Feminismo e a ideia radical de que mulheres são gente

Durante muito tempo, o meu quarto foi uma bagunça. Uma zona nem sempre aparente, porque com o passar do tempo, conseguimos guarda-roupas cada vez maiores para entulhar tudo lá dentro, até não caber mais. Acumulamos coisas que nem sempre fomos nós que escolhemos, possivelmente presentes que nos foram dados, e temos dificuldade de nos livrar do velho, mesmo que seja absolutamente inútil e nos tome muito espaço. Quando eu morava na casa da minha vó, a bagunça era magicamente arrumada todos os dias, e eu não tinha tempo de perceber a sua existência. Mas aí a gente cresce, e temos que arrumar a nossa bagunça por conta própria. E se você não tem experiência com isso, pode realmente ser uma tarefa bem difícil e chata.

por   no BrasilPost

As coisas que aprendemos quando nascemos são as bagunças. Elas vão se acumulando, e você vai jogando pra dentro de si e absorvendo tudo o que te dão. E você não necessariamente tem alcance de pensar se vai te servir ou não, a ponto de descartar antes mesmo de ter a oportunidade de guardar aquilo em algum canto do armário – inclusive, essas coisas são descobertas anos depois e você se pergunta “Por que eu tenho isso?”. É.

Quando nascemos, não temos alcance de entender praticamente nada. Com o tempo, as coisas vão sendo passadas e ensinadas pelos nossos pais e pessoas próximas, até que você absorve tudo e traz pra dentro de si, sem nunca se questionar muito o porquê. Se você não tem alguém que te traga a informação mastigada, vai ter que contar com a sorte e o tempo para amadurecer certas coisas dentro de si mesma, por conta própria. Torço para que as experiências sejam as menos dolorosas possíveis, para que esse caminho até a consciência seja natural, e não imposto ou fruto de alguma experiência ruim. E foi assim que você se tornou quem é, certo?

Eu descobri o feminismo com 22 anos, e percebi que eu tinha um monte de bagunça dentro de mim. Coisas que eu absorvi em casa, na escola, na rua. Elas vinham bombardeadas de todos os lados. Coisas que eu via passando na televisão e lia nas revistas. Mas não era culpa de ninguém, porque é assim que todo mundo foi ensinado a pensar. Minha mãe, minha vó, minha tia. Fomos e ainda somos ensinadas a reproduzir o machismo, mesmo que inconscientemente, quando na verdade não nos beneficiamos em nada com ele, pelo contrário. Como uma imposição social, o arroz e feijão do nosso cotidiano, o básico, aprendemos que ter uma relação boa com o nosso corpo, de sentir prazer e de nos aceitarmos é impossível. Aprendemos que devemos nos dedicar à família antes de nós mesmas, aos afazeres domésticos e a tudo o que for “coisa de menina”. Aprendemos que sair de casa sozinha a noite é perigoso, porque não só devemos temer o assalto, mas devemos temer também o estupro, o assédio. Aprendemos que as outras mulheres são nossas inimigas, são invejosas, são competitivas, traiçoeiras e estarão sempre desejando o nosso fracasso. E quem se beneficia com isso tudo? Os tão privilegiados homens cis. Cis vem de cisgênero, um termo utilizado para se referir à pessoa que se identifica com o gênero que lhe foi designado quando ela nasceu. O homem cis, que é socializado como homem, passa a ter todos os privilégios na sociedade, e passa a ser o opressor. E eu prometo me aprofundar neste assunto em breve.

Mas voltando à bagunça. Um dia você cresce e começa a se perguntar por que guarda tanta coisa que, além de inútil, te faz mal. Não só te faz mal, como faz também para outras mulheres. Mulheres que sofrem diariamente com violência, assédio, estupro. Sofrem sendo inferiorizadas e tratadas como lixo. Que ouvem que seus corpos não estão dentro do padrão, que devem se comportar de tal forma para arranjarem um namorado, que devem fazer isso, e não aquilo. Por que continuar sendo cúmplice do machismo quando se tem essa consciência de que a misoginia mata todos os dias? Por que não quebrar tudo o que você foi ensinada a pensar, mas que na verdade não passa de um grande sistema de controle, onde existe o opressor e o oprimido? Por que não se libertar da opressão, e mais ainda, libertar outras mulheres que são tão vítimas quando você?

Pra mim, a consciência da militância como feminista tornou-se mais do que necessária. Não foi fácil jogar fora toda a bagunça acumulada durante anos. Mas quando eu entendi, eu me tornei livre. Livre para amar as minhas escolhas, livre para amar o meu corpo, livre para fazer o que eu quiser. Livre para não ter que ser julgada pela roupa que eu visto, ou por eu não querer me calar diante de situações que eu antes me calaria. De não abaixar mais a cabeça quando sou assediada na rua, ou de poder escolher o que é bom pra mim, mesmo que isso não esteja nos planos do que a sociedade e a minha família escolheram para mim. Se eu quiser ser mãe e ter uma família, me depilar ou transar no primeiro encontro, eu posso. Se eu não quiser, eu também posso. Ninguém vai confiscar se eu sou mais ou menos feminista, se eu sou mais ou menos mulher por isso ou se eu mereço mais ou menos respeito, porque isso não é da conta de ninguém. Sobre ter que ouvir que “eu preciso me dar ao respeito”, eu não posso me dar nada que eu já tenho, porque ele é meu, independente de qualquer coisa.

Acho que a maior emancipação não é a que acontece quando você está passando da fase da adolescência para a adulta e decide sair da casa do seus pais. A maior emancipação é quando rompemos os laços com quem nós acreditamos ser, quando confrontamos as nossas verdades, e nos damos espaço para enxergar coisas que antes estavam na nossa frente, mas não víamos com tanta clareza. Quando nos permitimos mudar o nosso pensamento, mesmo que isso signifique que nos tornemos uma nova pessoa. Que nos libertamos de correntes que tanto nos fizeram e fazem sofrer, ou passar por situações humilhantes que não precisamos nos sujeitar. E posso dizer que esse é um processo constante. Eu mesma não me livrei de tudo o que eu preciso, mas a consciência é o primeiro e mais importante passo do processo. Vivemos nos policiando para sempre estar nos desconstruindo e aprendendo com as vivências umas das outras. O machismo é um sistema enraizado demais, e a faxina interna da bagunça que insiste em acumular é e deve ser constante.

Infelizmente, “feminismo” ainda tem uma carga pejorativa na palavra. No entanto, com a ajuda de meios como a internet, esta visão negativa está sendo quebrada aos poucos. Conseguimos disseminar mais o conteúdo, que passa a atingir pessoas em larga escala. E o feminismo, diferente do que muita gente pensa, não é o contrário de machismo. O contrário de machismo chama “direitos humanos”. Feminismo é a ideia radical de que mulheres são pessoas, tão merecedoras e capazes quanto os homens. É a ideia radical de que a violência contra a mulher é inaceitável. De que o estupro não é piada. De que não poderão ditar regras em cima dos nossos corpos. E cada mulher pode encontrar o seu espaço dentro da militância feminista. Elas são diferentes entre si, mas uma nunca anula a outra. O que serve pra mim pode não servir pra você, e vice-versa. Eu hoje fico feliz de assumir o meu papel como feminista, de quem se libertou, e tem a necessidade de espalhar isso para o mundo, atingindo todas as pessoas que dele precisarem. E assim, libertar outras mulheres da prisão machista e patriarcal em que somos obrigadas exaustivamente e dolorosamente a viver. Porque nós não precisamos disso. E podemos descobrir isso juntas.

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