Ex-faxineira, professora de História inova na rede pública

Chamada de “professora que dá aula de um jeito diferente”, Luana Tolentino promove intercâmbio com outros estudantes e encoraja seus alunos

Do Terra 

Conhecida como “a professora que dá aula de um jeito diferente”, Luana Tolentino acredita que a educação precisa ser um trampolim na vida dos alunos
Foto: Vera Godoy / Cartola – Agência de Conteúdo – Especial para o Terra

Uma casa simples, na periferia de Belo Horizonte, sem muros e com um quintal cheio de animais, como cachorro, gato, coelho, tartaruga, galinha, pato e codorna. Era onde todas as crianças da rua gostavam de brincar. E foi onde Luana Tolentino cresceu. No passado da hoje professora, pesquisadora, feminista e ativista do movimento negro, há histórias doloridas, mas de superação e conquista.

Os pais, Nicolau e Nelita, tiveram quatro filhos: Luana, Camila (irmã gêmea de Luana), Dennis e Miriam. Camila faleceu devido a um problema cardíaco logo depois do nascimento, e Miriam, em decorrência de um câncer, em 2013. Hoje, aos 31 anos, Luana vive com os pais e o irmão no mesmo lugar onde cresceu.

Com pouco estudo, os pais de Luana sempre trabalharam em comércio. A dificuldade financeira impediu as crianças de terem brinquedos, mas Nicolau costumava levar livros para casa. “Lembro do dia que o meu pai chegou com um dicionário Aurélio novinho. Todos os dias quando acordava, a primeira coisa que eu fazia era abrir aleatoriamente para descobrir palavras novas”.

Luana ingressou na escola cedo, aos quatro anos. Em um esforço dos pais, a educação infantil foi realizada em escola particular. Já o ensino fundamental e médio foram cursados na rede pública. Ela conta que sempre foi apaixonada por livros e uma aluna com boas notas.

Se na infância faltaram brinquedos, na adolescência, com o pai desempregado, a falta de água, luz e comida era frequente. “Às vezes, passávamos dias escovando os dentes com bicarbonato de sódio porque não havia dinheiro para comprar sequer creme dental”, lembra. Para ajudar em casa, aos 13 anos, Luana foi babá de duas crianças. Depois, já com 15, passou a trabalhar como empregada doméstica, uma experiência que ela classifica como “extremamente dolorosa”, devido às humilhações a que foi submetida.

Luana também trabalhou como operadora de telemarketing, mas pediu demissão e denunciou a empresa depois que a gerente ordenou que ela limpasse o banheiro. Ela conta que foi nesse período que a vontade de estudar ficou ainda mais forte. “Tinha a certeza de que, se eu tivesse conhecimento, seria salva, teria uma vida muito melhor”.

A garota estudiosa percebeu cedo que queria ser professora. Mesmo sem o apoio da mãe — que ainda acha a profissão muito desvalorizada — Luana nunca quis ser outra coisa e, aos 18 anos, decidiu prestarvestibular para o curso de História. “Ser professora é o que eu mais amo nessa vida. Não tenho uma visão romantizada da minha profissão. Sei que tudo deveria ser diferente, sei dos problemas. Mas ensinar, estar na sala de aula é… Nem sei dizer direito. É maravilhoso pra mim”.

Luana formou-se em História no Centro Universitário de Belo Horizonte, entre 2002 e 2006. “Na época, benefícios estudantis como Prouni e Fies não eram tão acessíveis. Então voltei a fazer faxina para pagar a faculdade”, lembra.

“Ser negro é maravilhoso”
Negra, Luana sofreu com o racismo desde a infância. “Recordo das crianças da escola rejeitarem a minha participação nas brincadeiras, das piadas e da indiferença de alguns professores”. Para ela, ter crescido sem nenhuma referência positiva de negros nos livros infantis e didáticos ou nos programas de televisão interferiu na sua autoestima, autonomia e nos seus relacionamentos afetivos. Foram necessárias muitas sessões de terapia até Luana finalmente se sentir “segura e forte”.

Os encontros promovidos pelo projeto Ações Afirmativas, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), também foram importantes para a sua formação como ativista no movimento negro. “Fiquei emocionada de verdade. Pensei: ser negro é maravilhoso! Foi a primeira vez que eu tive esse sentimento”, lembra. Para Luana, é inegável que o Brasil vive um novo tempo, com mais conquistas por parte da população negra. “Mas ainda precisamos de mais negros e negras ocupando cargos importantes e de prestígio”, defende.

Foi também na UFMG que Luana conheceu Constancia Lima Duarte, mulher que ela afirma ser a “culpada” por ela ter se tornado feminista. Hoje, Luana trabalha em uma pesquisa sobre imprensa feminina e feminista coordenada por Constancia.

Repensando a educação
A educação foi o trampolim para a mudança de vida de Luana. E é assim que ela enxerga que tem que ser para os seus alunos. A professora critica a forma atual de educar e afirma que a escola é um espaço “extremamente conservador e preconceituoso”, um reflexo da sociedade, diz. “Vivemos uma crise terrível na educação, que se reflete no esvaziamento dos cursos de licenciaturas, na migração de professores para outras profissões e alunos desmotivados. Se quisermos de fato reverter esse quadro aterrador, é preciso que todos assumam a sua fatia nesse bolo”, afirma.

Quando lecionava para as turmas do 7º ao 9º ano do fundamental, na escola estadual Alizon Themóter Costa, Luana era conhecida como “a professora que dá aula de um jeito diferente”. Isso porque ela planejava atividades inovadoras e que envolviam os alunos. Ela explica que se preocupa com a trajetória individual de cada aluno e pensa que o seu papel é organizar o processo de ensino e dar espaço para aprender com os estudantes.

Um dos projetos do qual se orgulha aconteceu no ano passado, quando ela conseguiu fazer uma troca de cartas entre os seus alunos e os de uma escola de Moçambique. “Consegui que a embaixada moçambicana enviasse as cartas, já que o sistema dos correios de lá é extremamente precário. O cônsul de Moçambique foi até a nossa escola. Os alunos amaram!” Ela também promoveu um contato presencial entre seus alunos e estudantes africanos. “Organizei um jogo entre os meus alunos e africanos que estudam na UFMG. Foi um acontecimento. Eles ficaram extasiados.”

O cônsul de Moçambique foi até a escola em que Luana dá aulas após a professora organizar uma troca de cartas entre seus alunos e os alunos de uma escola do país africano - Foto: Foto: Cartola - Agência de Conteúdo
O cônsul de Moçambique foi até a escola em que Luana dá aulas após a professora organizar uma troca de cartas entre seus alunos e os alunos de uma escola do país africano – Foto: Foto: Cartola – Agência de Conteúdo

Talita Amorim, 20, lembra muito bem desse dia. Na época, ela cursava o terceiro ano do ensino médio e conta que todos da turma adoraram a experiência de jogar e conversar com os estrangeiros. Talita destaca a maneira como Luana se relaciona com os estudantes. “Além do jeito atencioso, ela encoraja muito os alunos. Ela também sempre leva questões sobre preconceito e feminismo pra dentro de sala. Acho isso importante, principalmente para os alunos mais jovens”, afirma.

A garota, que hoje cursa um tecnólogo em design gráfico no Centro Universitário de Belo Horizonte, diz que Luana foi uma grande incentivadora na sua escolha profissional. Mesmo depois de ter se formado na escola, elas continuam em contato e Talita foi convidada para fazer a arte gráfica de um projeto escolar de Luana chamado Lumiar, que aborda a inclusão de pessoas com deficiências. “Foi muito bom para eu ganhar experiência. Ela até ligou para a minha mãe para me parabenizar”, conta Talita. O projeto está sendo desenvolvido na escola municipal onde, desde o início do ano, Luana é professora em oito turmas, do 7º ao 9º ano do fundamental.

Convidada por Luana, a ex-aluna Talita Amorim fez a arte gráfica do projeto "Lumiar" - Foto: Foto: Cartola - Agência de Conteúdo
Convidada por Luana, a ex-aluna Talita Amorim fez a arte gráfica do projeto “Lumiar” – Foto: Foto: Cartola – Agência de Conteúdo

Luana também fez uma atividade inspirada na experiência de uma educadora norte-americana. Perguntou a alguns de seus alunos o que eles gostariam que a professora soubesse. Entre elogios à professora e preocupações com a dificuldade em sala de aula, sonhos e histórias familiares de alegria e outras de violência. “As respostas só reforçam a minha crença de que é necessário repensar a escola e propor algo que vá além do modelo homogeneizante vigente, que desconsidera os saberes, as habilidades e a trajetória de cada estudante”.

Propor novas atividades e estar atenta à história de cada aluno demanda mais esforço do que seguir a cartilha das aulas tradicionais. Mas Luana acredita que vale a pena quando vê a diferença no aprendizado dos alunos e a possibilidade de mudar vidas, assim como a sua mudou. “O engajamento, a luta pela educação, o respeito pelos meus alunos: acho que tudo isso foi sendo construído ainda na minha infância”, afirma.

Foto de capa: Vera Godo

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