Medo é manipulado para forçar estereótipos, diz Anistia sobre arrastões

Arrastões como os que deixaram em pânico frequentadores de praias do Rio de Janeiro no fim de semana de 20 de setembro não são um fenômeno recente. Roubos praticados em grupo e em série são registrados na capital fluminense desde o início da década de 1990. As diversas raízes do problema dificultam tanto sua plena compreensão quanto a aplicação de soluções eficazes.

Por Rodrigo Alvares, no Bol 

Para o diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil, Átila Roque, parte do problema está em como o medo dos moradores da zona sul é manipulado para reforçar estereótipos acerca destes jovens. “O problema é quando esse medo passe a ser manipulado para uma agenda que reforce essa ideia de que certas partes da cidade não deve ser frequentada por certo tipo de pessoa”, afirmou Roque ao UOL.

Leia os principais trechos da entrevista concedida pelo diretor da organização:

O governo violou o direito de ir e vir de alguns cidadãos com as abordagens feitas nos ônibus nos fins de semana?
Átila: O chamado arrastão toca em alguns pontos estruturantes da maneira como a desigualdade e a segregação retornam de forma cíclica à agenda pública no Rio de Janeiro. Por que eu disse chamados arrastões? Porque um fato está claro: muitas vezes um grupo de meninos se organiza em grupo na praia para roubar. Isso é uma coisa que ocorre de forma cíclica no Rio em determinado período, em geral perto do verão. Tem uma outra coisa que é a leitura desse fato – em outras situações não é chamado de arrastão. Pode ser chamado de um ataque de um bando, de um grupo. Mas, como ele acontece na praia, nessa circunstância ele é imediatamente decodificado como esse fenômeno meio real meio fantástico chamado “arrastão” que remete as imediatamente a um sentimento de perda de controle, de estar sob ataque, de desordem na cidade e na segurança pública. Ao mesmo tempo, alimenta aquela cultura que existe no Brasil –e especialmente na cidade do Rio de Janeiro– de que certos lugares pertencem a uns e não a outros.

A segregação social é a única causa do problema?
O anseio por segurança e o medo da violência não pode ser subestimado. Você não deve fazer pouco do receio de qualquer pessoa normal de ser atacada, de ser assaltada. Isso é algo que não podemos desconsiderar. O problema é quando esse medo passe a ser manipulado para uma agenda que reforce essa ideia de que certas partes da cidade não deve ser frequentada por certo tipo de pessoa. Essas pessoas, em geral, são jovens pobres ou moradores de zonas periféricas, e uma parcela expressiva é de medida negros. Na década de 1990, no Rio, a manchete de um jornal na primeira vez que se formulou essa imagem do arrastão era “Uma mancha negra avança pelas praias da cidade”. Quando você pergunta se a origem é social, eu diria que é como o Brasil: vem profundamente marcado por essa intercessão entre uma sociedade profundamente racista –mas que não gosta de se ver racista–, profundamente violenta –mas que não gosta de se ver violenta– e que isso tem uma interface com a questão da pobreza, da pessoa fora do lugar. Ou seja: a praia da zona sul deve ser lugar de algumas pessoas e vocês que fiquem lá. E aí o arrastão inflama esse sentimento. Agora, nós não estamos dizendo que a área de segurança pública não deva tomar medidas para prevenir atos de ilegalidade, mas é preciso encontrar uma forma de fazer isso e é possível –na maior parte do ano isso é feito. O ato de roubar na praia ou a bagunça no ônibus é diferente do roubo. Uma coisa é a garotada entrar no ônibus e não pagar. Na minha adolescência, eu cresci e vivi na zona norte a vida inteira e cansei de pular roleta no ônibus, de sair pela porta de trás. E nem por isso eu estava lá para assaltar e roubar.

A prefeitura anunciou o corte de algumas linhas de ônibus que fazem ligação da zona norte com a zona sul. Isso faria parte de uma política velada de higienização da zona sul do Rio?
Acho que não dá para dizer isso, porque esse projeto está na agenda da prefeitura há mais tempo com o argumento de que é para facilitar o acesso. Estão tentando racionalizar as linhas de ônibus, deixar os corredores do BRT mais rápidos. A pergunta é se vai funcionar. Eu não atribuiria a motivação do racionamento das linhas de ônibus planejadas há bastante tempo como motivadas por uma política de saneamento. Eu relacionaria isso ao controle da chegada à praia dos ônibus pela polícia. Neste ponto eu acho que tem uma clara violação do direito de ir e vir e do direito das pessoas de desfrutar a cidade. Os argumentos que justificam a retirada dos ônibus para levar à delegacia para averiguação não se sustentam. Porque a pessoa não tem dinheiro não pode ir à praia? Porque ela está descalça e sem camisa ela é automaticamente classificada como alguém que vai cometer um delito? Isso só se justifica no marco de uma imagem construída que abusa de um medo fabricado –um medo que é legítimo. Agora, essa ação não pode punir coletivamente todo um conjunto da população que é jovem e quer desfrutar da cidade. O problema é você construir uma narrativa que justifique uma punição coletiva, e essa punição é seletiva também. Ela não é distribuída de maneira igualitária.

Essa “revolta” dos moradores da zona sul tem alguma legitimidade?
Eu reconheço como legítimo o medo de sofrer violência. Agora, o que é problemático é a manipulação desse medo. E aí os moradores da zona sul têm perfis de uma ordem muito diferente. Algumas pessoas acabam incorporando –por conta da forma como esse problema é apresentado– e dão vazão aos seus piores valores, porque aí eles voltam ao tema de 1992, quando o arrastão foi descrito como uma “nuvem negra que avança na zona sul do Rio de Janeiro”, que é uma estrutura mental extremamente racista, ancorada em estereótipos sobre esse morador da periferia. A gente defende uma ação integrada do Estado que envolva as diferentes dimensões necessárias para tratar desse problema de forma permanente.

Quais seriam os papeis do poder público e da população?
No poder público tem várias instâncias, tem desde as secretarias sociais que precisam de uma forma permanente ter atenção a uma parte da população que está desamparada. É preciso uma ação social que não é feita –ou feita de maneira espasmódica. Outra ação é você distribuir de maneira mais ampla pela cidade os diferentes equipamentos culturais –que hoje seguem muito concentrado na zona sul. Na área da segurança pública tem de ter medidas preventivas –que não é no momento em que se cria a falsa crise dos arrastões. É ter um plano de vigilância, de controle social e prevenção do crime que esteja implantado de forma permanente e que garanta que você identifique a situação e impeça que ela aconteça.

Essa seria uma parte da solução para os arrastões?
Seria uma parte da solução para isso que se chama de arrastão, ou pelo menos ela permitiria ao Estado não violar direitos de forma a punir coletivamente todo mundo. Algumas dessas situações merecem ser tratadas no âmbito criminal. Existem grupos que estão cometendo crimes na praia, na rua, em vários lugares da cidade. Mas o problema é quando você usa isso não para construir uma política de segurança que permita a você abranger isso de maneira permanente no momento em que isso vira notícia. O mais grave de tudo isso é fortalecer na sociedade uma ideia de que de fato você precisa de muros na cidade, que tem de fechar linhas de ônibus, cortar o acesso à praia e que certos territórios da cidade pertencem a uma elite de classe média alta majoritariamente branca. Isso é inadmissível num Estado de Direito. A sociedade deveria se abrir mais para escutar o que está sendo dito. A gente precisa de forma urgente de canais de diálogo que construam pontes, e não que queimem as pontes. O risco que nós corremos hoje como sociedade –e não só no Rio de Janeiro– é você cristalizar uma situação de apartação.

 

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