Lea T, a transexual que vai fazer história na abertura da Olimpíada

Levantar a bandeira da inclusão e ser porta-voz da diversidade de gênero, orientação sexual e raça “num momento em que o Brasil será apresentado ao mundo”. Em entrevista exclusiva à BBC Brasil, a top model internacional Lea T afirma que é com estes objetivos que aceitou um convite para participar da cerimônia de abertura da Olimpíada, no Rio de Janeiro, como a primeira transexual a ter um papel de destaque numa abertura olímpica na história dos Jogos.

Por Jefferson Puff, da BBC

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Lea T disse não poder entrar em detalhes sobre sua participação, sigilosa como a de todas as outras celebridades, mas adiantou que representará a necessidade de combater o preconceito.

“Não posso falar nada ainda, precisamos manter a surpresa. Mas a mensagem será muito clara: inclusão. Todos, independente de gênero, orientação sexual, cor, raça ou credo, somos seres humanos e fazemos parte da sociedade. Meu papel na cerimônia, num universo micro e representativo, ajudará a transmitir esta mensagem”, diz.

Ao lado de Elza Soares, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Anitta, Lea T integra o time de celebridades cuja participação já foi confirmada na noite de 5 de agosto, diante de cerca de 70 mil espectadores no Maracanã e de estimados mais de 3 bilhões de pessoas assistindo pela TV em diversos países.

“Eu, como qualquer outra transexual, levanto uma bandeira. Falo da transexualidade porque faz parte da minha história, mas sou apenas mais uma integrante desta comunidade, sou mais uma. Sei que sou privilegiada por ter a mídia que me ouve, mas cada transexual em sua luta cotidiana tem igual importância para os LGBTs”, diz.

Toninho Cerezo e transformação na moda

Filha do ex-jogador da seleção brasileira Toninho Cerezo, que foi jogador da seleção brasileira entre 1977 e 1985, onde jogou ao lado de Zico e Sócrates, Leandra Medeiros Cerezo nasceu em Belo Horizonte em 1981, mas cresceu na Itália.

Aos 29 anos, estreou no mundo da moda em uma campanha da grife de alta costura francesa Givenchy, quando passou a adotar o nome Lea T, e pouco depois passou a estrelar campanhas de marcas de destaque, como a Benetton, aparecendo em editoriais de revistas como Vanity Fair e Vogue. Já foi capa da revista americana Newsweek, com o título “a moda transformada”, e em 2011 apareceu na capa da revista britânica Love beijando a top model britânica Kate Moss.

A modelo foi uma das poucas personalidades brasileiras a serem entrevistadas pela apresentadora Oprah Winfrey, dos Estados Unidos, e em 2015 foi eleita pela revista americana Forbes como uma das 12 mulheres que mudaram a moda italiana.

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Diante do papel de pioneirismo como top model transexual e da notoriedade internacional que alcançou desde 2010, aos 35 anos a mineira diz que se sente feliz em ajudar a mostrar a diversidade brasileira ao mundo.

“Neste momento em que o Rio de Janeiro e o Brasil serão apresentados ao mundo, é imprescindível que a diversidade esteja presente. O Brasil é muito vasto, e toda essa diversidade precisa, de alguma forma, ser representada em um evento como esse. Foi justamente isso que me motivou a aceitar o convite para participar da cerimônia de abertura”, explica.

Atualmente a brasileira vive em Gênova, na Itália, mas também tem bases nos Estados Unidos e no Brasil, e desde 2014 é “o rosto” da marca internacional de cosméticos Redken, do Grupo L’Oréal. A mineira foi a primeira modelo transexual a assinar um contrato deste porte com uma empresa de produtos de beleza em todo mundo.

Preconceito e aproximação

Na comunidade LGBT, entre gays, lésbicas e bissexuais, os transexuais são vistos por especialistas como os que mais sofrem preconceito na sociedade (inclusive dentro da própria comunidade LGBT).

Dados da ONG Transgender Europe (TGEU) compilados entre janeiro de 2008 e março de 2014 indicam que o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, com 604 mortes registradas no período.

De acordo com o Grupo Gay da Bahia, que há anos compila os índices de assassinatos de LGBTs, somente em 2015 foram 318 mortos, sendo 52% gays, 37% travestis, 16% lésbicas e 10% bissexuais. Em 2014 foram 326 assassinatos. O levantamento é feito em 187 cidades brasileiras.

“A falta de conhecimento provoca o medo, e o medo leva ao ódio. O primeiro passo é compreender e se aproximar dessa realidade, se aproximar do outro. As pessoas precisam começar a perder o medo de aproximação desses grupos e entender que eles podem ter uma vida próxima às suas, seja no banco da escola, em cargos de liderança, ou em qualquer profissão”, diz Lea T.

Questionada sobre a prostituição entre os transexuais e os riscos de maior exposição à violência e abusos, a modelo diz não ser contra a atividade. “Não sou contra a prostituição. Cada um pode fazer o que bem entende com seu corpo. A questão é que essa é a única forma de sobrevivência que se apresenta, em muitos casos, para as transexuais não apenas no Brasil, mas em todo o mundo”, explica.

Transexuais nas Olimpíadas

 

Desde 2003, a Comissão Médica do Comitê Olímpico Internacional (COI) passou a se pronunciar a favor de que atletas que tivessem passado por cirurgias de mudança de sexo pudessem competir sob o novo gênero nos Jogos.

Apesar de não estabelecer uma regra obrigatória, o COI emitiu recomendações a todas as federações esportivas internacionais para que deixassem de impedir transexuais operados de competir sob seus novos gêneros.

Em nota enviada à BBC Brasil, o COI esclareceu que em 2015 foi reunida uma nova comissão médica e científica para revisar tais orientações. Como resultado, o Comitê Olímpico Internacional passou a recomendar que atletas transexuais possam participar dos Jogos sob seu novo gênero mesmo que não tenham passado pela cirurgia de mudança de sexo.

Os Jogos de 2016 são a primeira edição das Olimpíadas em que a nova recomendação está em vigor.

“É necessário garantir que, ao máximo possível, os atletas transexuais não sejam excluídos da oportunidade de participar de competições esportivas. Requerer mudanças anatômicas cirúrgicas como uma pré-condição para a participação não é necessário para preservar a competição justa e pode ser inconsistente com as noções e legislações de direitos humanos em desenvolvimento”, diz o documento enviado à BBC Brasil assinado pela comissão médica do COI em novembro de 2015.

Embora não tenha valor de regra obrigatória, o documento serve como recomendação e referência para todas as federações esportivas internacionais.

Há um detalhe, no entanto, nas recomendações quanto às duas mudanças de sexo. Apesar de descartar a necessidade de cirurgia anatômica em qualquer hipótese, o COI chama a atenção para os níveis de testosterona no sangue das atletas transexuais femininas, ou seja, aquelas que mudaram do sexo masculino para o feminino.

Duas condições precisam ser observadas para que a atleta possa competir nas categorias femininas. A primeira, que ela se identifique como do gênero feminino, ciente de que a preferência indicada ao COI não poderá ser alterada por no mínimo quatro anos, e a segunda, que seu nível de testosterona no sangue seja inferior a 10 nmol/l por no mínimo 12 meses antes da competição, a fim de evitar quaisquer vantagens sobre as outras atletas.

Aqueles que mudam do sexo feminino para o masculino podem competir nas categorias masculinas sem restrição alguma.

Para Lea T, a nova recomendação do COI é uma boa notícia. “É sem dúvida nenhuma um avanço, mas infelizmente parece que não há atletas transgêneros que tenham se classificado para os Jogos deste ano. Apesar disso, já é uma esperança para a comunidade e uma forma de inclusão”, avalia.

A BBC Brasil entrou em contato com a sede do COI em Lausanne, na Suíça, para confirmar se haverá atletas transexuais na Olimpíada, mas em nota o comitê respondeu que em respeito à privacidade dos atletas não divulga este tipo de informação.

 

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