Epsy Campbell Barr

Epsy Campbell Barr é ativista feminista e antiracista e ex-deputada. Economista e uma das fundadoras do Partido Ação Cidadã da Costa Rica. Ela anunciou a intenção de se candidatar à presidência de seu país nas próximas eleições que ocorrerão em 2010, sendo a primeira mulher negra a almejar este posto na Costa Rica.

Entrevista com Epsy Campbell

Entrevista concedida ao Jornal Irohin

“Este é o momento para que nós, homens e mulheres negras, nos percebamos como estadistas” – afirma Epsy Campbell

Epsy Campbell se autodefine como uma feminista negra latino-americana. Com formação em Economia, aos 42 anos de idade, preside o Partido Ação Cidadã (PAC), tendo sido eleita, em 2002, a quinta deputada negra da Assembléia Nacional da Costa Rica. Em 2006, ficou a um ponto percentual de se tornar vice-presidenta de seu país e derrotar candidatos tradicionais da direita local. Dirigiu até 2005 o Centro de Mulheres Afro-Costarricenses, organização que ajudou a construir na década de 1980. Em sua atuação internacional de combate ao racismo e ao sexismo, é fundadora do Parlamento Negro das Américas e presidiu a Rede de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas.

Por ocasião da II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, o Ìrohìn conversou  com Epsy Campbell. Nesta entrevista, ela fala sobre sua trajetória política nacional e internacional, os desafios e avanços do ativismo negro na América Latina e no Caribe, bem como da agenda política das mulheres negras no contexto regional. Para novembro próximo, Campbell anuncia a realização de uma conferência entre cem líderes negras latino-americanas e caribenhas e agências das Nações Unidas a fim de que seja instituída uma campanha contra a violência racial.

 

Ìrohìn – Como você caracteriza sua intervenção política na luta contra o racismo e o sexismo?

Epsy Campbell – Mais do que uma feminista, eu me considero, sobretudo, uma feminista negra latino-americana. Trata-se de uma perspectiva que reconhece que o racismo e o sexismo são as bases estruturantes da exclusão e que não podem ser combatidos separadamente. Em muitos casos, o feminismo considera somente a estrutura tradicional do sexismo e desvaloriza a importância do racismo, da homofobia, da lesbofobia e outras formas de discriminação contra as mulheres.

 

Ìrohìn – Fale sobre sua trajetória na luta das mulheres negras latino-americanas e caribenhas.

Epsy Campbell – Sou fundadora de um grupo de mulheres afro-costarricenses chamado Centro de Mulheres Afro-Costarricenses. Desde o fim da década de 1980, esse grupo tem se empenhado para colocar na agenda nacional o tema do racismo e da discriminação racial. A Costa Rica tem condições particulares, porque, embora seja uma sociedade racista como tantas outras, a exclusão econômica dos afro-descendentes não tem sido muito caracterizada.

Tendo como base o cidadão médio costarricense, a população negra tem tido relativo acesso aos serviços de educação, saúde, entre outros. De todo modo, embora existisse uma classe média negra muito importante – tal como a classe média costarricense não negra –, as manifestações de racismo eram freqüentes, em especial relacionadas ao acesso ao trabalho em empresas privadas. Além disso, estavam também ligadas aos estereótipos, à cultura, às relações cotidianas, expressas por meio de menosprezo, piadas e até mesmo pelo impedimento de pessoas negras entrarem em determinados lugares públicos, mesmo que não de maneira explícita, oficial. Então, passamos a reivindicar e a debater sobre o que significava ser parte de uma cultura minoritária e, como mulheres, queríamos levantar uma própria agenda.

A partir daí, estabelecemos vínculos em nível internacional com um grupo de mulheres que estava promovendo para aquele momento o I Encontro de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe. Isso se realizou em 1992, na República Dominicana. Com base nesse vínculo internacional, por um lado, pudemos fortalecer nosso discurso interno na Costa Rica; e, por outro, contribuímos para a articulação de um discurso internacional com base nas conferências internacionais das Nações Unidas, a fim de impactar sobre algumas instituições multilaterais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial, de modo que pudessem incorporar o tema da população afro-descendente em suas agendas, o que era bastante invisível em 1992. Desde então, meu trabalho internacional tem sido permanente, tratando de construir um equilíbrio entre a atuação nacional e a internacional. Na Costa Rica, temos promovido campanhas publicitárias, indo a lugares públicos, fazendo discussões sobre o marco constitucional, para que a diversidade étnico-racial seja reconhecida. Enfim, temos colocado em discussão assuntos que eram tabus. Minha história vem de um ativismo de sempre, posto que sou parte de um grupo pequeno de afro-costarricenses na capital da Costa Rica, mas que se conecta a toda a trajetória de resistências dos povos negros na América-Latina e no Caribe. Havia, portanto, uma necessidade permanente de encontrar um lugar na sociedade, que fosse um espaço de onde pudéssemos fazer transformações. Assim foi que, particularmente, construí minha cidadania costarricense. A partir da própria identidade nacional, pude ser reconhecida como referência não apenas pelos afro-costarricenses, mas dos costarricenses como um todo, sem deixar fora do debate temas polêmicos a partir de um processo organizativo de mulheres afro-descendentes.

Ìrohìn
 – Qual é a situação da população negra da Costa Rica atualmente?
Epsy Campbell – Dados oficiais dizem que somos 2% da população de Costa Rica, mas isso é mentira. Não se pode dar credibilidade a isso porque, segundo essas fontes, 2% seriam afro-descendentes, 2% indígenas, 1% de descendente de orientais, e 95% se definem como “outro”. Na Costa Rica não há campanhas de sensibilização para o preenchimento responsável do item raça/cor presente no Censo. Na maioria dos casos, essa questão foi respondida pelos próprios agentes censitários, com a justificativa de que lhes dava vergonha perguntar aos entrevistados acerca do grupo racial a que pertenciam. Por isso, esses dados não servem. Há um estudo que indica que a presença de afro-descendentes seria da ordem de 10%. Todavia, tenho dúvidas sobre isso também, posto que essa informação foi construída a partir de uma pergunta do Censo dos anos 1940. Antes disso, a população negra somava entre 25% e 30% do total. É impossível acreditar que tenha de fato diminuído tanto. Para além dos números, creio que, na realidade, o racismo funciona na sociedade costarricense como em qualquer sociedade, quando não se trata de assuntos econômicos. Funciona com base na ignorância entre a população comum, mas não entre os espaços e as estruturas de poder.

Ìrohìn

– Que avaliação você faz sobre a participação das mulheres negras nos espaços políticos de poder no atual contexto da América Latina e do Caribe?

Epsy Campbell – É uma vergonha! Tendo em vista que somos pelo menos 75 milhões de mulheres negras na América Latina e no Caribe, nossa participação política no poder é ainda ridícula, inaceitável, digna de países onde não há democracia. Hoje, na região, de um total de 650 deputadas, temos apenas nove negras. No que diz respeito aos postos no Poder Executivo, nos governos centrais, a quantidade de mulheres negras em cargos ministeriais não supera o número de seis. Isso significa que, embora se tenha conseguido permear o discurso e haja até um reconhecimento explícito por parte dos governos acerca das questões que envolvem os 150 milhões de afro-descendentes, as estruturas de poder formal se mantêm intactas quanto à exclusão das mulheres negras, bem como dos homens negros. A quantidade de deputados negros que há na América Latina e no Caribe não supera cinqüenta. Cinqüenta deputados afro-descendentes é um número simplesmente ridículo, ainda mais tendo em vista países como o Brasil, com 46% de negros; a Colômbia, com 26%, o Peru e o Equador, que têm mais de 10%. Isso é, de fato, inaceitável. Se na história recente o sexismo nos espaços de poder tem sido minimamente suavizado, porque afinal de contas temos mais mulheres, isso não se aplica à realidade das mulheres negras. Em meu país, por exemplo, as mulheres representam quase 40% da Assembléia Legislativa, porém, efetivamente, a estrutura racial é muito mais forte. A estrutura racial permanece quase igual à dos anos 1970. Nesse sentido, não podemos dizer que haja avanços efetivos. Temos, então, delineado o desafio de construção de novas democracias, democracias reais na América Latina e o Caribe. Isso só poderá se dar com mudanças nas atuais regras de jogo.

Ìrohìn
 – Nesse sentido, que ensinamentos sua experiência como parlamentar lhe trouxe?
Epsy Campbell Barr
Epsy Campbell Barr


Epsy Campbell – Primeiramente, é preciso dizer que as verdadeiras transformações têm de ocorrer no âmago das estruturas de poder. Eu sou uma ativista social, mas entendo que, para mudar as regras, temos de estar dentro dos processos de construção dessas, de modo que seja possível estabelecer algo novo. Particularmente, venho de um partido político que tem a vantagem de ser um partido novo, que muito recorreu às demandas dos setores sociais e das lutas pelos direitos humanos do século XX. Dessa sorte, sem muita luta interna, saí como candidata a deputada e venci as eleições em 2002. A partir daí, utilizei esse espaço para duas coisas. Primeiro, para repensar as condições dos mais excluídos em meu país, que não são apenas os afro-descendentes. Assim, tratei de desenvolver uma visão de Estado, ou seja, tive de governar não apenas a partir e dentro de um gueto negro, mas de lidar com a sociedade como um todo e tratar de incidir sobre a distribuição dos recursos do Estado, para garantir aos desprovidos o acesso e aos superprotegidos a obrigatoriedade de repasse do que tem de ser distribuído. Segundo, utilizei o mandato para levantar o tema da população negra na América Latina e no Caribe. Por isso, juntamente com outros deputados e deputadas da região, criamos o Parlamento Negro das Américas, como um espaço político onde são colocados os temas da perspectiva de que somos representantes legítimos de nossos países e de onde entendemos que nosso diálogo é dentro dessas estruturas nacionais de poder. É fundamental que mais mulheres negras entrem nos espaços políticos, porém, não apenas como uma carreira pessoal. Isso é o pior que podemos fazer. Tem de ser uma carreira coletiva. Temos de romper com os esquemas tradicionais de poder individualista e representar efetivamente os interesses de quem nos delegou para essa finalidade. Nossa responsabilidade histórica é talvez maior que a do resto, gostemos disso ou não. Essa responsabilidade tem de estar submetida a um desejo coletivo, e na contramão dos vícios que estimulam o destaque individual e deixam nossas gentes pelo caminho. Creio que se trata de entrar nos partidos políticos com o objetivo de sermos verdadeiras representantes de nossa gente, por um lado, e das outras gentes, por outro. Efetivamente, a grande transformação que faremos na política é combater a mesquinharia característica da prática tradicional, que faz com que os políticos representem tão-somente os interesses de seu grêmio, quando não apenas de sua família. Temos de entender que o poder que nós, mulheres negras, temos quando acessamos esses espaços de representação não é um poder próprio. Os recursos que utilizamos em postos de poder são de todas as pessoas que estamos representando. Há de se promover uma mudança na lógica de representação, na lógica de fazer política, de pensar as políticas públicas e estabelecer alianças. Se conseguirmos isso, fazemos uma transformação, pois  não se alcançam mudanças se pedindo a outros que a façam por nós.

Ìrohìn – O que dizer, então, da capacidade de intervenção dos movimentos sociais negros e das alianças desses com os demais organismos da sociedade civil na construção dessas novas democracias na América Latino e no Caribe?

Epsy Campbell – Contraditoriamente, os movimentos sociais – e, no contexto desta Conferência, o movimento de mulheres – têm sido receptivos ao discurso de combate ao racismo, porém, quando se trata de ações concretas, não há a mesma compreensão. Há, portanto, uma luta de poder inclusive por parte das mulheres, que historicamente foram estraçalhadas, por sentirem que a entrada das mulheres negras lhes desloca de seus lugares de poder adquiridos dentro dos mesmos movimentos. Em alguns casos, parece ser mais fácil levar algumas políticas em favor da população negra para dentro das estruturas de poder, do que sensibilizar nossas parceiras e parceiros de outros movimentos sociais. Muitos também representam o status quo das sociedades. Existe por parte desses uma dificuldade em reconhecer que a estrutura racial lhes tem garantido a reprodução interna do racismo. Então, como amigas, nossa relação está muito bem, mas, quando passamos a tratar da ocupação de espaços de poder dentro dos mesmos movimentos e organismos, as dificuldades saltam rapidamente. Pelo que sei, dentro dos grupos de trabalho dessa conferência, o tema do racismo foi um dos mais difíceis. Como explicar o fato de a abordagem do racismo ser uma questão tão difícil nos grupos de trabalho, entre mulheres que estão supostamente no mesmo nível, e relativamente fácil no discurso do presidente Lula na abertura da Conferência? Trata-se de uma dimensão cultural que ainda não foi tratada suficientemente entre os movimentos e organismos representativos da sociedade. Outra vez, retornamos aos desafios políticos a serem enfrentados pelas mulheres negras. Digo outra vez porque temos inúmeras agendas abertas: aumento do poder político, criação de políticas públicas, transformação do quadro econômico, promoção de nossa própria auto-estima e sobrevivência… E agora temos uma agenda nova, ou seja, contribuir para sensibilizar realmente nossas supostas aliadas históricas não apenas no discurso, mas em especial na prática cotidiana anti-racista. O que verificamos aqui nesta Conferência foi o que assistimos há semanas em Quito, Peru, a propósito da X Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, organizada pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal). Algumas feministas até nos acusaram de querer colocar o tema das mulheres negras como prioridade absoluta. Em tom de escárnio, perguntaram: “Onde ficaremos nós, as mulheres brancas?”. E isso na primeira vez em que uma conferência regional colocou o tema das mulheres afro-descendentes da América Latina e do Caribe como prioridade. Enfim, uma total insensibilidade ou inconsciência acerca da situação econômica, social e cultural em que vivem as mulheres afro-descendentes, em lugar de entender de que somente conosco é que se podem construir sociedades realmente inclusivas, não apenas para nós, mas para as grandes maiorias que estão excluídas nessas sociedades. Não se trata, pois, de lutar entre nós mulheres, mas de reconceitualizar também essas relações de poder e começar a definir que tipo de sociedade queremos de fato. Estamos num momento de ruptura, pois determinados setores que pareciam ser nossos aliados se comportam hoje como nossos inimigos, se colocam em disputas conosco, em lugar de travar embates com os governos pelos recursos, pelos espaços, pelo poder propriamente. Em vez disso, determinados grupos investem nessa falsa disputa de poder. É preciso, novamente, a partir dessa agenda, repensar com tais setores, tendo a serenidade necessária, que é também uma característica nossa, que tem a ver com nossa história de luta de centenas de anos, que nos coloca como mais fortes. Embora tenhamos uma vida difícil, caminhamos decididamente, fazemos planejamentos com segurança. Isso está em desacordo com o imaginário coletivo acerca do modelo tradicional de mulher, que teria de pedir permissão. Embora vítimas, rompemos com o esquema tradicional do que seria vítima, pois reclamos pelos espaços que nos toca e isso corresponde a um questionamento estrutural.

Ìrohìn – E como têm se dado as ações da Rede de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas?

Epsy Campbell – Atualmente, a Rede  de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas está sob a coordenação de Dorotea Wilson Thatum, da Nicarágua. Estamos estabelecendo uma nova fase da rede como movimento em nível internacional. No mês de novembro, realizaremos um encontro de cem líderes negras da América Latina e do Caribe para discutir uma agenda com os representantes das agências das Nações Unidas. O objetivo dessa reunião é garantir que o trabalho com as mulheres afro-descendentes seja uma prioridade. Considero que essa proposição tem um caráter revolucionário, na medida em que rompe com os limites da estrutura tradicional do movimento feminista. O tema central é a violência racial, que se manifesta, fundamentalmente, contra crianças, jovens, mulheres e homens afro-descendentes, que estão sendo expulsos violentamente de todas as oportunidades. Jovens afro-descendentes são vítimas da morte, da delinqüência. É preciso reforçar que os jovens estão sendo absorvidos pela delinqüência como vítimas, não como vitimadores, embora a sociedade os acuse como culpados. São também vítimas desse processo as mulheres jovens que estão engravidando precocemente, gerando crianças sem qualquer condição, vítimas do tráfico de pessoas e da prostituição – enquanto a sociedade se comporta como se nada estivesse acontecendo. Então, nesta conferência de novembro, reivindicaremos a importância do papel da “mãe negra”, daquela figura social que protege, daquela diz: “O limite é este; não permitiremos que nossos filhos, os paridos e os não paridos, sejam mortos!”. Entender o papel histórico desempenhado pelas mulheres negras – especialmente na luta pela abolição da escravidão – passa por reconhecer essa capacidade de gerar vidas e não permitir que essas novas vidas continuem sendo massacradas pela sociedade. Vamos, pois, colocar esse tema nesta primeira conferência com as agências das Nações Unidas para que seja feita uma campanha global para que se acabe de uma vez por todas com a violência contra nossas novas gerações. Se a população jovem, entre zero e vinte anos de idade, não tiver oportunidade, dentro de vinte anos, não teremos qualquer oportunidade como povos. Se não temos direito hoje, amanhã seremos novamente os excluídos, ou seja, as vítimas de uma situação de exclusão permanente.Ìrohìn

– Firmado o compromisso com as Nações Unidas, como fazer para que essa campanha seja incorporada às agendas dos países latino-americanos e caribenhos?Epsy Campbell

– Após essa primeira conferência, faremos uma segunda com os representantes dos governos. Nesta, trataremos não apenas de políticas públicas específicas, mas principalmente da redistribuição dos recursos dos Estados. A proposta é a de um diálogo entre organismos da sociedade civil e os governos, tendo os representantes das agências das ONU como aliados. Em nível regional, até este o momento, as Nações Unidas avançaram muitíssimo na agenda indígena: há o Fórum dos Povos Indígenas e vários convênios internacionais. Enfim, há uma quantidade de compromissos com os povos indígenas, ao passo que nós, afro-descendentes, somos praticamente invisíveis, a despeito do que apregoa a Convenção Internacional contra o Racismo e a Discriminação Racial e os acordos da Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Durban, África do Sul, em 2001. Não se trata de desqualificar a importância da agenda indígena, mas o fato é que somos 150 milhões de afro-descendentes, enquanto os povos indígenas somam entre 40 e 50 milhões de pessoas. A questão é que cerca de 80% de nossa gente está em situação de pobreza. Nas prisões, temos uma sobre-representação de jovens negros, que não tiveram oportunidades reais de estudo. Há uma guerra “não declarada” contra os povos descendentes de africanos nas Américas. Essas são razões mais que suficientes para discutirmos a redistribuição das riquezas nos países. A estratégia de primeiro acionar as agências das Nações Unidas se justifica no fato de que muitas vezes é mais fácil sensibilizar o regional para poder se chegar ao intergovernamental. A violência racial se manifesta em toda a América. Verificamos isso, por exemplo, na Colômbia, com o desplaciamento e o genocídio brutais dos povos afro-colombianos, onde crianças negras são obrigadas a fazer parte da guerra contra grupos pára-militares, matando outros afro-descendentes. As autoridades chegam a reconhecer a brutalidade desse cenário, porém, não admitem que isso corresponda à violência racial; insistem em considerá-lo como um contexto de conflito. Em vários países, as prisões estão repletas de pessoas negras. Há ainda quem insista que temos uma propensão maior para delinqüir. É óbvio que não é isso. O que se passa é que a sociedade sistematicamente nega oportunidades e, mesmo assim, cobra resultados como se tivesse oferecido condições para tanto. Então, a partir desta campanha de promoção da paz, queremos que as sociedades latino-americanas e caribenhas reconheçam a liderança das mulheres negras, nossa capacidade de proposição, posto que somos líderes, temos ferramentas educativas, discurso político, capacidade de incidência e reconhecemos a necessidade de gerar diálogos e pontes com quem ocupa postos de poder e decisão. Após essa conferência com os governos, onde queremos estabelecer pressupostos de ações de combate à violência racial, o passo seguinte será o desenvolvimento da articulação global de mulheres negras.


Ìrohìn
 – E o que dizer dos desafios internos?

Epsy Campbell 
– Para romper essa lógica, precisamos nos posicionar politicamente em níveis nacional e internacional, como sujeitos políticos dispostos a tudo, porque o que se passa neste tempo é realmente inaceitável para o século XXI. É inaceitável que, após todas as lutas empreendidas por nossas gerações passadas, percamos a geração presente, que estão nas mãos de uma institucionalidade democrática que não responde a essa realidade. Acredito que estamos vivendo uma nova etapa, mais dura, porém, uma etapa em que temos de ter muito mais certeza em nossa luta. Não estamos roubando nada, estamos apenas tratando de criar mesas maiores, onde haja lugar de dignidade para todas nós, para nossos filhos e filhas, os que parimos e os que nasceram de outros ventres negros. Além do mais, não podemos esperar que os homens negros façam isso por nós. Nessa tarefa, eles são nossos aliados, mas o protagonismo é nosso. Não temos tempo para esperar a consolidação de todas as alianças necessárias. Temos de sair à frente, como tantas vezes o fizemos ao longo da história. Gostaria, nesse sentido, de chamar as lideranças negras para que entendamos o momento político que vivemos. Um momento político que não precisa de pequenos enfrentamentos entre nós mesmos em nome de insignificantes cotas de poder, mas um momento ímpar para transformarmos a sociedade. Temos de ser capazes de construir um futuro recorrendo ao que o passado nos ensinou. Este é o momento para que nós, homens e mulheres negras, nos percebamos como estadistas e entendamos que nossa transformação como povos implica a transformação de nossos países, que nos vejamos como aqueles que sonharam com uma liberdade que parecia impossível, mas lutaram por ela. Nossa própria história é a maior força que temos para promover esse momento de transformação.

(Entrevista realizada por Ana Flávia Magalhães Pinto, Jornalista e mestre em História (UnB) da equipe do jornal Irohin)

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