestos cosmogônicos não podem ser separados de sua política yanomami.

Desde que a construção da estrada Perimetral Norte, em 1973, “rasgou a pele da terra”, Davi sentiu vontade de lutar pelos direitos dos povos originários. A rodovia, logo abandonada em 1977, cortou o sul de Rondônia, invadindo territórios dos yanomamis que moravam ao longo dos rios Ajarani, Catrimani, Mapulaú e Aracá, o que o impeliu a levar suas palavras ao mundo dos brancos.

No pacto que firmou com o etnólogo francês Bruce Albert, projetou sua voz mundialmente com a publicação de A queda do céu (Companhia das Letras, 2015). Ecoou seu testemunho, ambiguamente ancestral e contemporâneo, nos ouvidos moucos do “povo da mercadoria”. Para, assim, revelar a iminente queda do céu, quando não restarem mais índios para mantê-lo acima de nós. E em seu mito cosmogônico está o poder de sua luta política: “Queda do céu é político, é política do povo yanomami que sabe o que aconteceu. Que caiu o céu, acima do povo, e matou todos. E os pajés lutam para manter o céu acima de nós, porque índio conhece a alma da terra, a alma da floresta. Branco só conhece o espírito destruído: pedras preciosas, óleo, petróleo, dinheiro, agrotóxicos”.

Albert, que convive com os yanomamis desde 1975, acredita que “Davi é um grande pensador da Amazônia indígena, e também um líder indígena renomado por sua integridade, coragem e visão. Além de xamã experiente, é um líder político determinado”. Crê que foi um privilégio, nas cem horas de entrevista que fizeram, “ouvir a história de sua vida, de sua luta e de suas viagens xamânicas”.

O livro foi adaptado pela diretora e coreógrafa Lia Rodrigues e se transformou no espetáculo Para que o céu não caia, apresentado em março último na 4ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) cujos organizadores o convidaram a participar dos diálogos transversais que a mostra se propõe a lançar entre o teatro e outros campos do conhecimento. Eis o motivo de Davi ter cumprido sua décima estadia em São Paulo. Ele falou sobre a queda do céu para espectadores desejosos da sabedoria indígena. “Falar como índio yanomami”, na sua definição.

Sobre a adaptação, Davi afirma: “O teatro pode representar imagens da floresta, que eles aprenderam, para mostrar às pessoas que não conhecem árvores, floresta, montanha. Essa pessoa que já sonhou, já viu, e divulga através do teatro”.

Entre seus encontros com representantes oficiais e as palestras e conferências que ministra, Davi Kopenawa já percorreu diversos países como Inglaterra, França e Estados Unidos. No Brasil, já esteve várias vezes no Congresso Nacional, confiando suas palavras aos presidentes José Sarney, Collor, Lula. Em 1992, devido a essa militância, conseguiu que as terras yanomamis demarcadas fossem oficializadas, então por Fernando Collor de Mello.

Recebeu, em decorrência da sua luta para preservar a mata e os povos originários, o prêmio ambiental Global 500 das Nações Unidas, que, no Brasil, apenas Chico Mendes já havia recebido. Em 2005, novamente, conseguiu um marco importante na luta indígena: a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, habitada por ingaricós, macuxis e taurepangues.

Nos últimos governos, no entanto, Davi não sente que houve avanços na luta indígena. “Eu conheço a Dilma, apesar dela não ter trabalhado muito pelo nosso povo, conheço a alma dela, a imagem dela”. “Agora”, complementa, “esse atual presidente nunca vi, ele nunca falou com meu povo, não se interessa por nossas palavras. Me parece sem raiz, colocado ali apenas por grupos de amigos”.

A destruição provocada pela Perimetral Norte foi apenas um dos fatores que o levaram a questionar o modo de vida dos não indígenas. Davi cresceu vendo seus pares morrendo pelas pestes dos brancos, xawara. Missões evangélicas, incursões da Funai, expedições da Comissão Brasileira Demarcadora de Limites. Em diversas ocasiões, epidemias de sarampo, malária e gripe se espalharam pela floresta e dizimaram populações ameríndias inteiras.

A mãe e o tio de Davi, seus parentes mais próximos, morreram em um desses surtos quando ele ainda era adolescente. Nessa ocasião, moravam em Toototopi, onde se instalaram depois de passar pelas aldeias Wari Mahi e Marakana, esta última seu local de origem. Em luto, foi para longe de seu vilarejo, em uma peregrinação iniciática típica dos adolescentes yanomamis. Travou conhecimento com alguns grupos de brancos e, então, foi chamado para trabalhar na Fundação Nacional do Índio.

Nesse período, passou por diversos postos indianistas, viveu em Manaus e percorreu as veredas amazônicas em suas missões como tradutor e em frentes de pacificação. Uma pulseira que usa no braço esquerdo, composta de uma faixa larga de miçangas pretas, foi presente de um grupo taurepangue com o qual cruzou em uma dessas andanças pela fronteira da Venezuela.

Enquanto trabalhou para o órgão indigenista, Davi sentia-se muito atraído pelo costume dos brancos, napë. Entendeu melhor sua língua de fantasmas, o português. Passava mais tempo nos postos, e fez até um curso para saber aplicar medicamentos. No entanto, quando soube da construção da estrada, das destruições causadas pelos garimpeiros em busca de ouro, voltou para sua tribo. No caminho, encontrou um grupo yanomami que ia se estabelecer na aldeia Watoriki, no pé da Serra do Demini, após suas terras terem sido devastadas pelas epidemias. Acompanhou–os e ali conheceu aqueles que viriam a se tornar, respectivamente, sua esposa e seu sogro. Foi este quem o iniciou no xamanismo, o “caminho do morrer e se tornar outro”.

Enquanto relembra sua história, as mãos de Davi estão sempre em movimento. Tamborilando os dedos na mesa ou gesticulando no ar, elas acompanham suas falas. Ao contar sobre a criação, em 2004, da Hutukara Associação Yanomami, faz um grande círculo com os braços para falar sobre o nome da organização da qual é presidente: “Nós não queremos só proteger meu povo, precisamos proteger a Terra, terra é prioridade para todos nós, não é só sobre yanomamis ou sobre brancos, é sobre todos. Precisamos lutar juntos para manter viva a nossa hutukara, nossa Terra, nosso mundo, para não a destruir, para mantê-la firme. Eu sou liderança e estou lutando, mas não sou pedra, nosso corpo é fraco, diferente de hutukara, que não tem fim”.

O filho mais velho, entre os cinco que tem, é quem o acompanha na militância. “Eu já o estou preparando para seguir meu caminho. Não é pra seguir caminho do governo, porque eles querem acabar com a nossa língua. É caminho de luta do povo dele, trabalhar, lutar, representar na cidade. Ele nem foi iniciado no xamanismo para ficar estudando meio ambiente e as políticas dos brancos.”

Logo suas mãos têm outro pretexto para a movimentação. O celular, pousado em um canto da mesa de seu quarto de hotel, começa a tocar. No diálogo em yanomami que vem a seguir, ouve-se a voz de um Brasil profundo. Ecoam na cabeça aqueles versos de Mário de Andrade: “Como será a escureza/ Desse mato-virgem do Acre?/ Como serão os aromas/ A macieza ou a aspereza/ Desse chão que é também meu?”.

Suas palavras yanomamis, no entanto, eram cortadas por intempestivas marcações temporais em português, como datas, meses e horários. Na linguagem ameríndia, há outra concepção temporal. Precisam recorrer à língua dos brancos para poder cortar o tempo em fatias. Seus 61 anos de idade, por exemplo, são estimados, não fazem parte do imaginário yanomami. Davi estava sendo chamado para uma reunião. “Sou filho único que enfrenta homem grande, mas tem muita gente que me dá uma flecha para poder continuar lutando na cidade”, comenta.

Davi iria passar aquela tarde em reuniões e encontros. Depois, logo ao anoitecer, se recolher para o próximo dia, pois é o costume da mata. “Escureceu é todo mundo na rede. De noite descansa, porque é floresta, não pode andar. Os yanomamis dormem cedo, mas antes do amanhecer estamos acordados, ouvindo os pássaros cantando, vendo nossa floresta clareando”.

Apesar da felicidade de poder falar na cidade sobre os problemas de seu povo, sua alma só fica tranquila quando volta para junto dos seus e conversa sobre a viagem. “Eu posso imitar como um branco mora nessas casas de pedras estranhas, comer também o que branco come. Estou há 43 anos na luta, então me acostumei a usar essas coisas. Mas é apenas para dormir e ir embora para meu povo”. O índio, então, deixa a cidade grande. Não sem antes sedimentar suas palavras. Espera que, no seio da sociedade branca, possam um dia fazer desabrochar a potência do tornar-se índio.

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