“Ficar cega aos 15 anos me transformou para melhor”, diz estudante em relato

A carioca Nathalia Santos, 24 anos, já enfrentou depressão e preconceito: “Mulher, negra e cega no Brasil. Mas não me sinto no direito de negar as características que fazem de mim quem sou”

Por FLÁVIA BEZERRA, da Glamour

“Eu poderia começar este depoimento falando das dificuldades – que não são poucas – de ser mulher, negra e cega no Brasil. Mas não me sinto no direito de negar todas as características que fazem de mim quem sou. Ficar cega aos 15 anos me transformou para melhor: fiquei mais forte, corajosa e otimista. O marco dessa mudança aconteceu em 2004, quando recebi o diagnóstico, aos 12, de retinose pigmentar, distrofia que mata todas as células da retina. Me recordo direitinho: estava com a minha mãe no Hospital do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, onde meu pai trabalha, quando a médica me aconselhou a aprender braile, já que perderia a visão em meses.

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Enquanto minha mãe se deprimia profundamente com a notícia, eu me sentia aliviada. Enfim, tinha o diagnóstico da misteriosa doença que me atrapalhava desde a infância. Ainda no consultório, minha única reação foi pensar em todos os livros e lugares que gostaria de ler e conhecer, antes de o mundo escurecer. E foi justamente o que fiz: em três anos, li mais de 100 livros e decorei todas as ruas do Rio, onde, hoje, vivo com total independência.

O INÍCIO DE TUDO
Voltemos a 1992, ano em que nasci. Naquela época, morava com meus pais e meu irmão mais velho na Cidade Alta, comunidade na zona norte do Rio. Com 6 meses, minha mãe percebeu que eu só respondia aos estímulos visuais, quando eram acompanhados de barulho. Ela então me levou ao hospital e foi tachada de louca, coitadinha. Isso porque eu tinha – e até hoje tenho – os olhos bem vivos. Fisicamente, quase não dá pra perceber que sou cega. Sem falar que nunca houve casos na família e, segundo o histórico da maternidade onde nasci, tudo parecia normal, embora nenhum exame tivesse sido feito.

A verdade é que nasci cega, mas minha visão foi milagrosamente se abrindo. Com pouco mais de 1 ano, tive diagnóstico de miopia e astigmatismo, e passei a usar óculos – que de nada me ajudaram! As memórias que tenho da primeira infância, lá por volta dos 3 anos, são da sala de aula distorcida e cheia de vultos. Ah, e quase não enxergava cores também: tudo sempre foi preto ou branco.

Aos 6, me disseram que eu tinha visão subnormal, doença que diminui drasticamente a visão periférica dos olhos. Na época, além dos vultos, passei a enxergar como se olhasse por um tubo. O jeito foi me virar com 20% da visão!

Não enxergar, mas não ser cega, me incomodava.Quando perdi 100% da visão, senti alívio e não revolta”

Quando meu pai se tornou bombeiro e a situação financeira da família melhorou, tive um tratamento mais eficaz. Só no hospital do quartel, fiz mais de 50 exames antes de ter o diagnóstico da tal retinose. Aproveitei o tempo com a pouca visão para terminar o ensino fundamental, estudar braile, ler todos os livros que queria e, o mais importante, me ambientar à cidade, já me preparando para a independência que tenho hoje. A escuridão total chegou aos 15 anos.

Ainda mais curioso que a doença é o fato de eu ser abordada por váárias pessoas que não acreditam na possibilidade de alguém não sentir medo ou raiva por ficar cega. E juro: eu não senti! Não enxergar, mas não ser cega, era um meio-termo que me incomodava tanto que, quando perdi 100% da visão, senti alívio.

Quer saber o que me incomoda mesmo? Não acreditarem na minha capacidade. Ora as pessoas querem me privar de fazer as coisas, ora querem fazê-las por mim. E isso me dá medo… Meu maior sonho, por exemplo, é ser mãe. E sei que serei ótima! Mas me angustia saber que pessoas próximas podem não considerar isso…

A ADOLESCÊNCIA NO ESCURO
Apesar da cegueira, vivi uma adolescência supernormal e não me privei de fazer nada. Fui pra balada, dormi na casa das amigas, viajei, estudei, levei inúmeras broncas da minha mãe e namorei. Meu primeiro namoro aconteceu aos 16, já cega. Como ele era meu vizinho, tudo foi bem rápido: nos conhecemos, nos apaixonamos e rolou o pedido. Mas só durou só seis meses. Nosso maior empecilho foi a avó dele. Ela sempre foi contra o relacionamento e dava a entender, num preconceito velado, que eu era um atraso na vida dele.

O que eu fiz depois foi mergulhar nos livros! Fiz o ensino médio na Faetec, escola técnica do Rio e, assim que cheguei, me apresentei para todas as salas e mostrei que precisaria de ajuda. Felizmente, a mobilização foi imediata! Em pouco tempo, a escola já tinha até a Sala Inclusão, lugar onde as demandas dos alunos deficientes eram facilmente solucionadas. Esses anos também serviram para meus instintos aflorarem. Hoje, ouço muito bem, meu tato é incrivelmente aguçado e minha percepção da vida é quase paranormal! Vou explicar: quando uma pessoa fala comigo, sei quando ela está virando os olhos. Como sei? Porque não é preciso enxergar para receber os sinais que o corpo produz. Ouço da respiração à maneira como projetam a fala.

O PRECONCEITO
Só não saí da escola com o diploma de técnica em administração, porque o preconceito não permitiu. Juro para vocês que procurei estágio em todas as empresas do Rio, mas a deficiência era sempre posta acima do currículo. Aliás, pouca gente sabe, mas é muito fácil para um cego se adaptar ao ambiente de trabalho. Sabe do que precisamos? De dois programas gratuitos para computador: um leitor de tela e uma adaptação do pacote Office. Contudo, ouvir “não contratamos pessoas como você” tantas vezes me fez muito mal. Tive um início de depressão aos 18 e, pela primeira vez, duvidei da minha capacidade.

1 – Nath com Naomi Campbell em ensaio para a Vogue. 2 – Com a diva Taís Araújo durante painel do “Elas por Elas”, que rolou no mês passado, no Rio

Até que, em fevereiro de 2012, fui na gravação do Esquenta! e tudo mudou. Em um dos programas, Regina Casé perguntou à plateia quem sabia ler braile e levantei a mão. Ela não só se emocionou com a minha história (e ficou surpresa com meus olhos vivos) como me deu a maior oportunidade da vida: trabalhar na sua produção. Comecei na semana seguinte e só saí de lá quando o programa terminou.

A experiência foi tão incrível que me motivou a estudar jornalismo. Passei no vestibular com excelência, ganhei uma bolsa e comecei a faculdade em janeiro de 2013. O triste é que foi justamente lá que vivi o pior momento da minha vida: um sequestro relâmpago. Fui abordada na saída do elevador por cinco pessoas. Elas me levaram para um canto, esconderam minha bengala e me ameaçaram, dizendo que fariam da minha vida um inferno. Não vou mentir: aquilo me desestruturou. Tanto que só contei para a família duas semanas depois. Fomos à diretoria, denunciamos e pedimos as imagens das câmeras de segurança. Mas elas não guardavam registro! O que sobrou foram as palavras de uma aluna negra e bolsista frente a uma renomada instituição de ensino. Chateada, me transferi para outra faculdade.

Ser feliz, mesmo com todas as dificulades, é uma escolha”

A FELICIDADE É UMA ESCOLHA
A real é que, quando me formar, neste ano, serei a primeira da família a ter um diploma universitário – e essa vitória é maior do que qualquer doença ou preconceito. Eu amo a vida e tudo que faz parte dela! Talvez até seja por isso que, para mim, enxergar não seja tão fundamental. Arrumo meu cabelo, faço meu próprio make, ando de bicicleta, vou ao cinema…

Recentemente, fiz um canal no YouTube, o Como Assim Cega?. Nele, respondo dúvidas de jovens cegos como eu e das pessoas que convivem com eles. Ajudá-los me realiza. Óbvio que ainda tenho muitos sonhos (trabalhar como jornalista é um deles), mas sei que não existe receita mágica para a felicidade. Ser feliz, mesmo com as dificuldades, é uma escolha.

BELEZA: MISS EMANUELLE; MODA: MARINA BRUM E ALINE DIAS. AGRADECIMENTO: HOTEL GRAN MELIÁ NACIONAL (RJ).

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