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Frantz Fanon – Pele negra máscaras brancas

Tradução de Renato da Silveira Prefácio de Lewis R. Gordon

Falo de milhões de homens em quem deliberadamente inculcaram o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, a prostração, o desespero, o servilismo.

( Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo)

******************

A explosão não vai acontecer hoje. Ainda é muito cedo… ou tarde demais.
Não venho armado de verdades decisivas.
Minha consciência não é dotada de fulgurâncias essenciais. Entretanto, com toda a serenidade, penso que é bom que certas coisas
sejam ditas.
Essas coisas, vou dizê-las, não gritá-las. Pois há muito tempo que o
grito não faz mais parte de minha vida.

Faz tanto tempo…
Por que escrever esta obra? Ninguém a solicitou.
E muito menos aqueles a quem ela se destina.
E então? Então, calmamente, respondo que há imbecis demais neste
mundo. E já que o digo, vou tentar prová-lo. Em direção a um novo humanismo…
À compreensão dos homens… 

Nossos irmãos de cor…
Creio em ti, Homem…
O preconceito de raça…
Compreender e amar…

De todos os lados, sou assediado por dezenas e centenas de páginas que tentam impor-se a mim. Entretanto, uma só linha seria suficiente. Uma única resposta a dar e o problema do negro seria destituído de sua importância.

Que quer o homem?
Que quer o homem negro?
Mesmo expondo-me ao ressentimento de meus irmãos de cor, direi

que o negro não é um homem.

Há uma zona de não-ser, uma região extraordinariamente estéril e árida, uma rampa essencialmente despojada, onde um autêntico ressurgimento pode acontecer. A maioria dos negros não desfruta do benefício de realizar esta descida aos verdadeiros Infernos.

O homem não é apenas possibilidade de recomeço, de negação. Se é verdade que a consciência é atividade transcendental, devemos saber também que essa transcendência é assolada pelo problema do amor e da compreensão. O homem é um SIM vibrando com as harmonias cósmicas. Desenraizado, disperso, confuso, condenado a ver se dissolverem, uma após as outras, as verdades que elaborou, é obrigado a deixar de projetar no mundo uma antinomia que lhe é inerente.

O negro é um homem negro; isto quer dizer que, devido a uma série de aberrações afetivas, ele se estabeleceu no seio de um universo de onde será preciso retirá-lo.

O problema é muito importante. Pretendemos, nada mais nada menos, liberar o homem de cor de si próprio. Avançaremos lentamente, pois existem dois campos: o branco e o negro.

Tenazmente, questionaremos as duas metafísicas e veremos que elas são freqüentemente muito destrutivas.

Não sentiremos nenhuma piedade dos antigos governantes, dos antigos missionários. Para nós, aquele que adora o preto é tão “doente” quanto aquele que o execra.

Inversamente, o negro que quer embranquecer a raça é tão infeliz quanto aquele que prega o ódio ao branco.

Em termos absolutos, o negro não é mais amável do que o tcheco, na verdade trata-se de deixar o homem livre.

Este livro deveria ter sido escrito há três anos… Mas então as verdades nos queimavam. Hoje elas podem ser ditas sem excitação. Essas verdades não precisam ser jogadas na cara dos homens. Elas não pretendem entusiasmar. Nós desconfiamos do entusiasmo. Cada vez que o entusiasmo aflorou em algum lugar, anunciou o fogo, a fome, a miséria… E também o desprezo pelo homem.

O entusiasmo é, por excelência, a arma dos impotentes. Daqueles que esquentam o ferro para malhá-lo imediatamente. Nós pretendemos aquecer a carcaça do homem e deixá-lo livre. Talvez assim cheguemos a este resultado: o Homem mantendo o fogo por autocombustão.

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O Homem liberado do trampolim constituído pela resistência dos outros, ferindo na própria carne para encontrar um sentido para si.

Apenas alguns dos nossos leitores poderão avaliar as dificuldades que encontramos na redação deste livro.

Em uma época em que a dúvida cética tomou conta do mundo, em que, segundo os dizeres de um bando de cínicos, não é mais possível distinguir o senso do contra-senso, torna-se complicado descer a um nível onde as categorias de senso e contra-senso ainda não são utilizadas.

O negro quer ser branco. O branco incita-se a assumir a condição de ser humano.

Veremos, ao longo desta obra, elaborar-se uma tentativa de compreensão da relação entre o negro e o branco.

O branco está fechado na sua brancura.
O negro na sua negrura.
Tentaremos determinar as tendências desse duplo narcisismo e as

motivações que ele implica.
No início de nossas reflexões, pareceu-nos inoportuno explicitar as

conclusões que serão apresentadas em seguida.
Nossos esforços foram guiados apenas pela preocupação de por fim

a um círculo vicioso.
Mas também é um fato: alguns negros querem, custe o que custar,

demonstrar aos brancos a riqueza do seu pensamento, a potência respeitável do seu espírito.

Como sair do impasse?

Há pouco utilizamos o termo narcisismo. Na verdade, pensamos que só uma interpretação psicanalítica do problema negro pode revelar as anomalias afetivas responsáveis pela estrutura dos complexos. Trabalhamos para a dissolução total desse universo mórbido. Estimamos que o indivíduo deve tender ao universalismo inerente à condição humana. Ao pretendermos isto, pensamos indiferentemente em homens como Gobineau ou em mulheres como Mayotte Capécia. Mas, para se chegar a esta solução, é urgente a neutralização de uma série de taras, seqüelas do período infantil.

A infelicidade do homem, já dizia Nietzsche, é ter sido criança. Entretanto não podemos esquecer, como lembra Charles Odier, que o destino do neurótico está nas suas próprias mãos.

Por mais dolorosa que possa ser esta constatação, somos obrigados a fazê-la: para o negro, há apenas um destino. E ele é branco.

Antes de abrir o dossiê, queremos dizer certas coisas. A análise que empreendemos é psicológica. No entanto, permanece evidente que a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais. Só há complexo de inferioridade após um duplo processo:

— inicialmente econômico;

— em seguida pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade.

Reagindo contra a tendência constitucionalista em psicologia do fim do século XIX, Freud, através da psicanálise, exigiu que fosse levado em consideração o fator individual. Ele substituiu a tese filogenética pela perspectiva ontogenética. Veremos que a alienação do negro não é apenas uma questão individual. Ao lado da filogenia e da ontogenia, há a sociogenia. De certo modo, para responder à exigência de Leconte e Damey, digamos que o que pretendemos aqui é estabelecer um sócio- diagnóstico.1

Qual o prognóstico?

A Sociedade, ao contrário dos processos bioquímicos, não escapa à influência humana. É pelo homem que a Sociedade chega ao ser. O prognóstico está nas mãos daqueles que quiserem sacudir as raízes contaminadas do edifício.

O negro deve conduzir sua luta em dois planos: uma vez que, historicamente, ele se condicionou, toda liberação unilateral seria imperfeita, mas o pior erro seria acreditar em uma dependência automática. Os fatos, além do mais, se opõem a tal tendência sistemática. Nós o demonstraremos.

De uma vez por todas, a realidade exige uma compreensão total. No plano objetivo como no plano subjetivo, uma solução deve ser encontrada. E é inútil vir com ares de mea culpa, proclamando que o que importa é salvar a alma.

Só haverá uma autêntica desalienação na medida em que as coisas, no sentido o mais materialista, tenham tomado os seus devidos lugares. É de bom tom preceder uma obra de psicologia por uma tomada de posição metodológica. Fugiremos à regra. Deixaremos os métodos para os botânicos e os matemáticos. Existe um ponto em que os métodos se dissolvem. Gostaríamos de tomar posição sobre este ponto. Tentaremos descobrir as diferentes posições que o preto adota diante da civilização branca. Aqui, o “selvagem do mato” não será levado em consideração. É que, para ele, certos elementos ainda não se tornaram significativos. Diante da convivência das raças branca e negra, pensamos que existe uma assunção em massa de um complexo psicoexistencial. Ao analisá-lo, visamos a sua destruição.
Muitos pretos não se reconhecerão nas linhas que se seguem. Muitos brancos, igualmente.
Mas o fato de que eu me sinta estranho ao mundo do esquizofrênico,

ou do impotente sexual, em nada muda a realidade deles.
As atitudes que me proponho a descrever são verdadeiras. Eu as encontrei um número incalculável de vezes.
Entre os estudantes, os operários, os cafetões de Pigalle ou de Marselha, identifiquei a mesma componente de agressividade e de passividade.

Esta obra é um estudo clínico. Acredito que aqueles que com ela se identificarem terão dado um passo à frente. Quero sinceramente levar meu irmão negro ou branco a sacudir energicamente o lamentável uniforme tecido durante séculos de incompreensão.

A arquitetura do presente trabalho situa-se na temporalidade. Todo problema humano exige ser considerado a partir do tempo. Sendo ideal que o presente sempre sirva para construir o futuro.

E esse futuro não é cósmico, é o do meu século, do meu país, da minha existência. De modo algum pretendo preparar o mundo que me sucederá. Pertenço irredutivelmente a minha época.

E é para ela que devo viver. O futuro deve ser uma construção sustentável do homem existente. Esta edificação se liga ao presente, na medida em que coloco-o como algo a ser superado.

Os três primeiros capítulos tratarão do preto moderno. Abordo o negro atual e tento determinar suas atitudes no mundo branco. Os dois últimos são consagrados a uma tentativa de explicação psicopatológica e filosófica do existir do negro. *

A análise é sobretudo regressiva.

Os quarto e quinto capítulos situam-se em um plano essencialmente diferente.

No quarto capítulo critico um trabalho que, na minha opinião, é perigoso. O autor, O. Mannoni, está aliás consciente da ambigüidade de sua posição. E isto é talvez um dos méritos de seu testemunho. Ele tentou prestar contas de uma situação. Tenho o direito de declarar minha insatisfação. Tenho o dever de mostrar ao autor o que não me satisfaz no seu trabalho.2

O quinto capítulo, que intitulei “A experiência vivida do negro”, é importante por várias razões. Ele mostra o preto diante de sua raça. Perceberemos que não há nada em comum entre o preto deste capítulo e aquele que procura dormir com a branca. Encontramos nesse último um desejo de ser branco. Uma sede de vingança, em último caso. Aqui, ao contrário, assistiremos aos esforços desesperados de um preto que luta para descobrir o sentido da identidade negra. A civilização branca, a cultura européia, impuseram ao negro um desvio existencial. Mostraremos, em outra parte, que aquilo que se chama de alma negra é freqüentemente uma construção do branco.

O negro “evoluído”, escravo do mito negro, espontâneo, cósmico, a um dado momento sente que sua raça não o compreende mais.**

Ou que ele não a compreende mais.

Então ele felicita-se disso e, desenvolvendo essa diferença, essa incompreensão, essa desarmonia, encontra o sentido de sua verdadeira humanidade. Ou, mais raramente, ele quer ser de seu povo. E é com a raiva nos lábios e a vertigem no coração que ele se joga no grande buraco negro. Veremos que esta atitude, tão absolutamente bela, rejeita a atualidade e o devir em nome de um passado místico.

Por ser antilhano de origem, nossas observações e conclusões só são válidas para as Antilhas – pelo menos nas partes que tratam do negro em sua terra. Um estudo deveria ser dedicado à explicação das divergências que existem entre antilhanos e africanos. Talvez o façamos um dia. Pode ser também que ele se torne inútil, do que não poderíamos senão tirar motivo de satisfação.

 

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