Feministas heterossexuais são hipócritas?

Por se tratar de um assunto extremamente delicado e cheio de nuances, como todas as expressões da humanidade, algumas coisas precisam ser ditas preliminarmente. Esse texto não tem como pretensão definir de onde vem a sexualidade humana: se ela é uma união de conceitos biológicos, políticos e sociais, ou uma pré-disposição trabalhada no decorrer da vida do ser humano ou até mesmo um completo fruto de socialização. Esse texto tem como motivação questionar o conceito de que “toda feminista precisa ser lésbica” ou a ideia de que feministas heterossexuais estariam envoltas em hipocrisia enquanto questionam os padrões da relação heterossexual pré-estabelecidos pela sociedade misógina atual. E incitar reflexões acerca do padrão heterossexual existente e dos limites da sexualidade humana.

Por Maria Clara Bubna, do Medium 

É um assunto polêmico. É uma pauta que vai englobar questões de extremas sutilezas, intimidades, vontades e doutrinações. Diante de toda complexidade, ela se transforma em algo ainda mais “tenso” quando uma parcela de pessoas, envolvidas no feminismo ou não, questiona: se feministas reconhecem que relações entre homens e mulheres são abusivas, então por que são heterossexuais? Essa pauta necessita de cautela e para isso existe esse texto: trabalhar as exigências sobre as orientações sexuais e seus limites sob uma ótica materialista.

Nos últimos anos, muito se discutiu sobre o termo “opção sexual”. Entendeu-se que a sexualidade de um indivíduo não se trata de uma escolha livre e consciente, mas sim de algo que 1 — se nasceu com a pessoa ou 2 — foi imposto através da socialização do indivíduo que ele deveria seguir tal sexualidade ao invés de outra. Dessa forma, aboliu-se a expressão “opção sexual” e hoje o termo utilizado e melhor aceito é orientação sexual.

Levando isso em consideração, já parte-se do pressuposto que nenhuma mulher OPTA conscientemente por ser lésbica ou heterossexual. (Há a discussão sobre lesbiandade política, entretanto é um ponto que gera severas discordâncias e não há a pretensão de trabalha-lo aqui). O que se pode considerar e é reconhecido por muitas feministas radicais-materialistas que analisam as relações é a HETEROSSEXUALIDADE COMPULSÓRIA, termo trabalhado pela estadunidense Adrienne Rich no livro ‘Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence’, de 1980.

Em um resumo, a heterossexualidade compulsória assume que há na sociedade um sistema que força os indivíduos a seguirem o conceito sexual de homem-mulher como “único caminho possível e correto”. A heterossexualidade compulsória é, como o próprio nome diz, algo que força outrem a seguir o padrão heterossexual pré-imposto.

Ninguém decide categoricamente ser forçado a seguir esse padrão. A introdução da heterossexualidade compulsória é muito sutil, ainda assim violenta. O sistema é apresentado e imposto às pessoas desde a primeira infância: os diálogos de familiares dizendo que “o bebê Y será namorado da bebê X”, que “a filhinha será uma linda esposa”. O estímulo para que meninos segurem as mãos de meninas, abracem as meninas, deem “selinhos” nas meninas. Os discursos de que o correto é “crescer, casar e ter filhos”. Durante o desenvolvimento humano dentro da nossa sociedade, o indivíduo acompanha, em sua maioria, a relação dos pais ou de parentes próximos em uniões heterossexuais. E essa relação, também na maioria das vezes, tem como pilares as crenças misóginas de hierarquia do homem sobre a mulher. É assistida atentamente pelas crianças a forma de tratamento do pai sobre a mãe: a imposição de tarefas “femininas” e “masculinas”, o abandono masculino, a responsabilização exacerbada da mulher. Tais expressões de certa forma acabam soando naturais depois de tantos anos de convívio com a sociedade. Quase não se percebe a violência; ela se institucionaliza na família. Família essa padronizada conforme o que se considera “certo” no mundo misógino: o homem como figura central da casa, provedor para mulher e filhos, onde esses últimos devem se submeter ao patriarca e dar o que ele deseja.

Diante de um cenário que molda a sexualidade dos indivíduos, é plenamente compreensível que qualquer outra forma de expressão sexual seja condenada, reprimida e invisibilizada. A família homem-mulher tradicional, isto é, que se encaixa nos moldes comportamentais pré-definidos para homens e mulheres, é lucrativa para o sistema machista. Ela assegura a supremacia masculina e a servidão da mulher. Desafiar esse padrão é desafiar toda uma ordem vigente.

Acontece que muitas, inúmeras mulheres se encontram heterossexuais de forma compulsória, uma vez que foram socializadas no sentido da heterossexualidade ser a única expressão sexual possível. Ora, a maioria das mulheres na sociedade não consegue definir as partes de sua vulva, ou muito menos se tocou e masturbou para praticar o auto-conhecimento (ao contrário dos homens, que tem suas sexualidades estimuladas, de modo heterossexual, desde a infância). Imagine se uma mulher pode, livremente, se conhecer e conhecer sua sexualidade, cogitar amar outra mulher, perceber sem amarras de onde vem o seu tesão? Não, ela não pode. A mulher é o ser que deve ser “belo, recato e do lar”, inexpressivo, servente e obediente. É impensável dentro do sistema heterocentrado que ela exerça sua sexualidade de forma livre, muito menos com outra mulher. Duas mulheres juntas desafiam a ideia de que o macho é o ser provedor único de prazer e sustento.

Com esses conceitos em mente, chega-se às questões centrais: toda mulher heterossexual só o é de forma compulsória? Se toda relação heterossexual na nossa sociedade corresponde aos conceitos misóginos de violência masculina e servidão feminina, por que as mulheres são heterossexuais? Por que elas não optam por um celibato?

Como já foi dito acima, sexualidade não é algo que se opta. Não à toa é algo que passou por uma mudança de nomenclatura e atualmente se chama orientação sexual, mudança precisa no termo “opção sexual”. A realidade fática aponta que, assim como a lesbiandade, a heterossexualidade existe e consiste em outra forma de expressão sexual. A heterossexualidade pura e simples não é o problema. O problema é como a heterossexualidade e seu padrão comportamental são impostos e propostos.

Ser heterossexual não é uma livre escolha: assim como pode ser fruto de um apagamento sexual da mulher, pode se tratar de uma realidade inerente da expressão de sexualidade daquela pessoa. Pensando assim, muitas feministas heterossexuais se colocam como críticas do padrão heterossexual vigente: problematizam a hierarquia masculina dentro da relação, questionam o papel da mulher, assumem que homens gozam de privilégios sobre suas companheiras e imputam a responsabilidade por esse sistema à sociedade misógina movida por homens. E isso em momento algum pode ser considerado como “hipocrisia”. O que está sendo feito por essas feministas é uma análise material e fática da realidade vigente, sem rodeios e enfeites.

Feministas lutam. E feministas heterossexuais que convergem com esses conceitos sobre a heterossexualidade compulsória padronizada assumem uma batalha para si próprias de desconstrução dos conceitos de afeto e relação que lhes foram ensinados. Feministas heterossexuais que criticam a heterossexualidade compulsória não estando fazendo isso da boca pra fora; elas explicitam esses pontos porque querem que caia por terra a ideia da relação afetiva-sexual onde o homem deve seguir a padronagem misógina e predatória e a mulher cabe tão-somente o papel de servidão.

Feministas podem ser heterossexuais sem que isso signifique que elas sejam pessoas hipócritas ou fracas. Feministas podem querer derrubar o conceito de heterossexualidade dentro de uma sociedade doente que impõe essa expressão sexual como única possível, e somente se moldada de acordo com as normas. As mulheres precisam ter todo o terreno possível para que lutem contra uma ordem que oprime e destrói todas as mulheres, lésbicas e heterossexuais. Mulheres heterossexuais podem se incomodar com o que é imposto como única realidade para elas, e estas mulheres podem denunciar isso. De forma alguma é algo que pode ser chamado de hipocrisia.

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Maria Clara Bubna

Graduanda em Direito pela UERJ, trabalhando na Defensoria Pública do RJ, feminista radical, militante dos direitos humanos e escritora nas horas ocupadas.

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