Game of Thrones e o estupro

[SPOILER] O último episódio de Game of Thrones, transmitido aqui no Brasil no último domingo, terminou com uma cena violenta e pertubadora. Críticas não faltaram e, claro, muita confusão sobre o que nós, mulheres, estamos reclamando. Vou tentar esclarecer alguns pontos sobre o que tem sido dito por aí.

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Por , do Lugar de Mulher 

Para quem não assiste, eis o que aconteceu:

 

Sansa Stark e Ramsay Bolton, cuja família matou sua mãe e irmão mais velho, se casam. Na noite de núpcias, ela é forçada a fazer sexo sob o olhar de Theon Greyjoy, amigo de infância e traidor da família Stark – e que está traumatizado pelas torturas feitas por Ramsay.

 

“Mas é parte da história”

 

Não, não é.

Nos livros, a Sansa nunca se casa com essa pessoa. Existe uma outra personagem, fingindo ser a irmã dela, que se casa com ele e é vítima de violência. Sansa é uma personagem feminina que estava num canto e foi jogada para outro para simplesmente repetir o arco de conviver com um sociopata. Mudaram a história de cabeça para baixo para ela sofrer novos abusos, chocar e causar essas polêmicas.

 

“Então o problema é terem mudado as coisas do livro? Isso sempre acontece”

 

Claro que não. A série não precisa ser fiel. Mas não tem como não perceber essa tendência dos roteiristas de mudar a história de três personagens femininas (até agora) para elas sofrerem abuso sexual. Por que, no livro, Khaleesi não é estuprada pelo Drogo, assim como Jaime também não insiste em fazer sexo com a irmã depois dela dizer “não” mais de uma vez.

Então a questão principal é: por que os roteiristas de Game of Thrones precisam constantemente provar o valor das mulheres com esse plot?

 

“Eles retratam a época medieval, e nessa época era assim”

 

Sim, e o livro também retrata essa época e, como já citado acima, elas não foram estupradas na história original. Talvez você esteja normalizando o ato, viu.

 

“Agora não pode mais ter violência sexual em obras de ficção?”

 

Ninguém disse isso. Inclusive já elogiei duas séries aqui, The Fall e Lei e Ordem: SVU, que falam sobre violência sexual em quase todos os episódios. A diferença é que não é feito só para chocar.

Em GoT, várias personagens são inseridas, inventadas e mostradas apenas para ser um enfeite, um objeto ou cumprir a cota de nudez da semana. Sem propósito, sem motivo. Reitero: o problema não é a nudez, a violência ou o sexo. Mas o motivo.

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“É necessário para demonstrar como Ramsay é doentio, perigoso e psicopata”

 

Alguém tinha alguma dúvida disso? Toda a tortura que ele submeteu ao Theon, as mortes aos inimigos rendidos, a caça que ele fez quando ficou entediado com uma mulher, tudo isso já não mostrou o quão podre ele é por dentro? É realmente necessário mostrar cruelmente essa cena?

 

“Desde o primeiro episódio existem cenas violentas”

 

Sim, desde quando Jaime e Cersei transam consensualmente e ele atira Bran da janela, o que inicia com várias das tramas do futuro. Não é bonito, não é legal, mas é importante para a trama, não é gratuito. O que acontece hoje é a falta de tempo para desenvolver as histórias. Os Sparrows chegam em King’s Landing e, do nada, estão mandando em todos. Dorne é um lugar novo sensacional para ser explorado e está sendo retratado o mais porcamente possível. Os livros são imensos, são só dez episódios, falta tempo. Ok, então por que inventar uma trama do nada, repetindo os mesmos plots e gastar tempo de tela mostrando a ação? Por que choca, apenas isso.

Da mesma forma, esses estupros gratuitos que não estavam no livro e não tiveram relevância para a trama posterior. Os autores de Game of Thrones usam estupro como um recurso de ficção para o choque vazio.

O arco de “redenção” da Sansa, em vez de ser por esperteza, se torna por violência. Ou alguém agora irá lembrar do quanto ela aprendeu, cresceu e virou forte nesse tempo? Não, é mais fácil usar estupro como se usa vírgula para criar histórias.

 

“Não foi estupro, foi escolha dela casar com o Ramsay”

 

Amigo, se você realmente acha que uma aliança e um ritual garantem sexo a hora que você quiser, independente do que a outra pessoa queira/pense, devo dizer que você não sabe bem como funcionam as coisas.

 

“Ai, mas vocês estão polemizando discutindo sobre uma série”

 

Sim, Fiscal de Debates, discutimos uma série popular, fenômeno cultural mundial e motivo de muita conversa e discussão. Ah, e isso não impede ninguém de se preocupar com os direitos das mulheres no oriente médio. Dá tempo para tudo.

 

“Ah, mas ela merece sofrer por ter traído o pai”

 

Ou seja, uma adolescente mereceu ser estuprada por um erro que ela cometeu aos 12 anos? Isso nem diz mais respeito à série, fala sobre sobre o seu caráter mesmo.

E sim, tem gente irritado com as mudanças na história e largando a série. Isso não é nem boicote, só reflete a insatisfação pessoal, talvez por não ser o público alvo de uma história que anda mais preocupada em usar a violência sexual como fetiche do que em trazer histórias boas.

Vale lembrar que na temporada anterior ocorreu um claro estupro (personagem diz NÃO e PARE e o outro personagem diz “EU NÃO LIGO”) e os roteiristas NEGARAM, falando que havia sido consensual.

 

“Ah, as feminazi estão estragando toda a diversão”

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Para quem é fã dos livros (como eu!), aqui rola uma compilação das várias vezes em que a série mudou ou retirou tramas importantes com personagens femininas nessa série.

 

 

 

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