Justiça é conivente com torturadores, revela estudo

Levantamento mostra que os tribunais brasileiros absolveram 19% dos agentes públicos acusados de tortura. O índice cai para 10% quando o agente é privado

A análise de 455 decisões em todos os Tribunais de Justiça do Brasil revelou que funcionários do Estado envolvidos em casos de tortura têm mais chances de serem absolvidos do que atores privados (familiares, cônjuges e seguranças particulares, por exemplo). De acordo com o levantamento, policiais e funcionários do sistema prisional condenados em um primeiro julgamento foram absolvidos, na segunda instância, em 19% dos casos. Entre agentes privados, o índice de absolvição cai praticamente pela metade (10%).

A principal explicação para o perdão dos acusados, segundo o estudo, reside na falta de provas e no peso dado à palavra da vítima. “Hoje, a produção de provas é falha porque o órgão pericial pertence à Polícia”, afirma Vivian Calderoni, advogada da ONG Conectas Direitos Humanos e uma das responsáveis pelo relatório. “É como se um colega produzisse provas contra outro, o que implica em conflitos de interesse”, completa. Além disso, o levantamento revela que em julgamentos contra agentes privados, o valor da palavra da vítima, para o juiz, é maior. Porém, essa lógica se inverte se o julgamento for contra um agente público.

Uma das possíveis evidências de conflito de interesse durante a perícia revela-se no resultado dos laudos periciais. Segundo o levantamento, muitos laudos relatavam apenas “escoriações” nas vítimas, o que é insuficiente para caracterizar o crime de tortura atualmente.

Previsto em lei desde 1997, o crime de tortura pressupõe “intenso sofrimento físico e/ou mental”. Por isso, “escoriações” não bastam para caracterizar tortura, segundo muitos juízes, que optam pela absolvição do acusado ou por penas de lesão corporal e abuso de poder. Esta interpretação da lei, no entanto, está equivocada, segundo Calderoni. “Intenso sofrimento é algo muito subjetivo, por isso, é preciso criar uma jurisprudência mais rígida para evitar que só em casos extremos, como o rompimento de ossos ou membros, caracterizem tortura”, argumenta a advogada da ONG.

Como solução, o estudo recomenda uma mudança na jurisprudência brasileira relacionada a crimes de tortura e a desvinculação das perícias para evitar conflitos de interesse. “O Judiciário já possui uma equipe de peritos própria para auxiliar nos processos cíveis. O que falta é fazer essa determinação valer também para a área criminal”, afirma Calderoni.

Desde 2009, tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 325 que visa desvincular os órgãos de perícia das polícias e torná-los uma instituição independente, como a Advocacia Pública e a Defensoria Pública, por exemplo.

Confissões falsas

De acordo com o levantamento, 66% dos casos de tortura cometidos por agentes públicos tinham o propósito de obter confissão e provas. O dado, além de revelar que a tortura é um método investigativo nas forças de segurança pública, também lança luz à carência de procedimentos de investigação nas polícias brasileiras. De acordo com a legislação brasileira, o uso da tortura como método de confissão para a obtenção de provas é ilegal e criminoso.

Ao mesmo tempo, não é possível garantir a veracidade das informações obtidas sob tortura. “Muitas vezes as informações obtidas através de tortura são falsas, já que nada assegura que a vítima não forneceu qualquer informação apenas visando o fim do sofrimento físico”, pondera a autora do estudo.

O levantamento, que demorou três anos para ser concluído, mostra que a maioria dos crimes de tortura cometidos por agentes públicos ocorreu em delegacias ou prisões, enquanto a maioria dos crimes privados aconteceu no ambiente familiar e foi cometido contra crianças. “A tortura praticada por agentes do Estado ocorre em locais de detenção, privilegiada pela invisibilidade” explica Gorete Marques, pesquisadora do NEV. “Para superar esse problema, é essencial que os locais de privação de liberdade, delegacias ou presídios, sejam constantemente monitorados pelo Estado e pela sociedade civil. A tortura é um crime de oportunidade e é preciso acabar com as brechas que permitem que ela siga acontecendo”.

Além disso, a maioria absoluta dos processos (41%) se encontravam na região Sudeste. No entanto, não é possível afirmar que esta região é a que mais tortura, já que muitos casos não chegam a ser denunciados.

A divulgação do relatório une-se ao relatório final da Comissão da Verdade e marca os 30 anos da Convenção contra a Tortura da ONU para pedir o fim da tortura como prática privada ou institucionalizada pelas forças de segurança do Estado brasileiro.

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