A força da escravidão: Ilegalidade e costume no Brasil oitocentista

Por Sidney Chalhoub

1. O grande medo de 1852 (à guisa de introdução)

Primeiro de janeiro de 1852. Naquele dia entraria em vigor um decreto do governo imperial, de 18 de junho do ano anterior, que instituía em todo o país o registro obrigatório de nascimentos e óbitos. Por outro decreto, datado do mesmo dia, determinava‐se a realização de um recenseamento geral do Império, marcando‐se para junho e julho de 1852 um cronograma dos trabalhos de distribuição, preenchimento e recolhimento das listas de família. Os dois decretos constituíam um pacote, iniciativa do governo para reunir dados copiosos e confiáveis sobre a população do país, dos quais carecia a administração desde sempre.1
Quanto a procedimentos, o decreto do registro civil de nas‐ cimentos e óbitos mandava fazer os assentamentos nos juízos de paz, a cargo dos escrivães respectivos, em livros próprios para cada finalidade. No caso dos recém‐nascidos de condição livre, devia‐se anotar data, hora e lugar do nascimento, nome, sexo, nomes dos pais em caso de filho legítimo, só da mãe não o sendo, de ambos se o pai reconhecesse o rebento no próprio ato do registro. No que tange a crianças escravas, quase tudo igual, salvo pelo lançamento do nome do proprietário, a cor do recém‐nascido e, se concedida a liberdade, isto mesmo se declararia no ato. Controversa se mostrou a exigência de que os párocos só ministrassem o sacramento do batismo mediante a apresentação, pelo responsável, do registro de nascimento, que ademais havia de estar feito “no prazo de dez dias depois de dado à luz o recém‐nascido”. Nos óbitos, uma penca de informações — data e lugar do falecimento, nome, idade, estado civil, naturalidade, profissão, domicílio, nome dos pais, do cônjuge, a doença de que faleceu, se deixou testamen‐ to etc. —, mas o que pareceu preocupar as pessoas foi o requisito da certidão de óbito para que os administradores dos cemitérios ou “campos‐santos” dessem sepultura aos cadáveres.
Em vez da execução do decreto do registro civil obrigatório, o que se viu em janeiro de 1852 foi um pandemônio, uma verdadeira “calamidade”, segundo a perspectiva das autoridades públi‐ cas que redigiram os relatos de que dispomos sobre os acontecimentos — delegados e subdelegados, juízes de paz, juízes de direito, comandantes militares, clérigos, presidentes de província, ministros.2 O “povo” se levantou em boa parte do Império. Mo‐ tins importantes se espalharam pelas províncias de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe, mais episódios localizados no Ceará e Minas Gerais, além de apreensão e alerta geral no resto do país, a ponto de o governo recuar rapidamente e suspender a execução dos dois decretos em 29 de janeiro.
A população agiu de forma deliberada para obstar a entrada em vigor da exigência dos registros. Conforme os usos do tempo, novas leis eram anunciadas pelos vigários nas missas dominicais. Os amotinados vigiaram os emissários e a correspondência destinada aos municípios para arrebatar os textos dos decretos antes que chegassem ao seu destino. Grupos armados — homens e mulheres — invadiram as igrejas durante as missas para intimidar os padres e impedir a leitura da lei do registro civil. Escrivães e juízes de paz se viram ameaçados, às vezes perseguidos e agredidos, pois seriam eles os responsáveis pelos assentamentos. Autori‐ dades policiais foram desarmadas e trancafiadas nas cadeias. Dezenas de amotinados se juntavam para promover correrias em vilas, atacar engenhos pertencentes às autoridades locais. Escon‐ diam‐se nas matas, agrupavam‐se às vezes nos centros das vilas, centenas deles, chegou‐se a mencionar ajuntamento de mil pessoas.

A refrega durou semanas, numa espécie de combate itine‐ rante e intermitente, de uma comarca a outra, de uma província a outra, rebeldia em movimento, descentralizada, massa rebelde sem liderança aparente, porém determinada a fazer o que houvesse para impedir os registros obrigatórios de nascimento e óbi‐ to. Da parte dos governos provinciais, mobilizaram‐se tropas policiais, batalhões de infantaria e artilharia e destacamentos da Guarda Nacional, além da ajuda de missionários capuchinhos, que se dispuseram a ir ao encontro dos “turbulentos”, pregaram, rezaram, conversaram, lograram evitar maior truculência na ação das forças de repressão. Após um mês, parecia difícil contar os mortos e feridos. Havia uma dúzia de mortos em Pernambuco, alguns outros na Paraíba, em Alagoas, autoridades e militares entre eles, mas parecia difícil distinguir entre vítimas diretamente ligadas aos motins contra os decretos e outras, que logo se soma‐ ram às primeiras, associadas a acertos de contas pessoais e outros crimes ocorridos na esteira do colapso do aparato repressivo local, pois haviam se tornado corriqueiras as notícias de subdelegados e juízes de paz em debandada.

1. O grande medo de 1852 (à guisa de introdução) …………. 13

2. Escravismo ……………………………………………………………….. 33

3. Sob o domínio da ilegalidade …………………………………….. 45

4. Modos de silenciar e de não ver …………………………………. 71

5. Em 1850, a precisão de calar sobre 1831 ……………………… 109

6. O que os escravos sabiam ………………………………………….. 141

7. O que os ingleses viam ………………………………………………. 175

8. Que se cumpra a lei …………………………………………………… 211

9. Liberdade precária ……………………………………………………. 227

10. Machado de Assis (remate) ……………………………………….. 277

Baixe o PDF
A força da escravidão Ilegalidade e costume no Brasil oitocentista


Copyright © 2012 by Sidney Chalhoub
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009. Capa
Mariana Newlands
Foto de capa
Fotografia de Georges Leuzinger. Secagem de café na fazenda de Quititi, em Jacarepaguá. Rio de Janeiro, c. 1865. Museu Imperial/ IBRAM/ MinC.
Foto de quarta capa
Fotografia de Militão Augusto de Azevedo. Senhor com seus escravos. Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo.
Preparação
Cacilda Guerra
Índice remissivo
Luciano Marchiori
Revisão
Adriana Cristina Bairrada Ana Luiza Couto
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Chalhoub, Sidney
A força da escravidão : ilegalidade e costume no Brasil oito‐
centista / Sidney Chalhoub. — 1a ed. — São Paulo : Companhia das Letras, 2012.
Bibliografia
isbn 978-85-359-2141-0
1. Abolição – Leis e legislação – Brasil 2. Brasil – História – Im‐ pério, 1822-1889 3. Escravidão – Brasil – História 4. Escravos – Trá‐ fico – Brasil – História 5. História social 6. Ilegalidade i. Título.
cdd‐981.04 1. Proibição do tráfico africano de escravos : Lei de 7 de
12-07395
Índice para catálogo sistemático: novembro de 1831 : Brasil : Império : História Social
[2012]
Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz s.a.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 — São Paulo — sp
Telefone: (11) 3707-3500
Fax: (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br

Fonte: Companhia das Letras

+ sobre o tema

Depoimentos de Escravos Brasileiros

Em julho de 1982, o estudante de história Fernando...

Arqueólogos acham peças de engenho de 1580 em São Paulo

Descoberta ajuda a documento o início do ciclo da...

Lei do Ventre Livre

A Lei do Ventre Livre determinava que os filhos...

Escravatura: Como ensinar um tema tabu às gerações futuras?

Os filmes tentaram muitas vezes descrever a história da...

para lembrar

O crime da água dos irmãos Rebouças

Depois de participarem da Guerra do Paraguai, de criarem...

13 de Maio: Alexandre Braga – A segunda abolição

A segunda abolição O Brasil não foi o último país...

Escravidão persiste no Brasil: 283 pessoas libertas somente em 2013

Entre 1995 e 2012, quase 45 mil trabalhadores foram...

Olodum: princesa Isabel não é heroína da abolição

Fundador do grupo Olodum, João Jorge Rodrigues, disse que...
spot_imgspot_img

Dia de Martin Luther King: 6 filmes para entender sua importância nos EUA

O dia de Martin Luther King Jr. é um feriado nacional nos Estados Unidos, celebrado toda terceira segunda-feira do mês de janeiro. Neste ano,...

Luiza Mahin: a mulher que virou mito da força negra feminina

Não há nenhum registro conhecido sobre Luiza Mahin, mulher que possivelmente viveu na primeira metade do século 19, que seja anterior a uma carta...

“Quarto de Despejo”, clássico de Carolina Maria de Jesus, vai ganhar filme

Vivendo de maneira independente, ela optou por não se casar, dedicou-se à costura, tocava violão e escrevia livros que ilustram como jovens negras, nascidas em favelas...
-+=