Fátima Oliveira: Governo Dilma submete corpo das brasileiras ao Vaticano

Em 28 de março de 2011, a presidenta Dilma Rousseff, acompanhada do ministro Alexandre Padilha, lançou, em Belo Horizonte (MG), a Rede Cegonha.

Por Fátima Oliveira

A farmacêutica Clair Castilhos (aqui), a cientista social e jornalista Telia Negrão (aqui) e a médica e escritora Fátima Oliveira (aqui e aqui), alertaram: a Rede Cegonha é retrocesso de 30 anos nas políticas de gênero, saúde integral da mulher e direitos reprodutivos e sexuais.

Do ponto de vista de atenção integral à saúde das mulheres – o paradigma oficial do Estado brasileiro desde a década de 1980 –, a Rede Cegonha é reducionista. Retoma a noção e a prática de saúde materno-infantil, coisa que em medicina nem existe mais.

Significa atenção à saúde da mãe e da criança como unidade indissociável, na qual as mulheres deixam de ser sujeitas principais do evento reprodutivo, o foco passa a ser o bebê. Um conceito antigo, conservador e do agrado absoluto da Santa Sé.

Meses depois, após muitos embates com os movimentos de mulheres via blogosfera principalmente, o Ministério da Saúde pareceu recuar. Ao emitir a Portaria, que formalizou a Rede Cegonha, expurgou-lhe o conceito de saúde materno-infantil. Mas só pareceu.

Em 26 de dezembro, a presidenta baixou a Medida Provisória 557, que institui o Sistema Nacional de Cadastro, Vigilância e Acompanhamento da Gestante e Puérpera para Prevenção da Mortalidade Materna. Assinam-na também os ministros Padilha, Guido Mantega (Fazenda) e Miriam Belchior (Planejamento). Publicada no Diário Oficial da União do dia seguinte, já está em vigor.

Se ainda havia alguma dúvida sobre a direção da política do governo Dilma em relação à saúde da mulher, não há mais. A MP 557 sacramenta a guinada conservadora, bem orquestrada, iniciada com a Rede Cegonha. Um rumo antidemocrático, não republicano e autoritário.

Tudo sob os aplausos dos machistas, das mentalidades conservadoras dos mais diversos naipes e as bênçãos dos fundamentalistas religiosos.

Elegemos Dilma como presidenta de uma República laica, mas parece que quem dá as cartas na saúde das mulheres brasileiras é o ideário fundamentalista do tucano José Serra nas eleições de 2010, assessorado pelo bispo de Guarulhos, dom Luiz Gonzaga Bergonzini.

“O governo Dilma ajoelhou e rezou”, afirma Fátima Oliveira. “Eu não tenho dúvida de que a MP 557 é a reza final. Acho que a Santa Sé não tem mais nada a pedir ao governo Dilma, porque ela já deu tudo.”

“A MP 557 traz de contrabando o nascituro, que é um dos grandes sonhos dos fundamentalistas religiosos, desde os tempos em que o ex-deputado federal Severino Cavalcanti (PP-PE) propôs o Estatuto do Nascituro”, critica Fátima. “O nascituro não existe sem a mãe. Logo, ao se cuidar da mãe, está se cuidando dele. Não tem sentido dar-lhe personalidade civil, como tenta a MP 557. É inconstitucional.”

“Estou convencida de que essa MP tem uma finalidade ideológica, religiosa. Ela foi feita exclusivamente para tentar passar como contrabando a personalidade civil do nascituro. Ela não tem outro objetivo que não esse”, vai mais fundo Fátima. “Quem escreveu a MP tinha o objetivo de arrumar um gancho legal para os conteúdos da bolsa-estupro e do Estatuto do Nascituro.”

“Infelizmente, o governo Dilma, que é a nossa primeira presidente mulher, está jogando no lixo todos os compromissos assumidos pelo Brasil nos espaços das Nações Unidas na área de saúde da mulher”, sentencia Fátima. “Junto, 30 anos de luta das mulheres brasileiras pela saúde, direitos sexuais e reprodutivos. Um retrocesso sem precedentes.”

Fátima é estudiosa, militante da saúde da mulher e autoridade no que fala. Voz ativa, dura e respeitada, nos principais fóruns nacionais e internacionais das duas últimas décadas, foi secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde de 2002 a 2006.

Guerreira que dá gosto, a avó de Maria Clara, Luana e Lucas e mãe de Maria, Débora, Lívia, Gabriel e Arthur, nasceu com cabelinhos nas ventas. Aos 16 anos (hoje tem 58), começou a batalhar pelos direitos das mulheres e um mundo mais solidário. Não parou mais.

Médica do pronto-socorro do Hospital de Clínicas da UFMG, onde dá duros plantões, Fátima integra os conselhos Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) e Consultivo da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe (RSMLAC).

Sentindo-se apunhalada pela MP 557, inicialmente esquivou-se dessa entrevista. Estava muito indignada. Não parava de repetir: “Não votamos em Dilma para o retrocesso. Se ela não dá conta ou não quer avançar, no mínimo, não deveria retroceder, desautorizar o nosso empenho para elegê-la numa eleição tão difícil, titanicamente ideológica”.

Mas acabei convencendo-a. Eis a íntegra da nossa conversa. A pedidos, vou tratá-la por você.

Viomundo – Nós começamos 2011, com o anúncio da Rede Cegonha. Em entrevista que nos deu, você foi taxativa: Ministério da Saúde adoça a boca do Vaticano. E agora, com a MP 557?

Fátima Oliveira – O governo ajoelhou e rezou. Eu não consigo entender por quais motivos um Estado laico se submete ao Vaticano dessa forma. O governo vem crescentemente cedendo às ideias fundamentalistas mais de extração católica. Eu não tenho dúvida de que a MP 557 é a reza final. Acho que a Santa Sé não tem mais nada a pedir ao governo Dilma, porque ela já deu tudo.

Viomundo – Como assim, doutora?

Fátima Oliveira – Desde que soube dessa malfadada Medida Provisória 557, eu me pergunto: por quê? Li e a reli várias vezes para tentar entender a sua razão. Fico chocada cada vez mais. Após ler exposição de motivos no domingo, fiquei totalmente estarrecida.

Viomundo – Por quê?

Fátima Oliveira – Primeiro, a exposição de motivos é fraca de argumentos, inconsistente, tem várias lacunas. Demonstra claramente que quem a escreveu ignora ou omite propositalmente os reais compromissos assumidos pelo Brasil nos espaços das Nações Unidas. Sobretudo os referentes à Conferência sobre População e Desenvolvimento, que aconteceu no Cairo, em 1994. Conhecida como Conferência do Cairo, ela é um marco. Consagrou globalmente conceitos de saúde e direitos reprodutivos.

Segundo, como uma MP que se propõe a reduzir a morte materna não menciona uma só vez a palavra aborto, a quarta causa de morte materna no país, e, ainda por cima, faz de conta que a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento (2004) não existe? Para mim, isso é um tipo de arrogância.

O aborto inseguro é um problema de saúde pública no Brasil. É como disse o embaixador do Brasil no Chile, Gelson Fonseca Júnior, chefe da delegação brasileira na Reunião da Mesa Diretora Ampliada do Comitê Especial de População e Desenvolvimento, realizada, em 2004, em Santiago: Sem cuidar do aborto inseguro, combater a mortalidade materna é uma miragem.

Terceiro, a MP 557 traz de contrabando o nascituro, que é o grande sonho dos fundamentalistas religiosos, desde os tempos em que o deputado Severino Cavalcanti propôs o Estatuto do Nascituro. O nascituro não existe sem a mãe. Logo, ao se cuidar da mãe, está se cuidando dele. Não tem sentido tratá-lo como ser autônomo, como está na MP 557. Está na contramão da Constituição Brasileira, de 1988, como mostrou brilhantemente a doutora Beatriz Galli na entrevista que deu a você.

Viomundo – O fato de a MP 557 fingir que não existe a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Aborto, elaborada pelo próprio Ministério da Saúde, é realmente muito estranho. Mais esquisito é incluir o nascituro, cuja personalidade civil não é reconhecida pela nossa Constituição. E só arrogância de quem fez a MP? Não haveria também ignorância, talvez até má-fé?

Fátima Oliveira – Pode ser um misto das três coisas: arrogância, ignorância e má-fé. Estou convencida de que essa MP tem uma finalidade ideológica, religiosa. Ela foi feita exclusivamente para tentar passar como contrabando a personalidade civil do nascituro. Ela não tem outro objetivo que não esse.

Viomundo – A presidenta Dilma e o ministro Padilha não estariam sendo enganados?

Fátima Oliveira – Não acredito. Acho que eles pensam assim. Ou os compromissos assumidos com os setores mais conservadores durante as eleições de 2010 exigem que atuem assim. Das duas uma. Como na poesia Ou Isto ou aquilo, de Cecília Meireles:

“Ou se tem chuva e não se tem sol,/ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,/ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,/quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa/estar ao mesmo tempo nos dois lugares!”

Viomundo – Na exposição de motivos da MP, está dito que o Brasil tem o compromisso com as Metas do Milênio de reduzir drasticamente a mortalidade materna até 2015 e que sem o cadastro é impossível atingí-la. Concorda?

Fátima Oliveira – A criação de um cadastro nacional de gestantes é abusiva. É invasão de privacidade. Não podemos admiti-la em hipótese alguma. Viola o sigilo médico.

Na verdade, o cadastro é mais um amém do governo aos fundamentalistas religiosos. Ter um cadastro nacional unificado com todas as mulheres que engravidam no Brasil é outro grande sonho deles. Está no projeto de lei da bolsa-estupro e no Estatuto do Nascituro. Eles querem poder acessar num só lugar quem está grávida nesse país, para verificar se aquela mulher vai levar aquela gestação até o fim. Será que o governo não sabe? Tenho dúvidas.

No Brasil, nós já temos vários sistemas de coleta de dados de saúde, inclusive do pré-natal. O governo não tem necessidade desse novo cadastro. Talvez precise ser aprimorado, coletar um ou outro dado a mais. Mas não criar um cadastro nacional com a vida sexual e reprodutiva das mulheres brasileiras, que pode acessado a qualquer hora, por qualquer pessoa.

Viomundo – E quanto ao argumento das Metas do Milênio?

Fátima Oliveira – O Brasil tem de cumprir as Metas do Milênio, sim, já que concordou com a pauta minimalista dos governos membros da ONU. Cabe ressaltar que as Metas do Milênio são uma pauta dos governos, que fracassaram no cumprimento dos Programas e Plataformas de Ação do ciclo de Conferências Sociais da ONU (Organização das Nações Unidas) da década de 1990. Nada a ver com os movimentos sociais, que fique explícito. Portanto, cumprir as Metas do Milênio não significa que não tem de cumprir também todas as outras plataformas.

Ou seja, as Metas do Milênio não anulam os compromissos assumidos anteriormente, como os das conferências do Cairo e Beijing [respectivamente, 1994 e 1995]. E as questões referentes à mortalidade materna, aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos estão contidas em todas essas conferências, das quais o Brasil é signatário. Portanto, no Brasil, isso é também lei.

Aliás, uma MP dessa natureza jamais poderia ter sido feita sem a presença e a orientação do Itamaraty. Além de a diplomacia brasileira ser muito considerada nos espaços das Nações Unidas, o Itamaraty, em função do ciclo de Conferências Sociais da ONU, sabe as plataformas que assinou e os compromissos que assumiu. Eu sou testemunha disso, pois fui membro da delegação brasileira em muitas delas.

Viomundo – O ministro Padilha disse que quem não quiser não precisa se cadastrar, que o cadastro não é obrigatório…

Fátima Oliveira – Eu não preciso dos R$ 50 para pagar a condução para a um serviço de saúde. Você também não precisa, assim como certamente quase todas as leitoras do Viomundo. Já milhares e milhares de mulheres de baixa renda por esse Brasil afora necessitam desse recurso. Como elas vão conseguí-lo sem se cadastrar? Não vão.

Portanto, o cadastro é obrigatório, sim. Dizer o contrário é sofisma. Só não vai se cadastrar para receber o auxílio-transporte quem não precisa de assistência do SUS, ou seja, as mulheres com melhor condição financeira, que têm plano de saúde ou médico particular.

Mas, ao bem da verdade, para ser fiel à verdade, fica feio o ministro sair pela tangente porque para quem sabe ler, basta ler a MP, ela é absolutamente inteligível: o cadastro é para as gregas e troianas rsrsrsrsr, na medida em que é obrigatório para todos os serviços de saúde, públicos e privados. Sem choro, sem vela… É assim que reza a MP!

Viomundo – O que acha do auxílio de até R$ 50 para transporte?

Fátima Oliveira – É um compromisso do governo desde o anúncio da Rede Cegonha, no início de 2011. Eu nunca vou ser contra dar subsídio à população para algo que ela precisa. Muita gente precisa. Para algumas mulheres, vai ser pouco para custear as idas às consultas e exames do pré-natal, depois ao hospital, para ter o bebê. Para outras, o valor de R$ 50 talvez seja suficiente. Agora, se o governo tem, deve dar, sim. A pátria pode e deve ser mátria para quem necessita. Assim penso.

Afora o auxílio-transporte e a reafirmação do direito de acompanhante durante o trabalho de parto, no parto e no pós-parto imediato, não tem nada que se aproveite nessa MP no sentido que ela se propõe, que é o de auxiliar a combater a mortalidade materna.

Viomundo – Será que tudo isso foi colocado realmente com todas as letras para a presidenta Dilma?

Fátima Oliveira – Se não foi, é imperdoável. Mas eu não acho que ninguém do governo seja inocente, nem que a Dilma ou o Padilha tenham sido enganados. Acho que baixaram essa famigerada MP, porque queriam fazer isso. Pensam assim. Ou são obrigados, por “forças ocultas”, a pensar assim…

Quem escreveu a MP tinha o objetivo de arrumar um gancho legal para os conteúdos da bolsa-estupro e do Estatuto do Nascituro.

Em função desse embate virtual e na imprensa escrita que temos tido com o Ministério da Saúde [Rede Cegonha, Política Atenção Integral à Saúde da Mulher, descumprimento daNorma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento e MP 557] e de outras coisas, chegamos à triste constatação de que a postura de ouvido de mercador tem sido a regra. O que para a democracia é catastrófico.

Dá para imaginar um governo, que se declara popular e democrático, adota o silêncio, o desdém e a tentativa de desmoralização, quando setores respeitáveis da sociedade, com quilometragem inegável de luta, se posicionam em busca do melhor para a sociedade?

Bem, mas é o que tem acontecido. Aliás, tem sido a regra no campo da saúde. Até parece que não somos ninguém, que somos inimigos. Ao contrário. Quem está no governo, precisa saber que o governo Dilma é tão deles quanto nosso. Certamente há muita gente que não ocupa cargos que suou, sangrou em nome de uma proposta de país. Portanto, merece respeito, merece ser ouvida. E até lealdade, quando achamos que algo não é o melhor, temos de nos posicionar contra, porque queremos que o governo acerte cada vez mais. Ou essa não é uma regra da democracia?

Nem sempre quem está encastelado no governo sabe para que lado o vento sopra. Daí para ser um construtor de tempestades — por desconhecimento, para privilegiar a sua visão pessoal de mundo e eventualmente até por má-fé — é um pulo…

Viomundo – Por exemplo.

Fátima Oliveira – Causa-me irritação profunda a forma como esse governo vem tratando a questão do aborto.

Sempre que o ministro Padilha é questionado, ele se limita a dizer: Vamos cumprir a lei.

Na 3ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, um dos temas importantes foi o aborto. Pois bem, a ministra Iriny Lopes, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República disse: Aborto, nós não vamos tratar aqui, porque aborto é com o Congresso Nacional.

Como um ministro da Saúde, que é médico e sabe o que é a carnificina do aborto clandestino no Brasil, diz apenas: Eu só vou cumprir a lei?

O ministro Padilha sabe, sim, que o combate à mortalidade materna passa não só pela atenção ao abortamento inseguro, mas passa também pela legalização do aborto no Brasil. Aí, vem com essa de “Vamos cumprir a lei” e estamos conversados!

Putz, eu não votei em Dilma para ouvir esse nível de conformismo, mas para avançar mais e mais na construção da cidadania, para remover entulhos restritivos à democracia, à laicidade. Para ouvir isso, teria sufragado o nome de José Serra. Ou não?

Ora me compre um bode, pois nem a lei tem sido cumprida! Em um ano de governo alguém ouviu falar quantos novos serviços de aborto previsto em lei foram instalados?

Alguém sabe quanto de recursos financeiros o Ministério da Saúde disponibilizou para tais serviços? Estamos ouvindo falar que o primeiro serviço previsto em lei instalado no Brasil, o do Hospital do Jabaquara na cidade de São Paulo, fechou ou vai fechar…

Como uma ministra cuja pasta tem o papel de conferir mais cidadania às mulheres diz que o aborto não tem nada a ver com o Executivo? Para mim revela inadequação ao papel que precisa desempenhar, além de querer interditar a nossa fala!

É como se eles dissessem: vocês que se lasquem. E deixam a gente se lascar bem lascada, porque nem o aborto previsto em lei está sendo cumprido.

Viomundo – Insensibilidade da parte deles? Só de pensar que por ano são realizados muitos milhares de abortamentos clandestinos, inseguros, que matam centenas e centenas de mulheres, não dá para a gente ser hipócrita e fazer de conta que essa tragédia não acontece aqui…

Fátima Oliveira – Seriam esses ministros ignorantes do seu papel? Ou estariam nos chamando de burras?

Um governo popular e democrático tem o dever de cumprir a lei. Mas tem o dever também de fazer avançar a cidadania.

Quem é que não sabe que para mudar a lei tem de passar pelo Congresso? Nós não estamos falando em legalização do aborto. A Dilma já disse que não vai mexer com isso. Então não vamos perder o nosso tempo.

Mas nós queremos o que conquistamos nessa área. A aplicação da norma técnica de atenção humanizada aos casos de aborto previstos em lei, o que não vem acontecendo. Pior. O governo esconde-a propositalmente na MP 557, que cuida de morte materna.

Não foi para isso que nós votamos na presidenta Dilma. Não foi para isso que nós suamos e sangramos, não. Nós votamos nela com a convicção de que a cidadania das mulheres brasileiras seria um ponto importante, que os direitos conquistados seriam respeitados e seria possível avançar em muitos aspectos.

Viomundo – O que achou de a MP ter sido baixada no dia 26 de dezembro?

Fátima Oliveira – Já te disse e repito: tudo que é feito na calada da noite, na calada dos intervalos de recesso de final de ano, a gente tem de desconfiar.

Achei de uma maldade tão grande baixar um documento tão sério num momento em que as pessoas estão descansando, vão tirar uns dias com as suas famílias. Isso faz parte da cultura brasileira dos feriados de final de ano…

O governo tinha certeza de que a MP iria dar problemas, por isso deixou-a para essa época do ano. A data foi escolhida a dedo e quem escreveu a MP sabia o que queria colocar ali. Tanto que colocou.

Não há justificativa dos pontos de vista médico, de saúde e político, para essa MP. Ela é injustificável, ainda mais na última semana do ano. Um governo democrático não pode se comportar dessa forma. Por que não fez uma MP de Responsabilidade Sanitária? Com certeza com ela mudaríamos para melhor muitos aspectos da atenção à saúde, inclusive mortalidade materna. Por que não encarar de vez uma MP resolutiva de certeza na área da saúde?

Viomundo – Você continua indignada, zangada, como estava na última quinta-feira, 29 de dezembro, quando começou a criticar a MP 557 no twitter?

Fátima Oliveira – Fiquei doente esses dias. Zangada, não estou. Indignada, sim. Estou me sentindo absolutamente apunhalada. Embora eu seja uma crítica feroz da Rede Cegonha, desde a primeira hora, subestimamos o viés ideológico do caminho que o Ministério da Saúde começava a tomar. Esse caminho se aprofundou nessa MP.

Infelizmente, repito, o governo Dilma, que é a nossa primeira presidente mulher, está jogando no lixo todos os compromissos assumidos pelo Brasil nos espaços das Nações Unidas na área de saúde da mulher. Junto, a luta das mulheres brasileiras pela atenção à saúde integral, direitos sexuais e direitos reprodutivos, que começou em plena ditadura militar. Um retrocesso de 30 anos, sem precedentes.

Viomundo – Na verdade, um viés ideológico-religioso, sendo os nossos corpos o objeto de negociação.

Fátima Oliveira – Exatamente. Eu tenho moral para falar o que vou dizer agora, pois na época da Constituinte, eu coletei muita assinatura para a liberdade de religião no Brasil.

Eu defendo o direito de toda autoridade tenha a religião que quiser. Só que religião é uma coisa da intimidade da pessoa, pra seu consumo interno. As religiões dos governantes não podem ser a régua do exercício do poder público. Nos cargos públicos, as questões religiosas não podem ser condutoras das políticas públicas.

Esse governo já deu demonstrações demais a quem está submetido quando o assunto são os corpos das mulheres. Está na hora de dizermos ao governo que os nossos corpos nos pertencem e não podem ser moeda de troca, com quem quer que seja.

Essa MP foi a gota d’água num oceano. Nós queremos que a saúde da mulher nesse país seja tratada como deve ser tratada numa república laica, democrática e de avanços de direitos.

Viomundo – Qual a saída?

Fátima Oliveira – Numa democracia laica, diante de tantos problemas que estamos vendo no campo da saúde e os levantados na área do direito pela doutora Beatriz Galli, manda o bom senso que essa MP não vá adiante.

No meu entender, só existe uma saída: a presidenta Dilma retirar essa MP e rediscutir a questão de como melhorar a política de combate à morte materna com setores da sociedade que têm capacidade para isso. No Brasil, há muita gente que pode contribuir para que o país possa cumprir os seus compromissos com as Metas do Milênio e com plataformas das Conferências Sociais da ONU.

Viomundo – De que forma?

Fátima Oliveira – Esse governo tem de descer do salto. E chamar uma discussão ampla com os diferentes setores da sociedade, inclusive com o Itamaraty.

O ministro Padilha é a simpatia em pessoa, ar de boa gente, mas tem se mostrado equivocado e autoritário quando o assunto é saúde da mulher. Um horror! Basta dizer que, quando do anúncio da Rede Cegonha, se pediu que ele abrisse um espaço de discussão amplo na sociedade. Ele não chamou para esse debate. Nós queremos um debate real e não virtual.

Agora, na medida provisória, ele tenta transformar retrocessos em lei. Não foi para esse tipo de comportamento e nem um governo cheirando a mofo medieval, comandado pela Capela Sistina que a gente saiu às ruas para pedir votos para Dilma.

Um pouco antes das últimas eleições presidenciais, eu escrevi o seguinte num artigo para o Viomundo:

“Em 2010 em nosso país o que está em jogo é também a luta por uma democracia que se guie pela deferência à liberdade reprodutiva e que considere a maternidade voluntária um valor moral, político e ético, logo respeita e apoia as decisões reprodutivas das mulheres, independente da fé que professam. Nada a ver com a escolha de quem vai mandar mais no território dos corpos das mulheres! Então, xô, tirem as mãos dos nossos ovários!”

Pois não é que agora, com a MP 557, o governo Dilma quer mandar nos nossos corpos? Eu estou me sentindo apunhalada, mesmo. E o que é pior: pelas costas!

 

 

Fonte: Viomundo

 

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