Justiça proíbe rolezinhos em Shoppings do Interior

A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik escreveu artigo criticando a onda de decisões judiciais que proíbem a entrada em shopping centers, em cidades do interior de São Paulo e de outros estados, de adolescentes desacompanhados de pais ou responsáveis, em determinados horários e dias da semana. A justificativa é impedir a realização dos “rolezinhos”, que promoveriam “atos de vandalismo”. “Já temos legislação de sobra para punir atos de vandalismo – praticados em shoppings ou em qualquer outro lugar”, diz Rolnik, que completa: “Na teoria, os shoppings são espaços privados de uso público, portanto, abertos a todos. Mas a prática é outra: podem usá-lo certas pessoas, e de certas formas…”

Por Raquel Rolnik Do Brasil247

Rolezinhos e a guerra nos shoppings do interior

Têm sido frequentes, em cidades do interior de São Paulo e de outros estados, decisões judiciais que proíbem a entrada em shopping centers de adolescentes desacompanhados de pais ou responsáveis, em determinados horários e dias da semana. A justificativa é impedir a realização dos chamados “rolezinhos”, que de acordo com os donos desses estabelecimentos promovem “atos de vandalismo” e “causam terror aos clientes”.

Isso já aconteceu, por exemplo, no Franca Shopping, na cidade de Franca, e no Plaza Avenida Shopping, em São José do Rio Preto. Também em Uberaba, interior de Minas Gerais, o Praça Uberaba Shopping Center conseguiu uma liminar da Justiça para impedir a entrada de grupos de adolescentes.

Leia Também 

Em Ribeirão Preto, uma portaria expedida por juiz da Vara da Infância e Juventude proibiu, em março deste ano, a entrada em centros comerciais da cidade de adolescentes com menos de 15 anos desacompanhados dos pais ou responsáveis, impedindo os jovens de frequentar estabelecimentos como os shoppings Santa Úrsula e Ribeirão Shopping.

Ainda em março, a Defensoria Pública entrou no STJ com pedido de habeas corpus coletivo contra a medida, sem sucesso. O caso foi parar no Superior Tribunal de Justiça, que em junho, finalmente, suspendeu a portaria por entender que se tratava de um desrespeito aos direitos de crianças e adolescentes.

A realidade é que em muitas cidades do país, não apenas nessas, aconteceu nas últimas décadas um movimento intenso de migração dos espaços comerciais e de lazer para o interior dos shopping centers, com o correspondente esvaziamento crescente dessas mesmas funções nas ruas e praças das cidades. Some-se a isso a total inexistência de investimentos na qualidade urbanística dos espaços públicos da maior parte dos bairros de nossas cidades – sobretudo nas periferias – e o resultado está aí: a eclosão de um conflito no interior dos shoppings sobre quais são as formas permitidas – ou proibidas – de se divertir, e quem tem ou não o direito de usar esses espaços.

Na teoria, os shoppings são espaços privados de uso público, portanto, abertos a todos. Mas a prática é outra: podem usá-lo certas pessoas, e de certas formas….

A forma shopping ganhou a cultura urbana de tal maneira – na ausência de outras configurações de espaços de trocas, inclusive comerciais, e de encontros não mediados pelo consumo – que virou “o” lugar de lazer nas cidades. E é exatamente ocupando esses lugares que a cultura dos shoppings é celebrada, inclusive por esses jovens, que buscam no espaço do shopping o lugar de encontro, de diversão e promoção de “zoeira”…

Já temos legislação de sobra para punir atos de vandalismo – praticados em shoppings ou em qualquer outro lugar das cidades.

A proibição da entrada de jovens adolescentes das periferias das cidades é, portanto, de outra ordem . O fato é que o projeto shopping center já nasce como um projeto segregador – em tese ele dá segurança e conforto aos seus frequentadores, que ali estariam livres dos perigos da rua – justamente da presença desse “outro” que ameaça e assusta. A lógica do shopping, definitivamente, não comporta o rolezinho.

A guerra judicial em torno desses eventos tem a ver com isso, e as decisões de proibir a presença de adolescentes ignora por completo o conjunto de questões presentes nesse conflito, protegendo unicamente os interesses econômicos dos proprietários dos shoppings, como bem destacou a Comissão de Direitos Infantojuvenis da OAB SP, que se posicionou contra tais decisões.

Ninguém está lá muito preocupado com a qualidade das cidades que estamos construindo para nossas crianças, jovens ou idosos, que espaços de sociabilidade lhes estão sendo oferecidos, e, afinal, por que adolescentes metem medo…

*Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista especializada em planejamento e gestão da terra urbana. É professora da FAUUSP e Relatora Especial para o Direito à Moradia do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Foi diretora de Planejamento da Cidade de São Paulo (1989-1992), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-2007), e Coordenadora de Urbanismo do Instituto Pólis (1997-2002). Prestou consultoria a governos, organizações não governamentais e agências internacionais, como UN-Habitat, em política urbana e habitacional. É autora dos livros “A Cidade e a Lei” e “O que é Cidade”, além de vários artigos e publicações sobre a questão urbana. Colabora com o portal Yahoo, onde tem uma coluna quinzenal, e mantém o blog da Raquel Rolnik, onde escreve regularmente sobre questões urbanas.

+ sobre o tema

Nath Finanças entra para lista dos 100 afrodescendentes mais influentes do mundo

A empresária e influencer Nathalia Rodrigues de Oliveira, a...

Ministério da Igualdade Racial lidera ações do governo brasileiro no Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU

Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, está na 3a sessão do...

Crianças do Complexo da Maré relatam violência policial

“Um dia deu correria durante uma festa, minha amiga...

Concurso unificado: saiba o que o candidato pode e não pode levar

A 20 dias da realização do Concurso Público Nacional...

para lembrar

O permanente holocausto negro

por: Ricardo Gondim A formação cultural brasileira tem graves deformações....

A face racista da miscigenação brasileira – Por Jarid Arraes

A questão da miscigenação racial no Brasil costuma ser...

E se não fossem os negros?

Roberto da Matta Não haveria esse futebol maravilhoso que renasce...

A Luta contra o Racismo é um dever!

Rafael Cantuária Um jogador de futebol negro xingado de macaco...
spot_imgspot_img

“Dispositivo de Racialidade”: O trabalho imensurável de Sueli Carneiro

Sueli Carneiro é um nome que deveria dispensar apresentações. Filósofa e ativista do movimento negro — tendo cofundado o Geledés – Instituto da Mulher Negra,...

Militares viram no movimento negro afronta à ideologia racial da ditadura

Documento confidencial, 20 de setembro de 1978. O assunto no cabeçalho: "Núcleo Negro Socialista - Atividades de Carlos Alberto de Medeiros." A tal organização,...

Filme de Viviane Ferreira mescla humor e questões sociais com família negra

Num conjunto habitacional barulhento em São Paulo vive uma família que se ancora na matriarca. Ela é o sustento financeiro, cuida das filhas, do...
-+=