Estamos em maio – por Flávia Oliveira

É o mês da abolição e todo mundo quer debater racismo. Eu queria falar dos negros em setembro

Por Flávia Oliveira, do O Globo

Foto: Marta Azevedo

Eu sei quando maio começa, porque todo mundo quer saber do povo negro. Se dormisse por meses a fio, ao acordar, me saberia em maio pelo assédio dos ativistas e dos bem intencionados. É o mês da abolição e todo mundo quer debater o racismo. A agenda de eventos não cabe no calendário; o dia 13 deveria ter 129 horas, uma para cada aniversário da Lei Áurea. Em novembro, mês da consciência negra, também. Todo mundo quer saber dos negros em novembro. Eu queria falar em dos pretos em setembro. Mas setembro é o mês em que a gente fala de flores, de literatura e de música. Setembro é o mês da primavera, da Bienal do Livro e do Rock in Rio. Então, precisamos falar dos pretos agora.

É hora de lembrar que, quase um século e meio após a libertação dos escravos, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos negros brasileiros ainda é 15% inferior ao dos brancos: 0,679, contra 0,777, informou ainda ontem o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Pretos e pardos somam mais da metade (54%) da população, mas são 75% dos brasileiros mais pobres e não chegam a um quinto dos mais ricos, calculou o IBGE.

Porque estamos em maio, vale sublinhar que somente 12,8% dos jovens negros de 18 a 24 anos estão cursando o ensino superior, metade da proporção (também nada ideal) de brancos da mesma faixa etária (26,5%). Oito de cada dez (77%) brasileiros de 15 a 29 anos assassinados no país têm a pele preta ou parda. O Mapa da Violência contabilizou 31 mil negros entre 44.861 mil mortos por armas de fogo em 2014.

É tempo de ressaltar que a taxa de desempregos dos autodeclarados pretos é de 14,4%; dos pardos, 14,1%; e dos brancos, 9,5%. O rendimento médio dos negros equivale a 55% da renda dos trabalhadores brancos. Homens negros ganham menos que mulheres brancas, ou seja, raça se sobrepõe a gênero nas desigualdades do mercado de trabalho. Mulheres negras são maioria entre trabalhadores domésticos. Dos adultos negros, 80% não têm plano de assistência médica ou odontológica; 40% não moram em casa com água encanada, esgoto e coleta regular de lixo; 38% avaliam o próprio estado físico como regular, ruim ou muito ruim, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (IBGE 2013).

A abolição caminha para 130 anos; a Lei Afonso Arinos, a primeira do país contra a discriminação racial, completou 65; racismo é crime inafiançável desde a Constituição de 1988; o sistema de cotas nas universidades públicas começou há década e meia. Faz 48 anos que Gilberto Gil avisou ao Brasil que saiu da Bahia com régua e compasso. E chegamos a 2017 debatendo se alguma alma generosa precisa nos ajudar a segurar o lápis (real e metafórico) da vida.

Estamos em maio e eu tratei de negritude. Escreverei em todas as datas, todos os meses, todos os anos. Mas é preciso falar de branquitude. Neste sábado, a GloboNews vai exibir “Eu não sou seu negro”, documentário obrigatório para os que têm outros tons de pele. É também para tirar os não negros da zona de conforto a série “Dear white people”, da Netflix. São duas obras que escancaram as reflexões — o filme, com conteúdo robusto; a série, com pitadas de humor e altas porções de drama — sobre privilégio branco, racismo estrutural, identidade racial, diversidade e individualidade, temas necessários ao Brasil do século XXI.

Estamos em maio, eu tinha de falar dos pretos. E dos brancos. Mas eu queria outro assunto. O meu amado me chamou de Felicidade. Eu reparei no meu nome trocado e lembrei que minha tia Marizete morava na Pavuna e tinha uma vizinha chamada Felicidade. A vida toda eu pensei na Felicidade que morava na Pavuna. Tia Marizete morreu anos atrás e nunca mais fui à Pavuna. Nunca mais vi Felicidade.

Mas em 2017, no mês em que todo mundo quer falar dos pretos, o meu amor disse que Felicidade era eu. Por isso, no aniversário da abolição, precisei falar também de Felicidade. Ela morava na Pavuna. Mas neste maio encarnou em mim.

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