Joice Berth

Um belo dia (ok não tão belo assim!) em uma conversa com o meu ex-marido, ouvi uma afirmação a meu respeito que me deixou preocupada. Ele afirmou que eu parecia com meu pai, com quem minha relação nunca foi muito boa. Reclamou sutilmente da minha personalidade forte e eu não soube o que dizer. Eu simplesmente aceitei o que ouvi, com dor e espanto.

Arte: Ana Maria Sena do AFRONTA

Não era uma DR. Nunca tive uma DR, relação não se discute, se vive. Talvez se fosse não me perturbaria, pois as pessoas falam coisas no calor do momento que não necessariamente corresponde a realidade. Mas uma conversa pacífica. Isso me perturbou demais, pois, considerando as diversas vezes em que o temperamento agressivo e machista do meu pai me magoou, passei a considerar a hipótese de estar magoando pessoas que eu amava.

Daí em diante, passei a prestar atenção rigorosa nas minhas atitudes e sentimentos. E reparei que outras pessoas também reclamavam do meu comportamento, o que me causava desconforto, pois sempre era comparada a pessoas cujo minha admiração passava a anos-luz de distância. Pessoas de comportamento nada agradável. Mas as minhas amizades, apesar de poucas, eram tão potentes e tão assertivas. E curiosamente eu me abria com muito mais facilidade para essas pessoas, do que para as pessoas que conviviam intimamente comigo.

Viver intimamente com uma pessoa não implica em necessariamente conhece-la. Principalmente quando a comunicação é falha, quando as pessoas falam, mas não dialogam. Quanto mais tentava me ver, mais me deparava com características que eram projeções das outras pessoas com quem convivia.  Eu na verdade, correspondia ao que me era atribuído, sem perceber.  Não sabia quem de fato eu era. E essas projeções, estavam envoltas em todos os tipos de estereótipos que acompanham mulheres, sobretudo, mulheres negras.

Eu me achava agressiva, desinteressante, sem charme, sem sensualidade, com inteligência limitada a um só assunto, maneira brusca de falar com as pessoas, indesejável, rebelde, deselegante, extravagante, egocêntrica, escandalosa, vulgar, mal humorada, etc. Era tudo que direta ou indiretamente, as pessoas do meu círculo mais íntimo de relações diziam sobre mim. A todo momento, alguém queria me consertar, me inibir, me coagir, para que eu fosse uma pessoa de acordo com seus desejos. Se eu falava demais, estava sendo inconveniente, se eu falava pouco, antissocial. Se eu contava o que aprendia, arrogante, se eu não contava, burra. Se eu falava de amor, romântica demais. Se não falava, insensível.

No casamento as coisas caminhavam por essa trilha, de maneira mais sutil, mas ainda assim, sempre alguma reclamação, algum ajuste teria que ser feito se eu quisesse agradar. A família do meu parceiro, mil críticas veladas, que escapava de forma “educada” nas reuniões de família, em forma de piada ou comentário “bem humorado”. Eu nunca era boa o suficiente para ninguém. Nada de positivo me era dito, por meus pais, irmãos, parentes e colegas. Minhas melhores amigas tinham uma visão tão diferente de mim, positivamente diferente.

“Você deveria ser isso…”, “você deveria ser mais aquilo” e eu sempre estava em débito com alguém em algum momento.

A maturidade é uma bênção e o amor próprio então, impagável. Se amar é se descobrir. Gostar do que vê em frente ao espelho é bom, pode ser indicativo de uma boa relação consigo mesmo, mas não necessariamente. Quem se gosta, se basta. E eu, sem perceber, estava sempre cerceada pela opinião alheia, ainda que agisse de maneira libertária, a insatisfação comigo era uma dor íntima, que eu não dividia com ninguém. E sofria calada por “saber” que nunca estava de acordo com o que esperavam. Como me livrei disso? Foi um processo doloroso e ainda não terminou. É continuo, porque sempre tentam te encaixar naquilo que acham que é adequado. Me despi de todas as projeções preconceituosas e estereotipadas que me atribuíam.

A frase de Lélia Gonzáles que diz mais ou menos assim:

“Mulher negra tem que ter nome e sobrenome, senão botam o nome que quiser”, muito ajudou a selar as reflexões necessárias e a redesenhar as relações que eu mantinha comigo e com o mundo. Mulher negra tem que se dedicar ao autoconhecimento, porque o mundo tá dizendo que somos o que ele quer que sejamos. A sociedade nos confina num labirinto de estereótipos, e nós passivamente aceitamos, porque queremos ser amadas, tanto quanto as mulheres de outras etnias. Mas essa passividade termina quando estamos sozinhas, tentando consertar ou resolver problemas de personalidade que não temos. Acabamos nos punindo de alguma forma, na maioria das vezes inconsciente, o que torna a cura ainda mais difícil.

Daí a angústia e o sentimento de inferioridade e inadequação nos atam as mãos e limitam nossas possibilidades de vivenciar nosso mundo interior com todas as infinitas possibilidades de maneira plena. Se alguém pergunta a uma mulher branca sobre ela mesma, terá uma dissertação positiva, ou não, mas firmemente pautada na visão que ela formou de si mesma. Nós, mulheres negras não. Aceitamos informações sobre nós mesmas e tomamos como verdade, porque estamos acostumadas a não ser, não estar, não permanecer.

E nesse jogo, chove aceitação de abusos, porque afinal, se você não sabe quem é, como vai avaliar o que merece. Moças negras, jovens de periferia ou não, compõem um ciclo de desqualificação e falta de consciência de si mesmas que passa de geração para geração.

Um dos resultados dessas punições inconscientes é a gravidez na adolescência, altas taxas, mesmo com toda informação que dispomos hoje em dia. Nossas meninas negras não têm perspectivas, tem sonhos as vezes e que também não correspondem à realidade delas, o que contribui para alimentar o sentimento de estar a margem do mundo. São anseios romantizados e irreais que acreditam que poderia aliviar a dor de não ser.

A falta de amor próprio te faz viver à deriva dos acontecimentos, a mercê da sorte, sem planos e ambições. Não nos deixa definir o que queremos e como podemos atingir. Se eu não sei quem eu sou, não posso saber para onde vou. Quando era criança, dizia a minha mãe que seria uma jornalista importante, adotaria dois ou três filhos, compraria um apartamento e teria uma “vida moderna”. Ela me respondia com um tom de voz que denunciava descrença, resignação e pena: “Deus te ouça, minha filha.”

Quando prestei vestibular pela primeira vez, não tive ninguém confiando que eu seria capaz.Nunca tive incentivo para meus estudos. Mas para ser modelo sim, mesmo se condições físicas alguma. Isso faz com que o sonho dos meninos negros seja a dobradinha pagodeiro-jogador. Porque ter essas funções sociais de destaque seria uma espécie de ascensão capaz de me tirar da tristeza de ser ninguém em um mundo onde o negro de fato não é ninguém, mesmo com diploma universitário. Se um adolescente ou criança negra diz que quer ser um médico, ouve risadas. Isso é internalizado pelas pessoas negras, homens e mulheres. Ainda hoje e cada vez mais, homens se casam com a mulher branca, na maioria esmagadora, em busca de uma valorização social que parece só ter esse caminho.

Como bem diz a genial escritora portuguesa Grada Kilomba:

“O inconsciente coletivo da população negra é pré-programado para estar em um estado de alienação, de despersonalização. O que significa olhar para si da perspectiva do outro e não olhar para si da própria perspectiva.”

Convivemos com um reforço negativo das nossas personas, o tempo inteiro. O mais belo não é da raça negra, o mais bem sucedido não é da raça negra, o mais feliz não é da raça negra. Tudo que é bom e de bem é branco. Para Grada, a exposição de pessoas negras de uma forma positiva é um caminho de cura desse sentimento de inadequação e repulsa de si mesmo. Mas aí, teríamos que esperar o respeito que os meios de comunicação nos devem. Claro que ela está certa, mas eu descobri que não temos tempo na vida para essa espera, então, o trabalho interior também é uma porta aberta para a cura. E devemos usá-lo.

Sendo assim, precisamos achar quem somos. Especialmente a mulher negra. Precisa saber quem é e não ter medo ou vergonha de dizer e ser. Todos nós temos características positivas e negativas, logo, devemos perdoar nossas falhas (até porque somos terrivelmente cobradas por elas) e não ter medo de ser bela, inteligente, esperta, elegante, eloquente, assertiva, decidida, sonhadora, delicada, sutil, ou qualquer outra combinação que faz de cada pessoa única e especial.

Esse foi o meu divisor de águas, o começo da minha satisfação pessoal e da minha força. Saber que as minhas falhas são normais e que minhas qualidades são muitas. É um processo lento, gradual e sem volta e um dos sinais de que está surtindo efeito é a empatia que criamos para com as outras pessoas negras. Eu tinha raiva de pessoas negras que reproduzem racismo.

A compreensão de que a hostilidade está atrelada aos processos de alienação histórica e não as nossas características como pessoa. Se alguém acha que eu sou chata ou arrogante, pelo meu senso crítico ou pelo meu gosto pelas artes, isso não é problema meu. O problema é que o racismo disse ao mundo que mulheres negras não podem ter cultura, não podem ter senso estético suficiente para apreciar uma obra de arte, ou um filme mais elaborado. Não me culpo mais por isso. Nem quando encontro alguém que diz que eu não posso ser fã de uma banda de rock ou torcer para um determinado time de futebol porque “eu sou negrona”.

Nos negaram um passado, limando nosso conhecimento sobre nossas reais origens. Mas o nosso presente e futuro, deve estar sob nosso domínio consciente.

Me conhecer abriu meu processo de cura interior e conhecer todos os mecanismos sociais que me diminuíam foi como romper com as correntes que colocaram nos meus antepassados. Pessoas negras ainda trazem essas correntes, mas agora elas não são mais físicas, são mentais.

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