Feminismos negros e a renovação política do “Dia Internacional das Mulheres”

Este artigo integra o “Dossiê Feminismo e Política”, do Blog da Boitempo, por ocasião do “Dia Internacional das Mulheres”. A propósito, que outras palavras mais poderiam ser ditas na ambiência desta efeméride? Que fios puxar de um novelo entrelaçado que tece a história das mulheres, particularmente das mulheres negras? O que abordar em tempos de franco retrocesso na legislação brasileira no que diz respeito às questões de gênero, com medidas retrógradas, para dizer o mínimo, que avançam em velocidade de cruzeiro?* Onde afixar a história do feminismo negro na contemporaneidade? Qual o legado e quais as perspectivas que as mulheres negras vêm aportando para a política, em escalas local, regional e global?

Por Rosane Borges Do Blog da Boi Tempo

As respostas a essas questões, ainda que parciais e provisórias, solicitam a tarefa de situarmos a trajetória dos feminismos negros no Brasil e no mundo, delineada por mulheres de várias matizes e procedências que atravessam, ao mesmo tempo em que compõem, a paisagem a ser olhada. Trata-se de um exercício que consiste em assinalar as antecedências e os fundamentos que dão sentido à luta contemporânea, dotando o “8 de março” de um caráter essencialmente político. Em artigo que compõe este Dossiê, intitulado “Às que vieram antes de nós: histórias do Dia Internacional das Mulheres, a escritora e ativista Daniela Lima chama atenção para o esvaziamento de sentido da data, reposicionado o “8 de março” na escala política. Comenta a autora:

“o incêndio da Triangle Shirtwaist Company marcou de forma indelével o mês de março como um momento de se interrogar o passado para retomar o presente de forma crítica. Interrogar não apenas a história das mulheres operárias do início do século XX, mas de todas as mulheres que vieram antes de nós. Nenhuma dessas histórias pode ser apagada.” Não esqueçamos: são vários os acontecimentos que se cruzam, responsáveis por decantar o “Dia Internacional das Mulheres”.

É nesse espírito de recuperação, nessa busca por recobrir porções significativas – já que, como nos lembra Carlos Fuentes, nunca vai haver tempo para a última palavra – do percurso das mulheres que vieram antes de nós com suas demandas, iniciativas, reivindicações, ações mobilizadoras, propósitos, e até com o sacrifício de suas próprias vidas, que o “Dia Internacional das Mulheres” ganha fôlego renovado para retroalimentar, no presente, as formas de intervenção numa atmosfera política densa, em que se desferem duros golpes nas políticas de gênero e sexualidade, conquistadas a duras penas. Uma vez que “nenhuma história pode ser apagada”, como disse Daniela Lima, de que forma trazê-las à superfície, onde ancorá-las de tal modo que integrem o espectro político dos tempos passados e dos nossos dias?

O “episódio” na Triangle Shirtwaist Company, em 1911, em Nova Iorque, uma tragédia que nos mobiliza até hoje (como não poderia deixar de ser diferente), representa, em tons funestos, o ápice da exploração do capitalismo às custas da opressão feminina (“no incêndio morreram 146 trabalhadores, dos quais 17 eram homens e 129 eram mulheres e meninas – 90 delas se jogaram pelas janelas do prédio. A maioria das jovens era imigrante, tinha entre 16 a 24 anos e trabalhava em condições desumanas” [Lima]); compromete-nos com a reatualização das diversas formas de exploração ao redor do mundo com fundamento de gênero. Ao fazê-lo, somos levadas, inevitavelmente, a empreender correlações com outras variáveis de exclusão, com destaque para o racismo, posto que o laço indissolúvel entre gênero e raça, qualificativo de classe social, eixo extremo de diferenciação negativa, nos dá a medida da magnitude da opressão feminina. Esse entrelaçamento nos enreda, sem dúvida, “nas histórias das que vieram antes de nós”, marcadas pelo drama da escravidão.

As opressões que se cruzam

Esse dado insofismável torna ainda mais necessário o exercício de apontamento das antecedências e dos fundamentos da exploração e da opressão por onde se divisa as reivindicações históricas das mulheres negras. Não queremos com isso traçar o marco zero do feminismo no Brasil a partir tão-somente da perspectiva das mulheres negras; focos simultâneos de acontecimentos nos impossibilitam aderir ao “genesismo” (costuma-se dizer que “antes do início, há sempre um outro começo para quem procura bem”). Pretende-se, antes, apontar o caráter fundante (e dizer fundante não corresponde dizer marco zero) da relação inescapável entre gênero e raça no contexto brasileiro e da diáspora africana, o que forjou a assunção do feminismo negro, que põe em cheque as concepções universalistas que orientaram as políticas desenhadas para transpor as desigualdades de gênero. A esse respeito, ensina a filósofa e feminista negra Sueli Carneiro:

No Brasil e na América Latina, a violação colonial perpetrada pelos senhores brancos contra as mulheres negras e indígenas e a miscigenação daí resultante está na origem de todas as construções de nossa identidade nacional, estruturando o decantado mito da democracia racial latino-americana, que no Brasil chegou até as últimas consequências. Essa violência sexual colonial é, também, o “cimento” de todas as hierarquias de gênero e raça presentes em nossas sociedades, configurando aquilo que Ângela Gilliam define como “a grande teoria do esperma em nossa formação nacional. As mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferenciada que o discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim como não tem dado conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade feminina das mulheres negras. Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas… Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. (…). (Carneiro, 2001).

Para além da necessidade de conhecermos a história das nossas antecedências, das que vieram antes de nós, (relembremos o livro organizado pela médica e feminista negra, Jurema Werneck: O livro de saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe), o texto de Sueli Carneiro evidencia o caráter radical (no sentido etimológico do termo) dos feminismos negros na exata medida em que desde sempre se constituíram interrogando os princípios que regeram a política moderna e não apenas reivindicando participação nela. Um ligeiro paralelo com o movimento feminista nos presta serviço.

O rico patrimônio teórico-político acumulado pelo movimento feminista (o que deu a ele o atributo de vitorioso, em virtude de ter abalado, no século XX, os alicerces profundos das normas e códigos que regiam o espaço público e privado) foi se acumulando a partir do chamadofeminismo liberal, filho indesejável da Revolução Francesa. Muitas mulheres passaram a denunciar o projeto iluminista em seu escopo excludente (os homens continuavam tendo primazia no jogo social). É amplamente conhecida a obra de Mary Wollstonecraft, Reivindicação dos direitos da mulher (1792), onde põe em xeque a inferioridade das mulheres face aos homens. Na busca por um sistema equânime, o principal propósito do feminismo liberal era aperfeiçoar o projeto igualitário iluminista, reivindicando a inclusão das mulheres na nova ordem social que suplantou o absolutismo monárquico.

O feminismo marxista põe em cena as disparidades de classe, fomentadas pelo desenvolvimento do capitalismo via Revolução Industrial. Alexandra Kollontai, uma das principais representantes dessa linhagem, propugnava que somente o socialismo poderia oferecer condições ideais de trabalho para as mulheres, com direitos econômicos e sociais, civis e políticos assegurados. A economia e o mundo do trabalho eram a causa da subordinação feminina.

Já o chamado feminismo radical ganha proeminência em torno dos anos 1970. O termo “radical” vem da crença de que a “raiz” da dominação masculina se justificaria pela vigência do patriarcado. Tendo como uma de suas principais representantes a filósofa Simone de Beauvoir, o feminismo radical considera o patriarcado uma ideologia que organiza o mundo dicotomicamente, supervalorizando atributos “supostamente masculinos” e subvalorizando os “supostamente femininos”. Em suma, o patriarcado atribui uma natureza inferior e inalterável às mulheres.

Retomando: onde situar a história dos feminismos negros nesse painel apresentado de forma assaz resumida? O feminismo negro requer uma espécie de compreensão e explicação algo afastadas dos preceitos do iluminismo moderno, denunciando as formas de exploração e opressão dos corpos que valem mais ou valem menos segundo a lógica da escravidão que funcionou como um organizador das desigualdades que até hoje se perpetuam. O feminismo negro antecipa, assim, uma crítica radical a um modelo (capitalista-eurocêntrico-judaico-cristão) em que, desde os primórdios, as mulheres negras não tiveram espaço.

O Bem Viver como renovação de uma agenda que se desdobra ao longo do tempo

A conquista de espaços, o ingresso do par gênero-raça na institucionalidade da vida nacional não é possível sem a implosão daqueles modelos que, per se, não comportavam as identidades e trajetórias múltiplas de grupos raciais não hegemônicos. Não foi, portanto, mero jogo de palavras a escolha do tema da Marcha das Mulheres Negras 2015: “Contra o racismo e pelo Bem-Viver (a expressão Bem Viver tem origem política nas tradições indígenas e aproxima-se de metáforas fundantes do ideal de vida plena em contraposição a propostas desenvolvimentistas). O sloganrenova uma agenda em que mulheres negras de todo o Brasil marcharam em nome de um novo contrato social, um novo pacto civilizatório. Inspiradas em paradigmas que se orientam por outra gramática política, responsável por um reordenamento sociorracial equilibrado, capaz de acolher saberes, práticas e experiências até então ignorados pelas dominantes configurações do político,essas mulheres apresentaram um Projeto de/para o país. No documento expandido da Marcha, afirma-se: “A nossa trajetória nos autoriza a propor outros modos de vida. […]. Não compactuamos com modelos de desenvolvimento e conceitos que deixam para trás 49 milhões de brasileiras.” Nem hoje, nem ontem.

As reações às formas de exclusão perfazem um arco pontilhado de referências que evocamos para não perdermos as balizas políticas que dão sentido ao “8 de março”. Recordemos algumas delas: Sojourner Truth, ex-escravizada que se notabilizou por proferir discurso intitulado “E eu não sou uma mulher?” na Convenção dos Direitos das Mulheres em Ohio, em 1851; Rosa Parks(que se recusou a levantar do lugar reservado para brancos em ônibus na época da segregação racial norte-americana); Maria Firmina dos Reis (ex-escravizada, primeira romancista brasileira);Antonieta de Barros (primeira deputada negra brasileira), lideranças religiosas e políticas, donas de casa que em seu ritual diário estabelecem outros modos de concepção do espaço privado (“nada é mais perturbador que os movimentos incessantes do que parece imóvel”)… mulheres que suscitam acontecimentos capazes de engendrar outras temporalidades. Se é ao “nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência”, essas e outras referências nos mostram, junto com as operárias do final do século XIX e início do século XX, as mulheres indígenas e trabalhadoras rurais que é possível apostar num mundo melhor. Que o dia de hoje sirva para nos lembrar disso!

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